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O controle político de constitucionalidade das leis na França

22/09/2007 às 00:00
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Palavras-chave: O regime semipresidencial da França. O ConselhoConstitucional. A constitucionalidade e seu controle. A "ordonannce". As leis orgânicas e as ordinárias. A provocação do Conselho. A declaração sob reserva de estrita interpretação. Evolução do sistema.


O interesse do país não está em ser governado consoante a formula deste ou daquele sistema, senão sim em ser bem governado. (Rui Barbosa) 1


1. No direito brasileiro, como se sabe, o controle das leis e dos atos do poder público, é realizado, sempre, pela via judiciária, e por dois modos: pela via de exceção ou pela de ação. No primeiro caso, quando o fundamento da defesa recusa o cumprimento do ato inconstitucional, obedece-se ao critério da jurisdição difusa, deferido a qualquer juiz ou Tribunal o reconhecimento do ato contrário ao comando constitucional, seja à norma ou aos princípios que a norteiam. No segundo caso, quando a declaração de inconstitucionalidade da lei ou ato, em tese, desvinculado de qualquer lesão de direito individual, é o próprio objeto do pedido, o controle se faz pelo método da jurisdição concentrada, outorgado a um único órgão judicial o reconhecimento da inconstitucionalidade, por provocação de quem, constitucionalmente, detiver a titularidade da ação direta.


2. Em certos países, entretanto, em lugar de um controle jurisdicional, existe o exercido por órgãos que se podem chamar políticos, mas não judiciários. Usualmente, nesses sistemas, o controle ao invés de ser posterior à elaboração e promulgação da lei, é preventivo, vale dizer, ocorre antes que a norma entre em vigor, e, às vezes, se trata ainda de um controle com função simplesmente consultiva, isto é, a função de um mero parecer, não dotado de força definitivamente vinculatória para os órgãos legislativos e governamentais.


3. A França, cuja Constituição de 1875 (III República) consagrou o sistema parlamentar de governo2, sem dúvida, é o maior exemplo de um controle político, não judicial, de constitucionalidade das leis. A exclusão de um controle propriamente judicial de constitucionalidade das leis é, na realidade, uma idéia que sempre foi tenazmente imposta nas Constituições francesas, embora concebidas como Cartas rígidas e não flexíveis. Todas as vezes que, nas Constituições francesas, se quis inserir um controle da conformidade substancial das leis ordinárias em relação à norma constitucional, este controle foi confiado, de fato, a um órgão de natureza não judiciária. Assim aconteceu nas Constituições dos dois Napoleões, isto é, a de 22 frimário do ano VII (13 de dezembro de 1799), a qual, nos artigos 25-28, confiava o controle ao Sénat Conservateur, e a de 14 de janeiro de 1852, a qual, nos artigos 25-28, confiava o controle ao Sénat; e, igualmente, aconteceu na Constituição da IV República, de 27 de outubro de 1946, que confiava ao Comité Constitutionnel um muito limitado poder de controle preventivo – isto é, exercitável apenas antes da promulgação – da legitimidade constitucional das leis. Esse controle representou uma concessão feita pelos socialistas e os comunistas, que, por princípio, repeliam toda a idéia de um governo de juízes 3 . Nem muitíssimo diversa pode, enfim, ser considerada a solução adotada na Constituição da V República, de 4 de outubro de 1958, e até agora em vigor, que confia o controle de constitucionalidade, sempre apenas em via preventiva, ao Conseil Constitutionnel. 4

