3. SISTEMATIZANDO O PROBLEMA: BREVE ANÁLISE DA VIOLÊNCIA COMO MARCO DE PONDERAÇÃO
3.1 REPENSAR A SEGURANÇA PÚBLICA: UM IMPERATIVO PARA UMA MUDANÇA DE CULTURA
A discussão de que se lançou mão até aqui tenciona mostrar a necessidade de ponderação conceitual, ou seja, repensar o conceito de segurança pública no Brasil contemporâneo, visto que a noção que se tem hodiernamente é mesclada por ideologias que marcaram o Brasil nos idos de 1960 e 1970 _ Governos Militares_, período em que ganhou ênfase exponencial a ideia de segurança pública atrelada à noção de “ordem pública”. Esta expressão, vaga de sentido legal, como já visto, contribui para uma compreensão imprecisa da segurança pública, o que compromete um diálogo aproximado com as ideias de proteção das liberdades e defesa dos direitos humanos, consoante explicado no capítulo precedente.
Desse modo, partir da análise conceitual é a meta do presente opúsculo, cujas implicações residem na ponderação de como, hodiernamente, entende-se ou apreende-se a noção de “segurança pública”, enquanto uma das formas de manifestação do Estado. Pois, com efeito, para que uma ideia, noção ou conceito seja o que é, ou diga o que se propõe a dizer, carece seja dado ao conhecimento ao mesmo tempo em que aquilo a que ele remete, visto ser o “conceito” a representação mental de um objeto abstrato ou concreto que se mostra como um instrumento do pensamento em sua tarefa de identificar, descrever e classificar os diferentes elementos e aspectos da realidade.
O “conceito” é, portanto, fruto da linguagem e da análise, sendo, desse modo, produto cultural, e, como tal, relaciona-se com as práticas humanas e com a conduta social. De fato, toda cultura _ compreendida esta como o conjunto de saberes e de práticas sociais _, manifesta-se através da linguagem, aqui entendida em seu sentido amplo. Em outras palavras, o uso da linguagem é indissociável da cultura humana, notadamente no processo de transmissão, construção e modificação do saber. Destarte, os conceitos se ligam às condutas sociais, daí emergindo a preocupação em se repensar a segurança pública no Brasil, com fins últimos de pretender modificações nas práticas sociais e institucionais, hoje estabelecidas em ideias e conceitos anacrônicos e vagos.
De fato, “reforma das instituições passa pela reforma das mentalidades e das consciências, bem como das práticas, que as norteiam em suas metas e juízos mais corriqueiros”.30
Assim, “qualquer tipo de mudança que venha a ser proposto terá que enfrentar desafios que vão além de uma reestruturação de órgãos públicos. Tais desafios perpassam por todos os âmbitos culturais e comportamentais”.31
Portanto, investigar novas perspectivas da análise da “segurança pública” no Brasil poderá ter desdobramentos sociais benéficos, por exemplo, ampliando seu campo conceitual, sinalizando e integrando a noção de direitos humanos com o consequente fomento de uma cultura de segurança pública enquanto direito de todos indistintamente e garantia de exercício das liberdades.
3.2 EM BUSCA DO OBJETO DE INTERESSE DA SEGURANÇA PÚBLICA
Consoante explicado em linhas iniciais, defende-se que as origens da segurança pública, enquanto manifestação do Estado, explicam-se na teoria do contrato social. Desse modo, na senda dos teóricos contratualistas alhures mencionados, é possível conceber que a segurança pública se origina de um “pacto” estabelecido para a preservação da vida e da paz em sociedade, evitando-se o caos e a luta de todos contra todos. Ademais, emerge como responsabilidade do Estado, enquanto um dos produtos desse contrato social, sendo que o homem passa a ser regido por normas que visam ao benefício da coletividade, através da possibilidade do exercício das liberdades, do bem-estar e da segurança.
