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A abusiva multa por descumprimento da DIF-papel imune

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            Segundo o artigo 150, inciso III, alínea d, da Carta Federal,é defeso aos entes federativos instituir tributos sobre o papel para impressão de livros, jornais e periódicos que não sejam de exclusiva propaganda comercial. Trata-se de imunidade que visa assegurar a liberdade da mídia impressa, a cultura e a leitura.

            Embora não exista obrigação de pagar tributos, a Receita Federal do Brasil criou a obrigação de se apresentar a Declaração Especial de Informações Relativas ao Controle de Papel Imune (DIF-Papel Imune) pela Instrução Normativa nº 71/2001 - republicada no DOU de 13/09/2001, com efeitos a partir de 1º de janeiro de 2002.

            Os contribuintes que porventura não cumprirem esse dever acessório até o último dia do trimestre subseqüente ao período de competência, ficam sujeitos a alta penalidade, estipulando o artigo 9º, §1º da IN n.º 71/2001 que, nessa hipótese, aplicar-se-á a pena prevista no artigo 57 da Medida Provisória 2.158-35/2001 (multa de R$ 5.000,00 por mês calendário no caso de falta de entrega da Declaração ou de entrega após o prazo).

            Ocorre que, s.m.j., essa obrigação tributária e a penalidade estipulada para o descumprimento ou atraso não encontram suporte jurídico legal em nosso ordenamento, senão vejamos.

            O art. 113 do CTN prevê que são dois os tipos de obrigações tributárias, quais sejam, as obrigações principais e as obrigações acessórias.

            Em linhas gerais, a obrigação principal consiste numa obrigação de pagar tributos; já a obrigação acessória consiste numa obrigação de fazer ou de não-fazer, para tornar viável a arrecadação e fiscalização tributárias.

            As obrigações acessórias ou instrumentais são destinadas a assegurar o exato cumprimento da obrigação tributária principal por parte do contribuinte, daí porque a idéia de serem obrigações de fazer ou de não-fazer, ou até de tolerar, estipulando um "dever ser", tudo com vistas à fiscalização e arrecadação das obrigações principais.

            E, embora haja entendimento contrário, as obrigações tributárias, quaisquer que sejam, devem ser sempre "ex lege", não dependendo da vontade das partes envolvidas na relação tributária [01], mesmo quando o C.T.N. utiliza o termo legislação para designar lei em sentido geral, e não em sentido formal.

            O Princípio da Legalidade é desrespeitado quando norma infralegal estabelece obrigações de qualquer natureza ao contribuinte, ao invés de apenas regulamentar as já previstas em lei formal, como ensina o conceituado tributarista Roque Antonio Carrazza, em seu "Curso de direito constitucional tributário", 14ª edição, São Paulo, Malheiros, 2000, p. 238: "Entendemos que os decretos, as portarias, os atos administrativos em geral, só podem existir para tornar efetivo o cumprimento dos deveres instrumentais criados pela lei."

            Posteriormente, continua o Eminente tributarista trazendo luz à questão, op. cit, p. 318-320:

            "Será, porém, que os deveres instrumentais tributários podem nascer de manifestações de vontade da Administração Pública? Pensamos que não. Vamos ver por quê.

            ...

            Entendemos que os decretos, as portarias, os atos administrativos em geral, só podem existir para tornar efetivo o cumprimento dos deveres instrumentais criados pela lei. Assim, v.g., se ela obriga uma classe de comerciantes a manter livros fiscais, pode o decreto regulamentar estabelecer o tipo, o tamanho e o modelo dos mesmos, bem como a forma de preenchê-los, de modo a facilitar-lhes o manuseio.

            ...

            E nossa certeza de que só a lei pode criar deveres instrumentais cresce de ponto na medida em que notamos que seu descumprimento resolve-se em sanções das mais diversas espécies, inclusive pecuniárias. Repugna ao senso jurídico que uma pessoa possa ser compelida a pagar multa com base no não acatamento de um dever criado por norma jurídica infralegal."

            ...

            Enfim, dando continuidade a este raciocínio, queremos remarcar que a Constituição, ao prescrever que "ninguém será obrigado (...)", evidentemente não está se referindo apenas ao instituto jurídico da obrigação "stricto sensu". Em outras palavras, não está se limitando a estatuir que ninguém poderá ser compelido a cumprir uma obrigação que tenha sido criada por via infralegal (mas permitindo que alguém seja levado a cumprir um dever não imposto pela lei). Somente uma interpretação pedestre é capaz de sustentar tamanho despautério. Em rigor, a própria filologia nos socorre, indicando que a Constituição, ao estatuir que "ninguém será obrigado (...)" está significando que ninguém será compelido (...)".

            O inciso II, do artigo 5º da CF exige que os deveres impostos às pessoas brotem de lei."" (Grifos nossos).

