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Crimes contra o patrimônio: anotações crítico-metodológicas

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25/09/2007 às 00:00
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O texto traz notas sobre alguns delitos contra o patrimônio, sob visão crítico-metodológica, bem mais abrangente em termos de realidade histórico-sociológica do que as modernas e sofisticadas – mas ilusórias – visões dogmáticas.

Sumário: 1. Introdução 2. Furto 2.1. Furto noturno 2.2. Destruição ou rompimento de obstáculo (furto qualificado) 3. Outras divergências jurisprudenciais 4. Lições dessas divergências 5. Roubo com arma de brinquedo 5.1. o sentido da norma. 5.2. Divergências interpretativas 5.3. Análise crítica 6. Vontade interpretativa 7. Verdade que liberta.


1. Introdução

Elaboro aqui algumas notas e observações esparsas em torno de alguns delitos contra o patrimônio. Elas se destinam a ilustrar, para efeito de ensino e pesquisa, a visão crítico-metodológica do direito penal, bem mais abrangente em termos de realidade histórico-sociológica do que as modernas e sofisticadas – mas ilusórias – visões dogmáticas acerca da matéria.

O assunto, aliás, por sua pertinência, já foi incorporado ao Curso crítico de direito penal (Florianópolis: Obra Jurídica, 1998). O texto é aqui reproduzido, com pequena e sucinta atualização.

Trata-se de uma abordagem realista, apegada aos fatos normativos e, não, a premissas teóricas de limitados alcances práticos (direito positivo) ou de duvidoso cunho ontológico (direito natural). Conforme assinalado em outro contexto, o direito existe objetivamente, como fato histórico, e o mínimo que se deve exigir de um professor, de direito ou de história, é que se atenha aos fatos reais, sem prejuízo do reconhecimento de variáveis interpretativas em torno de suas dimensões e relevância (Direito penal: visão crítico-metodológica. Revista Brasileira de Ciências Criminais, n° 1. São Paulo, RT, 1993, p. 100). V. também: Seis temas sobre o ensino jurídico, org. por Getulino do Espírito Santo Maciel e João Bosco da Encarnação. São Paulo: Cabral Editora, 1995, p.45.

Apesar de alguma afinidade e de um certo apoio logístico, não cogito, a rigor, de uma visão crítico-ideológica, atualmente representada pelos defensores de um direito alternativo, engajados sem rodeios, em nome do ideal de justiça, na luta de emancipação das classes sociais desprotegidas. Mas alguma ideologia sempre subsiste nesse enfoque de ordem crítico-metodológica: a ideologia da verdade. Com uma conseqüência, ao menos como tentativa: a conscientização dos mais jovens, ainda não contaminados pelas aparências ("quanto mais difícil, mais profundo"), sobre o inevitável comprometimento ético de todo e qualquer operador jurídico, seja na atividade pública, seja na esfera privada.

Insisto na conexão entre o direito alternativo e as teses da teoria crítico-metodológica (teoria realista, ou histórico-sociológica). Como pondera, com acerto, Lédio Rosa de Andrade, "O Direito há de ser visto como realmente é: regras de conduta coercitivas oriundas do jogo de poder na sociedade, ou um fenômeno de exercício de poder de maneira normativa". (Introdução ao direito alternativo brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996, p. 319).

O desmascaramento no plano técnico ou epistemológico das contraditórias pretensões da moderna doutrina jurídico-penal legitima, em parte, segundo me parece, o avanço democrático de várias propostas alternativas; e estas, em sentido amplo, que sempre existiram historicamente, a favor ou contra o acusado, facilitam a compreensão de um direito penal pluralista e multifacetado em sua concretude e sedimentação. "Os Tribunais, às vezes nem sempre dentro dos limites estritos do princípio da reserva legal – afirma corretamente Ricardo Antunes Andreucci – agravam a situação dos réus, outras vezes os beneficiam conduzindo os processos a absolvições que a lei, na sua rigidez estática, não possibilitaria"(Direito penal e criação judicial, São Paulo: RT, 1989, p. 85).

Examinemos algumas hipóteses, para análise crítica, no âmbito dos crimes contra o patrimônio.