Em sua atual Constituição, sem dispor, propriamente falando, sobre o controle da constitucionalidade das leis, continua o colegiado encarregado de garanti-la, composto de nove membros, designados por nove anos e que não podem ser reconduzidos, devendo ser renovado na sua terça parte de três em três anos. Três de seus membros são nomeados pelo Presidente da República, igualmente três pelo Presidente da Assembléia Nacional e o Presidente do Senado outros três (art.56), mas, mesmo considerando-se o caráter político dessas nomeações, isso não desvaloriza efetivamente o peso e a importância da Instituição, pois a maior parte dos membros nomeados possui qualificativos jurídicos respeitáveis, como a história registra. Deve-se notar, outrossim, que também os ex-presidentes da República têm assento nesse colegiado. Em virtude do art. 61, alínea 1, o Conselho é obrigatoriamente acionado sobre as leis orgânicas ("les lois organiques"), devendo elas ser submetidas à apreciação do colegiado antes de promulgadas. Essas leis, adotadas de acordo com um procedimento mais restrito que o das leis ordinárias, embora menos que o procedimento para uma revisão constitucional, dizem respeito à organização ou ao funcionamento dos poderes instituídos pela Carta política, envolvendo, por isso, matéria constitucional. Apenas não se vê, realmente, os presidentes das assembléias se oporem a um projeto votado por suas próprias câmaras. E, pois, à evidência, somente o governo5 é que tem interesse em provocar o Conselho Constitucional.


4. No que compete às leis ordinárias, a intervenção do Conselho é apenas facultativa, dependendo de provocação. Duas hipóteses existem:

a) a primeira diz respeito à separação dos domínios legislativo e regulamentar, nos termos dos artigos 34 e 37 da Constituição6. A esse título o colegiado intervém a priori, isto é, antes da promulgação da lei, ou a posteriori, ou seja, após a entrada em vigor da lei. Assim sendo, o Conselho intervém a priori no caso previsto no artigo 41 da Carta: se se verificar no decurso do processo legislativo que uma proposta de lei ou uma proposta de alteração não cabem no domínio da lei ou contrariam delegação concedida nos termos do art.38 7, o Governo poderá suscitar a questão prévia da sua inadmissibilidade. Em caso de desacordo entre o Governo e o Presidente da Câmara interessada, competirá ao Conselho Constitucional, a pedido de um ou de outro, decidir no prazo de oito dias.

b) A segunda hipótese, prevista no artigo 61, alínea 2, é genérica: todos os casos de não conformidade de uma lei a qualquer disposição da Constituição.


5. Por Constituição, na França, deve-se entender não apenas os 89 artigos do texto, mas também seu preâmbulo, sendo que ele mesmo remete para a Declaração dos Direitos de 1789 e ao preâmbulo da Constituição de 1946. Note-se que o exórdio ainda se refere aos "aux principes de la souveraineté", isto é, às grandes leis que consagraram as liberdades essenciais, especialmente sob a III República (1875-1940). Assim o "bloco de constitucionalidade" é concebido de maneira bastante ampla8.

A Constituição de 1791 consignou: "Os tribunais não podem invadir as funções administrativas ou mandar citar, para perante eles comparecerem, os administradores, por atos funcionais". Firmou-se, assim, na França o sistema do administrador-juiz, vedando-se à Justiça Comum conhecer de atos da Administração, os quais estão sujeitam unicamente à jurisdição especial do contencioso administrativo, que gravita em torno da autoridade suprema do Conselho de Estado.9


6. Informa Rodrigues Vieira que a reforma introduzida pela lei constitucional de 29 de outubro de 1974, sob a presidência Giscard! Estaing permite ser o Conselho Constitucional acionado também por pedido de ao menos 60 deputados ou 60 senadores, que pode ser formulado por cartas coletivas ou individuais: sob pena de não recebimento, essas cartas devem todas visar as mesmas disposições do texto do projeto 10 atacado, não se fazendo necessário que apresentem as mesmas razões e nem mesmo que sejam motivadas. O colegiado por sua vez, deve decidir a questão dentro de um prazo de um mês, podendo ser reduzido para apenas oito dias se o governo pedir urgência.

Consigne-se que as decisões do Conselho Constitucional devem se publicadas pela imprensa oficial, não sendo suscetíveis de qualquer recurso e são vinculantes para o conjunto dos poderes públicos, possuindo a autoridade de coisa julgada. Entretanto, nos primeiros anos de sua existência, consciente da inovação radical que representava na França a instituição de um controle de constitucionalidade das leis, o Conselho deu provas de grande prudência, interpretando restritivamente as competências que lhe eram atribuídas. É assim que, em 1962, acionado pelo Presidente do Senado, declarou-se incompetente para controlar a constitucionalidade de lei instituindo a eleição do Presidente da República, pelo sufrágio universal direto, porque essa lei havia sido votada por via referendária e não pela parlamentar.