            Repisando o assunto, explana Souto Maior, em "Princípio constitucional da legalidade e as categorias obrigacionais", in RDT 23-24/83, p.89:

            "Por força do artigo 5º, II, qualquer pretensão ao cumprimento de obrigações acessórias deverá ser submetida a regência de lei, e não de atos infralegais do Executivo

, como os decretos regulamentares. E compreende-se que assim o seja, porque não é só pela via da exigência de prestações pecuniárias compulsórias que o Estado se insinua nas relações entre os particulares a demandar-lhes, com voracidade insaciável, uma crescente ordem de obrigações (deveres administrativos) instituídas por simples comodidade burocrática. " (atualizada a referência ao artigo constitucional)

            Por todo o exposto, tem-se que a Instrução Normativa S.R.F. n.º 71/2001 não pode ser tida como válida, por inexistência de previsão em Lei Complementar das obrigações por ela instituídas, sob pena de afronta ao Princípio da Estrita Legalidade Tributária.

            O Poder Judiciário já abordou o tema:

             "(...) DESCUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÃO TRIBUTÁRIA ACESSÓRIA – DECLARAÇÃO DE CONTRIBUIÇÃO E TRIBUTOS FEDERAIS – DCTF – INSTRUÇÃO NORMATIVA Nº 126/86 – SRF – PORTARIA Nº 118/84 – MF – OFENSA AO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE – (...). Ofende o princípio da legalidade a instituição de obrigação tributária acessória mediante Instrução Normativa, por delegação do Secretário da Receita Federal, através da Portaria nº 118/84, baixada pelo Ministério da fazenda. Precedentes: AC 95.01.18755-1/BA, Relª Juíza Eliana Calmon DJU/II de 09.10.95, p. 68250; REO 94.01.24826-5/BA, Relª Juíza Eliana Calmon, DJU/II de 06.10.94, p. 56075. III. Apelação improvida. Remessa oficial julgada prejudicada.". (TRF 1ª R. – AC 01231283 – BA – 3ª T. – Rel. Juiz Conv. Reynaldo S. da Fonseca – DJU 07.12.2000 – p. 108). (nosso destaque).

            "(...) 3. Só a lei, em sentido formal e material, pode descrever infração e impor penalidades. (...) 5. Precedentes do Tribunal Regional Federal da 1ª Região. 6. Improvimento da remessa ex officio." (TRF 1ª R. – REO 01000457275 – MG – 3ª T. – Rel. Des. Fed. Conv. Saulo José Casali Bahia – DJU 30.06.2000 – p. 137). (Nosso destaque).

            "CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. OBRIGAÇÃO TRIBUTÁRIA ACESSÓRIA. PRINCÍPIO DA LEGALIDADE. 1. submetendo-se, a Administração Pública, ao Princípio da Legalidade que, no campo tributário, se reveste de rigidez ainda maior, atenta contra o mesmo criar-se Obrigação Tributária de caráter acessório sem respaldo em lei; 2. Remessa de ofício a que se nega provimento." (TRF4, 1ª T., REO 89.04.19822-4/PR, Rel. Paim Falcão, unânime, j. Dez/1989). (Nosso destaque).

            "(...) Ilegalidade da Instrução Normativa nº 67/92, que, a pretexto de regulamentar o disposto no art. 66 da Lei nº 8.383/91, restringiu o direito à compensação. (...)." (TRF 3ª R. – AMS 186.824 – (98.03.102253-9) – SP – 6ª T. – Relª Desª Fed. Diva Malerbi – DJU 22.11.2000 – p. 295). (Nosso destaque).

            "CONSTITUCIONAL E TRIBUTÁRIO. OBRIGAÇÃO TRIBUTÁRIA ACESSÓRIA. DECLARAÇÃO DE CONTRIBUIÇÕES E TRIBUTOS FEDERAIS (DCTF). INSTRUÇÃO NORMATIVA 129/86. ILEGALIDADE. PRINCÍPIO DA RESERVA LEGAL. - A CRIAÇÃO DA OBRIGAÇÃO TRIBUTÁRIA DEVE SER ANTECEDIDA POR LEI ORDINÁRIA, CONSTITUINDO ILEGALIDADE SUA INSTITUIÇÃO VIA INSTRUÇÃO NORMATIVA. - APELAÇÃO E REMESSA OFICIAL TIDA COMO INTERPOSTA IMPROVIDAS. DECISÃO. UNÂNIME." (TRF 5ª Região - Apelação em Mandado de Segurança n.° 55897-AL - Relator: FRANCISCO FALCÃO, Turma:01, Publicação:18/10/1996 - Fonte: DJ Pag:079442). (Nosso destaque).