2. Furto.

2.1. Furto noturno

Constitui crime de furto ( Código Penal, art. 155, caput) "subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel: Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa". A pena aumenta-se de um terço (§ 1º ) se o crime é praticado durante o repouso noturno.

Quem possui uma visão crítica do direito sabe que uma das missões do intérprete é a de eliminar a vagueza e ambigüidade do sistema normativo (no caso, do Código Penal). Em verdade, porém, quando se trata de ambigüidade superficial, ou de vagueza de pequena monta, pode ocorrer que o intérprete, agindo ideologicamente, lhes forneça maior dose de "consistência" para, em seguida, optar pela tese que mais lhe agrada.

Na hipótese de furto noturno havia na doutrina um certo consenso de que essa agravante especial existiria se o crime fosse praticado durante o período de repouso da comunidade. Duas condições: noite e repouso (da comunidade). Partia-se do pressuposto de que a defesa do patrimônio da vítima fica diminuída em razão do recolhimento aos lares da grande maioria da população. À facilidade da execução do furto responde o legislador com a ameaça de uma pena mais severa.

Uma outra corrente se refere ao repouso da vítima: se ela se encontra desperta, na hora do fato, inexiste o acréscimo de pena. Por esse critério se deveria identificar o furto noturno no ato de subtração de algum bem, altas horas da noite, durante o repouso do proprietário.

Não bastou. Eis a reação de alguns tribunais: só vale furto noturno quando cometido em residência habitada, estando a coisa nas proximidades, sob a vigilância teórica da vítima (V., por exemplo, Código penal e sua interpretação jurisprudencial, de Alberto Silva Franco e outros. São Paulo: RT, 5ª ed., 1995, p. 1.908 a 1.912). Assim, não haveria que se reconhecer essa figura delituosa na hipótese de furto de automóvel em plena via pública, praticado à meia-noite, mesmo quando a vítima, seus familiares e a comunidade local se encontrassem dormindo; ou de objetos de valor subtraídos, de madrugada, de estabelecimento comercial ou de garagem coletiva de edifício. Nos dois exemplos, vê-se facilmente, a coisa subtraída não se encontrava no interior de residência habitada. Incabível, pois, a majorante do furto noturno.

Em poucas palavras: há tribunais que, à revelia da lei, exigem mais do que o repouso da comunidade e, mesmo, da vítima. Fogem, pois, da zona de luminosidade do sistema normativo, que se limita a falar em aumento de pena (por sinal, obrigatório) em havendo subtração durante o repouso noturno. Mas a lógica jurídica nem sempre corresponde à lógica da lei, como premissa. E por quê? Qual a explicação cabível?

Num contexto favorável, de ampla liberdade de ação, o operador do direito interfere radicalmente no sistema, substituindo-o, se necessário, por aquele que considera mais adequado, nas circunstâncias.

Como sempre, o direito se constrói a cada momento histórico, em função e a partir dos valores e limitações dos intérpretes com poder decisório.

A lei, apesar das aparências em contrário, e à semelhança do barro nas mãos de um oleiro, lembra uma espécie de massa informe a ser manipulada (com habilidade e prudência) pelo magistrado, mesmo – e sobretudo – nos regimes de estrita separação de poderes. A forma definitiva da lei penal, que também passa pelo crivo e manejo de outros artesãos – por exemplo, autoridade policial, advogado, promotor de justiça – quem a confere é o juiz, na eventualidade de um processo-crime. O texto legal, ora irreconhecível, ora revelando em si mesmo facetas camaleônicas ou vontades contraditórias, só conserva sua potencialidade normativa se alguém se dispõe a carregá-lo nas costas, ainda que a contragosto.

Sabe-se, aliás, que a lei funciona razoavelmente, e com uma certa uniformidade interpretativa, menos na proporção de sua clareza do que de sua aceitação social. É esta que lhe confere legitimidade e, na seqüência, determina maior poder de controle e fiscalização por parte dos próprios destinatários.

Direito é ação, vontade e liberdade interligadas, o que significa dizer que o legislador também é fonte do direito. Mas não porque sua mensagem foi bem entendida, e sim, porque foi acatada por aqueles que, nas circunstâncias, não tinham ou não encontraram melhor opção.