7. Com relação à resistência dos franceses à idéia da adoção do sistema do controle judicial das leis, admite a doutrina moderna 11 que o fato derivou do seguinte:

a) Do entendimento dado à teoria da separação dos poderes, 12 não se admitindo que órgãos estranhos à função legislativa, os tribunais, venham a apreciar a validade das leis;

b) Da reação contra a prática dos parlamentos (judiciais) 13 do Ancien Régime, 14 o que levou até a proibição, por lei, da apreciação jurisdicional da constitucionalidade 15, prescrevendo que "os tribunais não poderão tomar parte, direta ou indiretamente, no exercício do poder legislativo, nem impedir ou suspender a execução dos decretos de corpo legislativo, sancionados pelo rei, sob pena de" prevaricação".


8. Anota nossa doutrina que, durante muito tempo, o Conselho se limitou a uma constatação estrita da conformidade ou não conformidade de uma lei à Constituição: no primeiro caso, a lei podia ser imediatamente promulgada; no segundo, o Órgão apreciava se as disposições declaradas inconstitucionais eram ou não separáveis do conjunto; se o eram, o restante poderia ser promulgado e se elas não o eram, o texto inteiro devia ser reexaminado pelo Parlamento.

Essas duas formas de decisão continuam evidentemente possíveis, mas de uns anos a esta parte acrescentou-se uma terceira forma, que é a declaração de conformidade sob reserva de estrita interpretação. Esta técnica consiste em admitir a constitucionalidade de uma disposição, indicando como deverá ser interpretada. Algumas declarações de não conformidade à Constituição indicam ao legislador as modificações que deve trazer ao texto para torná-lo compatível com a Carta Política. Assim sendo, é permissível concluir que o Conselho Constitucional francês está fazendo com que o controle de constitucionalidade evolua em direção a guiar a ação do legislador. 16


9. Finalizando estas notas sobre o controle francês da constitucionalidade - e escapando ao objeto deste trabalho, - temos a dizer que a doutrina e jurisprudência brasileira usam de uma fundamentação diferenciada pra justificar a interpretação conforme a Constituição. Segundo a jurisprudência do STF, essa interpretação conhece limites. Eles resultam tanto da expressão literal da lei, quanto da chamada vontade do legislador. A interpretação conforme a Constituição, entre nós, é, por isso, apenas admissível se não configurar violência contra a expressão literal do texto e não alterar o significado do texto normativo, com mudança radical da própria concepção original do legislador. 17


Bibliografia

BARBOSA, Rui – Cartas de Inglaterra –edição Eligrafi - SP-4ª. ed. 1972.

BURDEAU, Georges - O Poder Executivo na França – 1961 – Ver Bras.de Estudos Políticos - 1961

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CAPPELLETTI, Mauro - O Controle Judicial de constitucionalidade das leis no direito

comparado.

CAVALCANTI, Temístocles Brandão – Teoria do Estado – RT – 1977

MIRANDA, Jorge - Teoria do Estado e da Constituição –Forense -2003

ROSSEAU, Jean-Jacques – O Contrato Social –J.Bushatsky editor – 1978

SECONDAT, Charles de – O Espírito das Leis - Saraiva – 1987.

SIEYÈS, Emmanuel Joseph – Lumen Juris-RJ- 4a. ed. 2001

VIEIRA, Paulo Rodrigues – O Controle da Constitucionalidade na França.