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            "INSTRUÇÃO NORMATIVA – NATUREZA – CTN, ART. 110 – I – Os atos normativos expedidos pelas autoridades fazendárias têm por finalidade interpretar a lei ou o regulamento no âmbito das repartições fiscais. CTN, art. 100, I – Destarte, se essa interpretação vai além da lei, a questão é de ilegalidade e não de inconstitucionalidade, pelo que esse ato normativo não está sujeito à jurisdição constitucional concentrada. II – Precedente do Supremo Tribunal Federal: ADIn nº 311-9-DF." (STF – ADIMC 536 – DF – T.P. – Rel. Min. Carlos Velloso – DJU 13.09.1991). (Nosso destaque).

            "TRIBUTÁRIO – ICMS – SUJEITO PASSIVO – 1. Somente a lei pode criar substituto tributário (art. 150, § 7º da CF/88). 2. Ilegalidade da instrução normativa que proclama textualmente a substituição tributária com respaldo em convênio e não em lei – comento/88. 3. Recurso provido." (STJ – Ac. 199600562482 – ROMS 7641 – GO – 2ª T. – Rel. Min. Eliana Calmon – DJU 03.04.2000 – p. 00132). (Nosso destaque).

            Não obstante, para os que entendem que há previsão legal da competência da Receita no artigo 16 da Lei 9.779/99, destacamos que essa norma nada menciona sobre a obrigação da DIF Papel Imune, bem como a proibição constitucional de delegação de normas que tratam de direitos individuais (Art. 68, §1o e art. 5o, inciso II, da CF/88).

            Ademais, mesmo que se interprete que a obrigação acessória possa ser criada por meio de instrução normativa, em razão de o CTN exigir apenas lei material, há que se destacar que a DIF Papel Imune, na prática, é tão complexa e trabalhosa de se fazer, exigindo detalhes como tipo de papel, elementos da publicação, formato do papel, unidade de medida, volume, gramatura, datas rígidas etc., que acabou-se por criar uma obrigação principal travestida de obrigação acessória, o que não se pode admitir.

            Mas não é só. A Medida Provisória nº 2.158-35/2001, que criou a aludida multa de R$ 5.000,00 por mês-calendário, não apontou qualquer justificativa para o valor fixado como sanção, que poderia ter sido de R$ 1,00, ou R$ 100.000,00, por mês-calendário, o que agride o Principio da Capacidade Contributiva - visto que nem todas as empresas têm a mesma situação econômica - além dos Princípios da Razoabilidade e da Proporcionalidade, decorrentes do direito ao devido processo legal (artigo 5º, LIV, CF).

            Assim, entendemos que há verdadeiro CONFISCO nessas multas da DIF Papel Imune, algo vedado pela Lei Maior (artigo 150, inciso V), que pode ser definido por uma situação em que um tributo, de tão gravoso, dificulta sobremaneira a exploração das atividades econômicas do sujeito passivo da obrigação tributária, que acaba por inviabilizá-la, ou em outras palavras, quando o Fisco se apropria da galinha, impedindo que ela produza mais ovos.

            Fere-se ainda a Isonomia, pois as demais multas pela ausência de declaração e atraso de outras obrigações acessórias previstas pelo Sistema Tributário Nacional encontram sanções pecuniárias muito menos gravosas.

            Logo, são as conclusões finais:

            a)A Instrução Normativa n.º 71/2001 SRF, apesar de se referir a textos legais, não tem previsão em lei, especialmente no que se refere à instituição da DIF-Papel Imune;

            b)As obrigações tributárias devem ser criadas por meio de leis tributárias formais, pois conforme ensina Carraza, op. cit., p. 466, "Não cria tributo quem quer, mas quem pode, de acordo com a Constituição"; e atos normativos têm função de regulamentar a legislação; não podendo invadir a competência atribuída ao Poder Legislativo;

            c)Nesse sentido, o Poder Judiciário vem afastando a possibilidade de criação de obrigações tributárias, mesmo que acessórias, sem previsão em leis, estas em sentido formal;

            d)A M.P. nº 2.158-/2001 fere o Princípio tributário da Capacidade Contributiva, e os Princípios Constitucionais da Razoabilidade, Proporcionalidade, e Vedação ao Confisco;

            e)A prática atual do Fisco prejudica gráficas e editoras de pequeno e médio porte, e favorece apenas os gigantes desse ramo, que têm capacidade econômica para contratar uma equipe técnica para apenas cuidar da DIF Papel Imune.


Nota

            01

CARVALHO, Paulo de Barros. "Curso de direito tributário", 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 285
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Sobre o autor
Cristiano Finazzi Palhares Ferreira

advogado, pós-graduando em Direito Público

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERREIRA, Cristiano Finazzi Palhares. A abusiva multa por descumprimento da DIF-papel imune. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1534, 13 set. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10409. Acesso em: 5 mai. 2024.

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