Assim é que, sem pretender discorrer sobre questões epistemológicas ou aprofundar o tema que, embora merecido, não é o objeto do presente opúsculo, convém ao menos lançar um questionamento sobre o objeto de interesse da segurança pública. E ao se falar em objeto de interesse, há que se falar em realidade, portanto fenomenologia.
Em linhas gerais, pensamos que o objeto de interesse da segurança pública se relaciona com o controle social32. Parte de estudo da sociologia, o controle social pode ser admitido como objeto de interesse da Segurança Pública, porque não há outro desiderato a ser alcançado senão esse, na estrutura social moderna. O contrato social de Rousseau não propugnou senão isto: abstenham-se da liberdade imoderada e o Estado lhes dará segurança33.
Destarte, sob uma perspectiva funcionalista, o controle social tem por finalidade orientar condutas com vistas à preservação da coesão social, diminuindo conflitos e garantindo um convívio pacífico na sociedade. Para Sabadell:
[...] o controle social objetiva impor regras e padrões de comportamento para preservar a coesão social perante comportamentos desviantes. O controle social diminui os conflitos, exprimindo o interesse de todos por usufruir uma vida social ordenada. Neste caso, o controle é considerado legítimo e necessário para a vida em sociedade (“paz”, “civilização”) [...]34
Nesse diapasão, o objetivo do controle social se aproxima do objetivo do próprio contrato social, qual seja: garantir a coesão, a paz, o bem-estar e a segurança de todos.
Ocorre que uma das preocupações do controle social _ e dessa maneira do próprio contrato social _ é a existência da “violência” e do “crime”.35 De fato, a violência, assim como o crime, é sempre uma ameaça à paz, ao bem-estar e à tranquilidade social. De maneira que a violência e o crime, em índices considerados elevados, têm suas repercussões não só na estrutura social, mas também na própria qualidade de vida da sociedade, conforme se verá ao longo deste artigo.
É bem verdade que muitas vezes tais conceitos andam juntos, porém não é certo que eles devam ser confundidos. Isso porque, não obstante o senso comum hodierno por vezes os mencione indistintamente, é fato que existem crimes não violentos, bem como existe violência não tipificada como crime.
Para efeito de delimitação da abordagem ora proposta, não será analisado pormenorizadamente o conceito de “crime” enquanto fato, mas será dada atenção especial ao fenômeno da violência marcada pela tipicidade e antijuridicidade, em outras palavras, pela violência ligada ao crime.
3.3 QUESTÕES TERMINOLÓGICAS DA VIOLÊNCIA
O presente tópico tencionará apresentar alguns conceitos ou enfoques terminológicos sobre a “violência”. Para tanto, expor-se-ão algumas abordagens de autores consagrados e de estudiosos do assunto.
Cabe salientar que não se propõe um aprofundamento temático, tampouco investigar as causas da violência, nem suas expressões históricas ou filosóficas, mas unicamente uma delimitação conceitual, com vistas a unificar o debate ora proposto e consubstanciar o argumento aqui pretendido.
De antemão, é de bom alvitre evidenciar a dificuldade em se definir a violência, notadamente quando fatores culturais e históricos dão sentidos diversos a seus efeitos, conforme afirma Zaluar:
A dificuldade na definição do que é violência e de que violência se fala é o termo ser polifônico desde a sua própria etimologia. Violência vem do latim violentia, que remete a vis (força, vigor, emprego de força física ou os recursos do corpo em exercer a sua força vital). Esta força torna-se violência quando ultrapassa um limite ou perturba acordos tácitos e regras que ordenam relações, adquirindo carga negativa ou maléfica. É, portanto, a percepção do limite e da perturbação (e do sofrimento que provoca) que vai caracterizar um ato como violento, percepção esta que varia cultural e historicamente. As sensibilidades mais ou menos aguçadas para o excesso no uso da força corporal ou de um instrumento de força, o conhecimento maior ou menor dos seus efeitos maléficos, seja em termos do sofrimento pessoal ou dos prejuízos à coletividade, dão o sentido e o foco para a ação violenta.36
A “violência” é um termo usado para designar uma grande variedade de situações, motivo pelo qual se geram muitas confusões e controvérsias. Por outro lado, a violência pode ser observada pela perspectiva de diferentes disciplinas e com interesses distintos. “Deveras, a violência é um conceito que possibilita um número infindável de abordagem: antropologia, psicologia, política, etnologia, etc. E cada novo contexto permite uma definição diferente”37. As ciências jurídicas, por exemplo, estudam a natureza do fato e a forma de punir o agressor, e as ciências sociais e do comportamento olham a violência, em geral, do ângulo do agressor e de suas motivações principais, visando a buscar os fatores que levaram ao ato violento.