Notas

1 No prefácio de "Cartas de Inglaterra", 1896.

2 A rigor, numa visão mais formal pode dizer-se que o sistema gaulista corresponde a um sistema semipresidencial. Difere do parlamentarismo convencional por apresentar um chefe de Estado com prerrogativas que o tornam muito mais do que uma figura protocolar. O presidente da França, vg., entre outras, é responsável pela política externa, e o primeiro ministro pela interna. (Leia JORGE MIRANDA, em Teoria do Estado e da Constituição, Forense,, 2003, p. 104-105)

3 Essa expressão "governo de juízes" significa que a Corte Suprema dos Estados Unidos se comportava, no período de 1880 a 1937, como uma espécie de superpoder que, sob a justificativa de interpretar a Constituição, bloqueava as iniciativas sociais das autoridades emanadas do sufrágio universal popular, e impunha um statu quo favorável aos interesses econômicos e às grandes empresas.O apogeu desse conflito entre a Corte Suprema e o poder político foi entre 1931 a 1936, sob o governo Franklin Roosevelt, que pressionou a Corte Suprema no sentido de rever o seu papel; essa começou a recuar mediante as ameaças do Presidente e, após II Grande Guerra, a Corte reorientou totalmente a sua jurisprudência

4 CAPPELLETTI, Mauro, O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado, 1984 – editor Sergio. A.. Fabri – Porto Alegre.

5 A Constituição francesa de 1958 abandonou a expressão Poder Executivo. Fala de Governo e seus autores merecem aplausos por terem rompido com uma tradição terminológica que consagrava flagrante impropriedade dos termos empregados. Há tempo que governar não é mais executar, exatamente desde o abandono do liberalismo absoluto que recusava qualquer faculdade criadora aos dirigentes políticos. Hoje, sabemos que governar é conceber, escolher, ousar todos os atos que não podem incluir no conceito de execução, em seu significado mais geral. (Georges Burdeau, in O Poder Executivo na França 1961).

6 O artigo 34 define as matérias que são da competência da iniciativa do legislador; o artigo 37 diz que todas as demais matérias são de iniciativa do governo, legislando (ou regulamentando) através de regulamentos (no original: "Les matières autres que celles qui sont du domaine de la loi ont um caractère réglementaire.").

7 Solicitação do governo por decreto-lei (ordonnance) para tomar medidas ordinariamente pertencentes ao domínio da lei.

8 Segundo Paulo Rodrigues Vieira ({Ril n.102/1989}, essa expressão "bloco de constitucionalidade" foi lançada pelo jurista Georges Vedel, nos anos 60, estando perfeitamente consolidada.. Vedel, professor de Direito Constitucional, ex-presidente da Université de Paris II, autor de várias obras, foi também membro do Conselho Constitucional, tendo encerrado seu mandato de 9 anos em fevereiro de 1989.

9 MEIRELLES, Hely Lopes, Direito Administrativo Brasileiro, 24 ed. 1999, pág.47.

10 "Projeto de lei" é a denominação do texto em discussão nas duas Casas do Legislativo, tendo sido a iniciativa do governo, o que é largamente praticado no sistema parlamentarista de governo ffrancês; o texto de iniciativa dos parlamentares chama-se "proposição".

11 MIRANDA, Jorge, Teoria do Estado e da Constituição, 2003, Forense.

12 SECONDAT, Charles de. Barão de Montesquieu, in "O Espírito das Leis."

13 Esses "parlamentos", que eram tribunais ou cortes soberanas de justiça durante o Antigo Regime, eram cinco, sendo um deles o de Paris, que era, sem dúvida, o mais importante. Vide nota 2 deste trabalho sobre "governo de juízes".

14 " Ancien Régime" é a denominação do conjunto de instituições e normas existentes na França antes da Revolução de 1789.

15 Foi o Decreto de 16 de agosto de 1789.

16 Revista de Informação Legislativa, n. 120. pág.321.

17 MENDES, Gilmar Ferreira, Jurisdição Constitucional, 2004 – Saraiva.

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Sobre o autor
Sergio Miranda Amaral

advogado, procurador do Município aposentado

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AMARAL, Sergio Miranda. O controle político de constitucionalidade das leis na França. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1543, 22 set. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10399. Acesso em: 23 dez. 2024.

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