2. 2. Destruição ou rompimento de obstáculo (furto qualificado)

Dentre outras circunstâncias, a pena é de reclusão de 2 (dois) a 8 (oito) anos de reclusão, e multa, se o furto é cometido com destruição ou rompimento de obstáculo à subtração da coisa (art. 155, § 4º, I).

Exemplos corriqueiros: subtração de objetos de uma casa de moradia, precedida de arrombamento de alguma porta ou janela; quebra de uma vitrine de um estabelecimento comercial e retirada, em seguida, das jóias e relógios em exposição; destruição parcial de um cofre-forte embutido numa parede para posterior subtração do dinheiro e outros objetos nele contidos.

De passagem, lembro que o dano em si (CP, art.163) é absorvido pelo crime-fim, o furto, que se torna qualificado.

Nota-se, através dos exemplos, que a coisa subtraída é sempre diversa do obstáculo que sofre o rompimento ou destruição. De um lado, a porta ou janela, de outro, os objetos encontrados dentro da casa; na frente do ladrão uma vitrine ou um cofre-forte, impedindo a execução do furto das jóias e dinheiro. Ao ladrão não interessam as portas ou janelas, ou a vitrine, ou o cofre-forte.

Ensina-se, então, que inexiste furto qualificado se o obstáculo à subtração reside na própria coisa subtraída, segundo suas condições ou natureza. Assim, uma árvore se encontra naturalmente presa ao solo. Se for cortada ou arrancada, com destruição de suas raízes, não será objeto material de um furto qualificado. Desta feita, o que conta para o larápio é a própria árvore, a coisa que ele vai atingir via rompimento ou destruição parcial. Por isso o furto é simples, pois no tipo qualificado a coisa-obstáculo tem que ser distinta da coisa subtraída. Em resumo, exige-se um obstáculo externo à coisa furtada.

Esta teoria, em princípio acatada pela doutrina e jurisprudência, não vem expressa, com todas as letras, no texto do Código Penal. Do silêncio do legislador, no entanto, se colhem maravilhas. Basta que se procure a ratio legis, em latim, ou a razão da lei, em português, para se encontrar no objeto da indagação aquilo que já estava nascendo, e se fortalecia, na mente do pesquisador-exegeta.

Heureca! Pelo método indutivo (exame da série de exemplos) se descobria, por generalização óbvia, o denominador comum do obstáculo extrínseco à coisa que se furtava! Ou seria o inverso, ou seja, pela dogmatização da teoria se arrolavam os exemplos compatíveis?

Não nos importa a resposta, mas a explicação do mecanismo, a indicação dos meandros e técnicas do raciocínio jurídico. No momento em que aderimos à tese em epígrafe estamos, em verdade, admitindo uma interpretação restritiva do texto legal. Não é qualquer obstáculo (interpretação declarativa), mas um obstáculo com determinada característica, implícita no sistema, que está presente na figura delituosa em exame.

Nessa linha de raciocínio, por exemplo – com ou sem acerto do legislador, o detalhe é secundário – não haveria furto qualificado se o agente quebrasse o vidro do automóvel para furtá-lo em seguida. O vidro faz parte da "anatomia" do bem subtraído e, conseqüentemente, sua destruição não poderia justificar o reconhecimento da forma qualificada. Diferentemente, se o sujeito ativo arrebenta a porta de uma garagem para furtar o veículo, aí sim, estariam preenchidas as condições legais.

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Tudo muito bem até certo ponto, enquanto não são percebidos os paradoxos. Ora, se alguém destrói o quebra-vento de um automóvel para furtar, e efetivamente furta, um pacote situado no interior do veículo, esse alguém pratica furto qualificado. Não há subterfúgio capaz de exorcizar a evidência: o quebra-vento é extrínseco ao pacote encontrado sobre o banco e serve de obstáculo, juntamente com outras partes do carro, à retirada desse pacote ou de qualquer objeto em condições semelhantes.

Contraste: dano ao veículo e subtração do pacote igual a furto qualificado; dano ao veículo e subtração do próprio veículo (mesmo levando junto o pacote!) igual a furto simples.