De fato, para a concepção jurídica, a violência pode ser apresentada como:
Intervenção física voluntária de um indivíduo ou grupo contra outro, com o escopo de torturar, ofender ou destruir. Ato de constranger, física ou moralmente, uma pessoa para obrigá-la a efetuar algo contra a sua vontade. Alteração danosa do estado físico da pessoa ou grupo. É o emprego ilegal da força, a opressão ou a tirania. Pode também descrever a qualidade da pessoa, grupo violento ou o ato. É sinônimo de irascibilidade, de ação violenta, de coação física ou moral (grifo nosso).38
Também com o escopo de contribuir para o fomento desse debate, o ilustre professor Bobbio enfatiza a definição ao falar em modificação prejudicial, ou danosa, do estado físico do indivíduo:
A violência pode ser direta ou indireta. É direta quando atinge de maneira imediata o corpo de quem a sofre. É indireta quando opera através de uma alteração do ambiente físico no qual a vítima se encontra (por exemplo, o fechamento de todas as saídas de um determinado espaço) ou através da destruição, da danificação ou da subtração dos recursos materiais. Em ambos os casos, o resultado é o mesmo: uma modificação prejudicial do estado físico do indivíduo ou grupo que é o alvo da ação violenta (grifo nosso).39
Na mesma temática, a Organização Mundial da Saúde - OMS define “violência” como:
O uso intencional de força física ou poder, real ou como ameaça, contra si mesmo, outra pessoa, ou contra um grupo ou comunidade, que resulte ou tenha uma alta probabilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, mau desenvolvimento ou privação (grifo nosso).40
Já para o Ministério da Saúde, no documento “Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violência”, violência consiste no:
Evento representado por ações realizadas por indivíduos, grupos, classes, nações, que ocasionam danos físicos, emocionais, morais e/ou espirituais a si próprio ou a outros [...]. Nesse sentido, apresenta profundos enraizamentos nas estruturas sociais, econômicas e políticas, bem como nas consciências individuais, numa relação dinâmica entre os envolvidos (grifo nosso).41
Dos conceitos epigrafados emergem alguns elementos que lhes são comuns e que, portanto, permitem sintetizar uma ideia de violência para efeito de construção do argumento ora pretendido. Assim, vê-se que o sentido do termo “violência” remete a uma conduta capaz de modificar prejudicialmente o estado de uma pessoa ou grupo de pessoas, causando danos de ordem física e psicológica.
Ademais, alguns autores também falam em classificações ou tipologias de violência, para efeito de sistematização da abordagem. Chesnais, por exemplo, em sua obra “Histoire de la violence”42, distingue no discurso contemporâneo três definições implícitas de violência que contemplam tanto o âmbito individual quanto o coletivo, quais sejam: (1) a violência física, que atinge diretamente a integridade corporal que pode ser traduzida nos homicídios, agressões, violações, estupro; (2) a violência econômica, que consiste no desrespeito e apropriação, contra a vontade dos donos ou de forma agressiva, de algo de sua propriedade e de seus bens; e (3) a violência moral ou simbólica, que trata da dominação cultural, ofendendo a dignidade e desrespeitando os direitos do outro.
