6. Vontade interpretativa
Chegamos à palavra-chave, à categoria jurídica da vontade interpretativa, se bem que pouco lembrada nos manuais de direito penal. Pouco lembrada porque nossos melhores penalistas preferem o elegante debate às claras, o jogo retórico do estéril dogmatismo hermenêutico, na vã esperança de perseguir e guardar para si, ou para sua escola, corrente ou doutrina, a "autêntica" verdade jurídica. Trabalham, honestamente, com sua inteligência, com argumentos que pretendem derivados da lei ou da "natureza das coisas", acessíveis ao que se poderia chamar de uma suposta racionalidade compartilhada.
Fala-se de tudo, desde os pressupostos hermenêuticos de ordem lógico-formal (coerência e harmonia do sistema, por exemplo) às regras gerais de conflito "aparente" de normas (especialidade, subsidiariedade, consunção, fato posterior impunível etc.) e às variáveis argumentativas de sentido pragmático (política criminal, bom senso, lógica do razoável, dentre outras) ou, ainda, de conteúdo ético (por exemplo: justiça, direito natural, analogia, eqüidade).
Operando com esse largo espectro de opções acaba o penalista se esquecendo, apesar disso, de suas inevitáveis contradições intrínsecas, que lhe permitem confundir suas preferências ocasionais com a impossível objetividade das normas que imagina – ou finge – descobrir.
Daí a importância, no plano didático, da indicação de categorias jurídicas de cunho realista, a serem analisadas, como sempre, de forma dialética, ou seja, em suas conexões com outras categorias ou premissas igualmente interligadas: força, poder, vontade, liberdade. Todas elas, é bom que se frise, em sua concretude histórica, o que significa dizer que o direito penal conserva para sempre uma zona de incerteza a ser preenchida aleatória e circunstancialmente.
Os exemplos anotados no capítulo anterior (furto noturno, furto qualificado pelo rompimento ou destruição de obstáculo, súmulas do STF etc.), somados a tantos outros, ilustram a validade de uma visão crítico-metodológica do direito penal. Quer dizer, de um direito penal visto ou encarado sob a ótica de sua própria realidade histórica, sem a máscara das ilusórias encenações dogmáticas, que se alternam entre a pretensa clareza e objetividade das leis positivas e a frágil "cientificidade" de estruturas ontológicas da ação, da culpa, do crime e da pena.
Devem estar vivas em nossa memória, pois foram expressamente citadas, as divergências interpretativas de eminentes ministros do Supremo Tribunal Federal em torno do roubo com emprego de arma de brinquedo. Como explicá-las? Se eles examinam o mesmo processo, ou processo equivalente; se estão diante do mesmo Código Penal; se conhecem a fundo as técnicas hermenêuticas – por que não se entendem na hora do veredicto?
A resposta é clara, fácil, compreensível, mas não faz parte da tradição jurídico-doutrinária, no Brasil. Com as exceções de sempre, penalista que se preza, em solo pátrio, preocupa-se em detectar ou assimilar a "evolução" ou "progresso" da ciência do direito penal, ainda que confusa, fragmentada, esotérica e, não raro, ilusionista. E tudo isso não necessariamente porque ciência penal derivada de outras plagas, mas porque confeccionada sob o pálio de simples tentativas de mudança terminológica, todas elas de fachada, de superfície, à semelhança da moda na indumentária, na música, no corte de cabelo. As intermináveis "revisões" no campo da tipicidade, da ilicitude, da culpabilidade, de que são exemplo os "modernos" princípios da ação finalista, da adequação social, da insignificância, da redução teleológica, do erro de tipo e de proibição, do normativismo ético, e tantos outros, não resolveram e não resolvem a questão, a menos que nossos ministros sejam tidos e havidos como imperitos ou, pelo menos, como profissionais desatualizados, pois divergem sempre, em todas as matérias, penais ou extra-penais.
Qual, então, a resposta? Muito simples: o direito penal, na prática (que, no fundo, revela a teoria), não se resolve com a lei, com o finalismo ontológico da conduta humana, com a doutrina da separação dos poderes, com a objetividade das regras hermenêuticas, com a inteligência dos intérpretes. Não, o direito penal (todo o direito, aliás) pressupõe a conjugação, também, de outras premissas – com a inclusão, é claro, dos itens apontados, de outras teorias dogmáticas, das falácias argumentativas, da subjetividade e preferências do operador jurídico, das condições históricas, da ideologia social predominante – mas premissas de cunho dinâmico, circunstancial, contraditório e, pois, relativo, aglutinadas concretamente sob o denominador comum das categorias básicas da vontade, da liberdade, da força e e do poder.
7.Verdade que liberta
São essas categorias que, em verdade, revelam o direito em sua concretude, mesmo que visivelmente associadas, conforme o caso, à sugestão da lei, como projeto; à personalidade e inteligência do intérprete; e ao suporte ideológico e material da sociedade. Ora, tantas diferenças de estilo, de peso, de expectativas, de influências, de valores – em suma, tantas variáveis juriferantes – só poderiam desembocar na elaboração e construção de direitos penais no plural, claramente personalizados. Direitos confusos, díspares, contraditórios e necessariamente injustos, se examinados sob o prisma da igualdade.
Não há sabedoria de compêndio capaz de esconder, por tanto tempo, essa realidade inerente ao direito enquanto objeto (direito-norma ou fático-normativo) e como teoria ou discurso explicativo desse objeto (ciência do direito penal). É possível que mais cedo ou mais tarde as novas gerações de juristas despertem para a percepção do caráter histórico-sociológico do direito. Sem outros vínculos ou preocupações que os da busca da verdade, terão melhor acesso às condições de mudança, no plano ético-valorativo.
Uma coisa é certa: as condições de mudança não são essas que andam por aí, travestidas de suntuosa modernidade, mas desconhecidas, ao que parece, de todos os nossos tribunais, inclusive do Supremo Tribunal Federal.
"A história, submetendo a tudo, inclusive ao Direito, é terrivelmente efetiva", sintetiza Gladston Mamede (Semiologia e direito: tópicos para um debate referenciado pela animalidade e pela cultura. Belo Horizonte: Editorial 786, 1995, p.147).
Palavra-chave: história. Quem a desconhece ou dela prescinde na dogmática jurídica pode parecer sábio, e talvez o seja; pode parecer forte, e talvez o seja; pode parecer justo, e talvez o seja; pode parecer bem intencionado, e talvez o seja; dificilmente, porém, há de parecer, e certamente não o será, na simbologia do Novo Testamento, o "sal da terra", o fermento e arauto da verdade que liberta.
Referências bibliográficas:
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