Daí a reação jurisprudencial: "Arreda-se a qualificadora pelo rompimento de obstáculo (rompimento do quebra-vento) em caso de furto de objetos subtraídos do interior do veículo: seria paradoxal dispensar tratamento mais rigoroso a tal agente, do que o dispensado àquele que subtrai o próprio veículo, de maior valor e não recuperado"(TACRIM-SP - AC - Rel. Celso Limongi -JUTACRIM 86/374, in Código penal e sua interpretação jurisprudencial, de Alberto Silva Franco e outros, cit., p. 1931).

Ou: "Forçar ventarola de veículo com o fim precípuo de, ao depois subtrair seus acessórios, não basta para qualificar o furto por arrombamento, vez que se a violação tivesse sido efetuada para furto do próprio veículo, estaria o agente cometendo um furto simples"(TJSC - AC - Rel. Márcio Batista - RTJE 79/235, ibidem, p. 1932).

E mais: "Não responde pela qualificadora o agente que arromba o vidro de automóvel para furtá-lo. Assim, ilógico e contraditório que se entendesse caracterizada quando o furtador, ao invés de subtrair o próprio carro, com todos os seus acessórios, se limita a levar o toca-fitas"(TACRIM -SP - AC - Rel. Oliveira Santos - RJD 6/90, ibidem, p. 1933).

Está nos acórdãos: "paradoxal"; "ilógico"; "contraditório".

Conseqüentemente, outro dogma é imediatamente acionado, o da racionalidade do legislador, a indicar o caminho da equiparação normativa, em benefício do réu.

É visível, no entanto, a mágica do intérprete. A lei, afinal, acabou eliminada do contexto, pois ela deixa de funcionar nas duas hipóteses: de interpretação declarativa (qualquer obstáculo, extrínseco ou intrínseco) ou restritiva (obstáculo extrínseco). O juiz estaria dizendo ao legislador mais ou menos o seguinte: "Ao fazeres distinções dogmáticas artificiais e injustas corres o risco de não seres atendido."

O curioso de tudo isso é que o legislador não pode reagir, ele fala pela boca do intérprete, como diria Montesquieu.

Nada obstante, há quem discorde, e aponte a lei na sua clareza textual: "A qualificadora prevista no art. 155, § 4º, do CP, consubstancia-se na conduta do agente que destrói ou rompe obstáculo à subtração da coisa, vale dizer, na sua atuação sobre qualquer empecilho material a essa subtração, pelo que não há razão lógica ou legal para se fazer distinção entre o obstáculo externo e o inerente à própria coisa, pois ambos têm a mesma finalidade"(TACRIM - SP - AC - Rel. Gomes de Amorim - RJD 5/102, ibidem, p. 1930).

Ou: "Para efeito de qualificação do furto, não cabe distinguir entre obstáculo "inerente" e obstáculo "não-inerente" à coisa. Considera-se obstáculo tudo quanto – estranho à natureza da coisa ou dela fenomenologicamente inseparável – deva ser destruído ou rompido para que se torne exeqüível a subtração". (TACRIM-SP - AC - Rel. Correa de Moraes - RJD 12/86, ibidem, p. 1930).

Por esta última linha de raciocínio haveria furto qualificado se o agente, ao quebrar o vidro, leva o próprio carro ou apenas o toca-fitas do veículo. Interpretação declarativa. Se a lei não distingue, não cabe ao intérprete distinguir. Além disso, ao disciplinar a matéria dessa forma o legislador estaria procedendo corretamente, com lógica. O que conta é o fato de o vidro do carro significar, em si mesmo, uma sólida barreira (obstáculo) para a subtração do automóvel ou de qualquer acessório, objeto, peça ou material situado em seu interior. A racionalidade do legislador residiria exatamente no fato de ele não distinguir entre obstáculos internos ou externos à coisa subtraída. Em ambas as hipóteses se vislumbra a maior impetuosidade e arrogância do ladrão, no gesto de romper ou destruir coisa alheia.

E agora, como ficamos? Que lei é essa, de tantas idas e recuos, que não diz aquilo que parece dizer ou que se amolda à capacidade visual do intérprete? Pelo que observamos acima, às vezes se admite amplamente a forma qualificada; outras vezes se a reconhece com restrições; de repente, nem uma coisa nem outra, a forma qualificada é abolida do sistema!