Ainda no mesmo sentido, Dahlberg e Krug apresentam três amplas categorias para a violência, segundo as características daqueles que cometem o ato violento:
a) violência autodirigida; b) violência interpessoal; c) violência coletiva. A categorização inicial estabelece uma diferença entre a violência que uma pessoa inflige a si mesma, a violência infligida por outro indivíduo ou por um pequeno grupo de indivíduos e a violência infligida por grupos maiores, como estados, grupos políticos organizados, grupos de milícia e organizações terroristas. Estas três categorias amplas são ainda subdivididas, a fim de melhor refletir tipos mais específicos de violência. Violência auto infligida é subdividida em comportamento suicida e agressão auto infligida. O primeiro inclui pensamentos suicidas, tentativas de suicídio _ também chamadas em alguns países de "para-suicídios" ou "auto injúrias deliberadas" _ e suicídios propriamente ditos. A auto agressão inclui atos como a automutilação. Violência interpessoal divide-se em duas subcategorias: 1) violência de família e de parceiros íntimos – isto é, violência principalmente entre membros da família ou entre parceiros íntimos, que ocorre usualmente nos lares; 2) violência na comunidade _ violência entre indivíduos sem relação pessoal, que podem ou não se conhecer. Geralmente ocorre fora dos lares. O primeiro grupo inclui formas de violência tais como abuso infantil, violência entre parceiros íntimos e maus-tratos de idosos. O segundo grupo inclui violência da juventude, atos variados de violência, estupro ou ataque sexual por desconhecidos e violência em instituições como escolas, locais de trabalho, prisões e asilos. Violência coletiva acha-se subdividida em violência social, política e econômica. Diferentemente das outras duas grandes categorias, as subcategorias da violência coletiva sugerem possíveis motivos para a violência cometida por grandes grupos ou por países. A violência coletiva cometida com o fim de realizar um plano específico de ação social inclui, por exemplo, crimes carregados de ódio, praticados por grupos organizados, atos terroristas e violência de hordas. A violência política inclui a guerra e conflitos violentos a ela relacionados, violência do estado e atos semelhantes praticados por grandes grupos. A violência econômica inclui ataques de grandes grupos motivados pelo lucro econômico, tais como ataques realizados com o propósito de desintegrar a atividade econômica, impedindo o acesso aos serviços essenciais, ou criando divisão e fragmentação econômica. É certo que os atos praticados por grandes grupos podem ter motivação múltipla.43
Dessa breve exposição, pode-se observar que o sentido do termo “violência” remete a uma conduta capaz de modificar prejudicialmente o estado de uma pessoa ou grupo de pessoas, causando danos de ordem não somente física, mas também psicológica. E, além disso, nota-se que a vítima da violência pode ser uma pessoa ou uma coletividade. Em outras palavras, a vítima da violência pode ser o indivíduo ou mesmo a sociedade.
Feitas as breves considerações terminológicas da “violência”, convém agora aproximar o debate da realidade brasileira contemporânea e buscar fazer uma análise que, embora concisa e inicial, seja imprescindível para identificar as vítimas de algumas modalidades de violência, a manifestação de alguns danos resultantes e a abordagem interdisciplinar do assunto, consubstanciando o argumento pretendido em linhas iniciais do presente trabalho.
3.4 O FENÔMENO DA VIOLÊNCIA NO BRASIL CONTEMPORÂNEO: BREVES CONSIDERAÇÕES
A presente abordagem não pretende investigar as causas da violência, nem propor soluções definitivas, mas tão somente evidenciar algumas constatações imprescindíveis ao fomento do diálogo.
Assim, este tópico tem por prelúdio o seguinte fato: “o Brasil passa por momentos complicados”. Isso porque um problema que atormenta todos os dias a vida dos brasileiros é o crescimento vertiginoso da violência. O estado de insegurança pelo qual o Brasil passa é alarmante. De fato, a violência tem-se tornado um dos principais fatores de ineficiência do Estado de Direito no contexto da realidade brasileira atual, e os dados estatísticos ratificam essa preocupação.
A imagem do país está sendo afetada por toda sorte de criminalidade manifestada através de atos de violência, notadamente a violência voltada contra a integridade física e o patrimônio, fazendo do cidadão vítima direta e indireta.
Como vêm indicando vários estudos e pesquisa de opinião pública, o medo diante do crime constitui um dos quesitos principais na agenda de inseguranças e incertezas do cidadão, em qualquer grande metrópole. Na sociedade brasileira, esse sentimento parece exacerbado diante da expectativa, cada vez mais provável, de qualquer um ser vítima da ofensa criminal. Em pesquisa realizada no rio de Janeiro, observou-se que cerca de 30% dos entrevistados já haviam sido assaltados; 77% já tiveram algum morador de sua residência assaltado; 60% não confiam na justiça, proporção um pouco mais elevada (63%) para a desconfiança na polícia. Nesse mesmo sentido, enquete realizada pela PNAD revelou que, no Brasil, do total de pessoas que se envolveram em conflito criminais, 72% não se utilizaram da justiça para solução de seus problemas (IBGE-DEISO, 1990, v.1). 44
Nesse diapasão, todos os anos o Fórum Brasileiro de Segurança Pública lança o “Anuário Brasileiro de Segurança Pública”, no qual traz dados alarmantes, que, comparados com os de outros países, tornam a situação brasileira trágica.
O problema da violência extrapola a máxima do contexto social. Hoje, muito da violência praticada decorre do ambiente favorável ao crime, considerando a fraqueza da legislação penal e ineficiência da justiça criminal, a falta de estrutura de segurança, os valores distorcidos da sociedade, a falta de educação e de valorização da cultura, a corrupção, além da falta de políticas de segurança pública sistêmica e de longo prazo.
Conforme os coordenadores gerais da sétima edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, Renato Sérgio de Lima e Samira Bueno:
Em meio à comemoração dos 25 anos da Constituição Federal de 1988, no momento em que os governos e as polícias estão administrando as demandas geradas pelas manifestações sociais que tomaram as ruas desde junho deste ano e, ainda, no contexto da definição dos contornos da disputa eleitoral de 2014, segurança pública continua sendo um tema tabu no Brasil.45
Analisando a temática da violência no contexto brasileiro, o professor Bittar diz que:
A violência que entrecorta o Brasil é a mesma que afasta investidores, leva à morte milhares de vítimas, provoca o encarecimento de produtos e serviços segurados, fomenta injustiças sociais, determina políticas de segurança truculentas, constrói o medo social, legitima frentes de ação popular conservadoras, degenerando os laços da vida social. 46
O autor, ainda discorrendo sobre a violência no Brasil, em sua obra “Violência ou realidade brasileira: civilização ou barbárie?”, diz que essa é uma questão que aflige não somente a reflexão em torno do assunto, mas também a própria vida de homens e mulheres, em qualquer condição social, econômica ou política.47
Para o autor, a violência se produz e reproduz de modo circular, perpetuando-se de modo pernicioso na dinâmica da organização da vida social. Nessa senda, alerta para um ciclo de traumatizações sociais, que tende a aumentar na medida em que a violência cria reações sociais, o que alimenta ainda mais o ciclo de que se falou. Em suas palavras:
Thánatos atrai Thánatos. Dessa forma, desenvolvem-se sentimentos e raciocínios sociais que, do ponto de vista da população atemorizada, acabam por ser as bases para a incrementação de reações truculentas e investidas autoritárias contra a própria sociedade [...]48