Ora, novamente nos deparamos com a inevitável interação sujeito/objeto. O sujeito é o delegado de polícia, o promotor de justiça, o juiz de direito, o professor em sala de aula, o jurisconsulto com seus compêndios e manuais. O objeto é a Lei, o Código Penal, a Constituição Federal. Presume-se que os operadores jurídicos disponham de suficiente cabedal téorico, de conhecimentos especializados que justifiquem sua titulação acadêmica e formação profissional. Só que eles não se entendem, ainda que diante do mesmo objeto; e o problema não é de ordem intelectual, via de regra, mas de excesso de receitas intrinsecamente contraditórias, assimiladas e digeridas de um modo único, personalizado, intransferível.

Assim como as leis são vagas e ambíguas, também são vagos e ambíguos os princípios norteadores da hermenêutica jurídico-penal. E mais: ainda existe a chance de o magistrado, pura e simplesmente, descartar a aplicação de um dispositivo legal claro em seu texto e luminoso em seu espírito.


3. Outras divergências jurisprudenciais

É o que ocorre com o ressarcimento do dano antes do recebimento da denúncia, em se tratando de estelionato sob a forma de emissão de cheque sem fundos (art.171, § 2º, VI). De acordo com a Súmula 554, do STF, o pagamento de cheque emitido sem provisão de fundos, após o recebimento da denúncia, não obsta ao prosseguimento da ação penal.

Mesmo que, através de acurada investigação policial, se afirme, em tese, a delituosidade da conduta, ficam abertas as portas da esperança no campo jurídico-punitivo.

Ora, a denúncia, ligada ao processo, não tem nada a ver com a estrutura jurídica de um crime. A eventual boa vontade para com acusados de fino trato contribuiu – juntamente com a necessidade de se desafogar os cartórios criminais – para que se buscassem premissas normativas ausentes do sistema legal. Boa vontade que se estendeu, aqui e ali, apesar das divergências, à figura básica do estelionato (art.171, caput) e ao crime de apropriação indébita (art. 168).

Texto expresso da nova Parte Geral determina somente redução de pena, de um a dois terços, "nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, desde que reparado o dano ou restituída a coisa, até o recebimento da denúncia" (art. 16). Pois bem, nem mesmo a introdução desse dispositivo abalou a convicção de considerável parcela da doutrina e da jurisprudência, inclusive do Pretório Excelso, em torno da validade e persistência da Súmula 554, mais radical, impeditiva de qualquer punição. Súmula essa, no entanto, que jamais abrangeu a hipótese de furto, que é praticado, em regra, por pessoas de poucas posses, rudes, incultas, semi-analfabetas.

Tem-se mesmo a impressão de que o delito em pauta (o furto) se mostra, em tese, para alguns intérpretes, ontologicamente incompatível com as classes abonadas ou de respeitável nível intelectual. Retornemos ao nosso volume de jurisprudência, cit., p. 1903:

"A incerteza quanto ao elemento moral da conduta dos agentes, estudantes bem conceituados, justifica a sua absolvição quando acusados da prática de furto. A solução se impõe perante a possibilidade de se tratar de mera brincadeira levada a efeito após libações alcoólicas"(TACRIM - SP- AC- Rel. Valentim Silva - JUTACRIM 25/129).

Há elegância também neste decisório: "O furto não pode ser aquilatado de modo puramente objetivo, respondendo a criminalidade menos na materialidade do que no elemento subjetivo. Assim, compondo-se o delito de dois elementos, o objetivo e o moral, não há entender antijurídica a conduta de quem, animus jocandi, subtrai e sacrifica, com licença talvez atrevida, animal pertencente a pessoa amiga para a alegria de um churrasco"(TACRIM-SP - AC - Rel. Lauro Malheiros - JUTACRIM 44/213).

Nem todos concordam: "Justamente porque o universitário é um cidadão com instrução acima da média, não pode ignorar que o furto, mesmo disfarçado como brincadeira estudantil, é conduta reprovável, quer sob o ângulo penal, quer sob o prisma da simples moralidade"(TACRIM-SP - AC- Rel. Geraldo Pinheiro - JUTACRIM 34/198).

É em outro acórdão, no entanto, que nos deparamos com importante passagem (ob. cit., p. 1871). Ela nos remete precisamente ao cerne de toda questão ou disputa jurídico-penal, ou seja, à vontade interpretativa:

"A alegação de que procedia sem o animus rem sibi habendi, efetuando simples aposta, uma pilhéria ou farra de estudantes, não convence e apenas tem justificada sua aceitação na medida em que se queira absolvê-los (grifos meus) por serem estudantes universitários, gente de bons princípios, de futuro promissor, voltados ao livro e não ao crime; membros de famílias eleitas, que lhes conferiram educação esmerada e religiosidade profunda... Como se tais atributos, evidentemente duvidosos na caracterização de quem não se peja de, madrugada adentro, furtar coisas alheias, fossem causa justificativa, excludente da criminalidade ou da pena"(TACRIM-SP -AC - Rel. Canguçu de Almeida - JUTACRIM 86/269).

Acrescento uma outra Súmula do STF: "Há crime de latrocínio, quando o homicídio se consuma, ainda que não realize o agente a subtração de bens da vítima"(n° 610).

Desta feita, nenhuma boa vontade para com os acusados. A torpeza da motivação, o nível social da grande maioria dos agentes, o incentivo de outros tribunais, a pressão da mídia (bem antes da Lei nº 8.072/90, dos Crimes Hediondos) e o pavor da comunidade obscureceram a percepção e aplicação de conhecido dispositivo do Código Penal, in verbis: "Art. 14. Diz-se o crime: I – consumado, quanto nele se reúnem todos (os grifos são meus) os elementos de sua definição legal; II – tentado, quando, iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente".

Penalistas do porte de Frederico Marques, Magalhães Noronha, Heleno Fragoso e Nélson Hungria, dentre tantos outros, ainda que divergindo entre si, jamais chegariam ou chegaram à conclusão de um latrocínio consumado. Eles sabiam que a subtração, exigida no artigo 157, não poderia ser eliminada do sistema. O sentimento de reprovação a toda e qualquer conduta latrocida não lhes impediu, na espécie, a fidelidade ao princípio constitucional do "nullum crimen, nulla poena sine praevia lege".

A tese da Súmula decorria de um defeito do Código Penal, pois a tentativa de latrocínio estava a indicar, na época, uma pena de reclusão inferior à pena do homicídio qualificado. E o recurso a esta figura – homicídio qualificado – iria complicar ainda mais a questão, pelo deslocamento da competência para o tribunal do júri.

A necessidade de aparência de legalidade a uma decisão de caráter pragmático (caso típico, em sentido amplo, de justiça alternativa) concorreu para que se elegesse, como premissa, um complemento ou acessório de um artigo (o § 3° do art. 157) em detrimento do próprio caput, que comanda o dispositivo. Abandonou-se a mais elementar das lições hermenêuticas, válida para outras áreas do conhecimento: a busca do sentido de um texto através de uma interpretação lógico-sistemática.

Um modesto parágrafo foi destacado do Código Penal e transformado em regra independente, de peso absoluto, como se retratasse a instrução normativa de uma única lei, composta de um único dispositivo. Só que o isolamento e a posterior dogmatização de um parágrafo representam um atentado à lógica de qualquer sistema normativo. Como entender, então, o endosso de eminentes mestres da doutrina jurídico-penal?

A bem da verdade, o apoio se deu sem entusiasmo, em face do reconhecimento de que não se trata de uma solução dogmaticamente perfeita, amparada na lei. Fala-se em decisão "tecnicamente imperfeita", ou "menos imperfeita". Numa visão crítica, no entanto, nota-se que através desse eufemismo se deixa de registrar pura e simplesmente que se abandonou, na Súmula, o princípio da reserva legal. O apego ideológico ao valor justiça (apenação correspondente à gravidade do resultado e motivo da conduta) superou, desta feita, os pruridos de legalidade e constitucionalidade de grande parte da doutrina e jurisprudência.

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Sobre o autor
João José Caldeira Bastos

professor de Direito Penal da Escola Superior da Magistratura do Estado de Santa Catarina, professor de Direito Penal (aposentado) da Universidade Federal de Santa Catarina

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BASTOS, João José Caldeira. Crimes contra o patrimônio: anotações crítico-metodológicas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1546, 25 set. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10429. Acesso em: 25 abr. 2024.

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