Nessa esteira, observa-se a população acossada, com suas liberdades mitigadas, atemorizada diante das cotidianas violações que restam impunes perante um Estado de Direito incapacitado para agir de maneira eficaz na prevenção e repressão da violência brasileira. Ademais, a vida em sociedade se torna um verdadeiro jogo de troca de culpas, cujo desfecho é a perda para ambas as partes: sociedade e Estado.49
Para Bittar, mediante tal circunstância, “a dilatação da busca social por segurança torna-se esquizofrênica, assim como a busca do culpado social”50. Tudo isso dá vida a uma forma de visão de mundo altamente sadista e autoritária, na medida em que passa a desejar o prazer (segurança, paz, justiça) a partir do desejo de aplicação da dor (tortura, pena de morte, linchamento) sobre o próprio corpo da sociedade.51
Isso faz com que a sociedade contemporânea se desenvolva como uma sociedade de caráter autoritário, dando claras manifestações de recuo no plano dos direitos humanos. Por isso, as legitimadas e ostensivas demonstrações de crueldade e de violência exasperada são aparições de uma patologia social instalada no seio dos modos de organização da sociedade hodierna, que lembram, nas descrições freudianas, processos sadomasoquistas. Isso, de novo, revela manifestações de Thanatos, mas agora de um Thanatos que toma posse de Éros (grifo nosso).52
Assim, a sociedade contemporânea passa a se conduzir com base em uma lógica deveras peculiar, a que o autor chamou de “lógica do atentado”. O regime do atentado é, dessa maneira, incorporado ao dia a dia e se manifesta nessa mecânica em que susto, medo, repulsa, defesa, choque, ataque, intolerância, contra-ataque, sobrevivência, luta, estratégia e golpe se tornam termos corriqueiros.53
“Uma sociedade fomentada no exercício dessa forma de entendimento humano é uma sociedade do medo, da insegurança, da desconfiança e, por isso, necessariamente instável e violenta” (grifo nosso).54
A violência, destarte, atinge não somente o indivíduo vítima direta do ato danoso a sua integridade física, psicológica ou material (patrimonial), mas também a vítima indireta, materializada por todos aqueles que compõem a sociedade, porque, com a presença sempre constante da violência e seu aumento vertiginoso, a população passa a viver acossada e atemorizada, com suas liberdades cada vez mitigadas diante das cotidianas violações do direito à segurança.
3.5 A VIOLÊNCIA E A CONSEQUENTE REDUÇÃO NA QUALIDADE DE VIDA E VIOLAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS
Até agora foi possível perceber que a violência atinge danosamente não só o indivíduo, mas toda uma coletividade. O individuo, porque vítima direta da ação danosa capaz de modificar prejudicialmente seu estado, causando-lhe danos de ordem não somente física, mas também psicológica; já a coletividade, porque a violência tem como uma das consequências atemorizar a população, mitigando suas liberdades e fazendo-a viver alerta em face de uma ameaça sempre constante55.
Nesse último sentido, a violência subverte e desvirtua a função das cidades, ceifa vidas, dilacera famílias e modifica a vida da sociedade para pior, fazendo a população ser consumidora do medo.56
Nos últimos anos, a violência transformou radicalmente as relações sociais, a arquitetura das grandes cidades, o comportamento e os hábitos de seus moradores, assim como suas representações sociais. As pessoas planejam seus deslocamentos, como faziam na Europa da Idade Média. A residência da classe média ganhou novos atrativos, pois tende a ser ocupada por mais tempo pelos moradores, temerosos dos riscos encontrados “nas ruas”.57
Mas não é só, para além dos efeitos mencionados, a presença exacerbada da violência faz uma coletividade padecer consequências de interesse da temática “saúde pública”. De fato, “a violência, pelo número de vítimas e pela magnitude de sequelas orgânicas e emocionais que produz, adquiriu um caráter endêmico e se converteu em um problema de saúde pública em muitos países”58.
Nessa perspectiva, fala-se dos custos do fenômeno “violência”, que faz da sociedade sua vítima indireta.
Os danos, as lesões, os traumas e as mortes causados por acidentes e violências correspondem a altos custos emocionais e sociais e com aparatos de segurança pública. Causam prejuízos econômicos por causa dos dias de ausência do trabalho, pelos danos mentais e emocionais incalculáveis que provocam nas vítimas e em suas famílias e pelos anos de produtividade ou de vida perdidos. Ao sistema de saúde, as consequências da violência, dentre outros aspectos, se evidenciam no aumento dos gastos com emergência, assistência e reabilitação, muito mais custosos que a maioria dos procedimentos convencionais. Cálculos estimam que cerca de 3,3% do PIB brasileiro são gastos com os custos diretos da violência, cifra que sobe para 10,5% quando se incluem custos indiretos e transferências de recursos (Ministério da Saúde. Secretaria da Vigilância em Saúde. 2005. Impacto da Violência na Saúde dos Brasileiros).59
Também no mesmo sentido temos Minayo e Souza:
A violência afeta a saúde porque ela representa um risco maior para a realização do processo vital humano: ameaça a vida, altera a saúde, produz enfermidade e provoca a morte como realidade ou como possibilidade próxima. E a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), em seu documento sobre o tema (1995, 1993), declara que a violência, pelo número de vítimas e a magnitude de sequelas emocionais que produz, adquiriu um caráter endêmico e se converteu num problema de saúde pública em vários países. [...] O setor de saúde constitui a encruzilhada para onde confluem todos os corolários da violência, pela pressão que exercem suas vítimas sobre os serviços de urgência, de atenção especializada, de reabilitação física, psicológica e de assistência social. [...] Porém, o problema não se reduz às lesões físicas e alcança nível incomensurável quando se pensa nas relações e conexões criadas como efeito-causa e causa-efeito. O medo é apenas uma das manifestações da vivência da violência, sobretudo hoje, nas grandes regiões metropolitanas, onde se concentram 75% de todas as mortes por essa causa (grifo nosso).60
Mas também diz a mesma autora, em outra obra:
Em síntese, além dos efeitos diretos e indiretos, físicos e simbólicos, sobre a população, os problemas classificados na rubrica “causas externas” congestionam serviços de saúde, aumentam os custos globais da atenção e afetam a qualidade da cobertura. O atendimento imediato às vítimas e todo o esforço de reabilitação e readaptação representam, hoje, em países como o Brasil, uma sobrecarga dos serviços de emergência dos hospitais gerais, dos centros especializados e dos institutos médico- legais, indicando a necessidade de adequação de recursos humanos e de equipamentos ao crescimento da demanda. Não se pode omitir, também, um efeito por vezes difuso, por vezes direto, que a violência provoca sobre a estrutura e o funcionamento dos serviços de saúde, sobretudo quando os conflitos por eles atendidos afetam os profissionais, pelo amedrontamento, pelas ameaças, pelos danos físicos e/ou psicológicos. Tais situações são hoje frequentes nos hospitais de emergência, nos serviços de emergência dos hospitais gerais e, até, nos centros de saúde.61
Em suma, pode-se dizer, então, que a violência é demasiadamente prejudicial para uma sadia qualidade de vida da população, já que se fala em problemas diversos, entre os quais: efeitos negativos nos planos econômicos, social e psicológico, e também com impactos de médio e longo prazo. A violência, portanto, afeta de maneira negativa o desenvolvimento social e econômico da sociedade. Afeta também a cotidianidade, a liberdade de movimento e nosso direito de desfrutar o espaço social. Dessa maneira, furta da sociedade o direito de fruir de um ambiente saudável e seguro, ferindo de maneira patente direitos humanos de todos.
Mas falar em espaço social, em ambiente saudável, sadia qualidade de vida e direitos humanos, não é outra coisa senão dialogar com um campo específico do direito, a saber: o Direito Ambiental. Eis, por conseguinte, um diálogo verossímil.