A feliz experiência de cruzar o Estado da Paraíba, na condição de professor, juntamente com a equipe técnica do Projeto Oduduwá, aprovado pela Casa de Cultura Ilé Asé d’Osoguiã (CCIAO), com financiamento do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD-ONU)1, nos deu a oportunidade singular de abordar conteúdos pedagógicos relacionados à preservação dos direitos culturais e territoriais das comunidades quilombolas paraibanas, junto a gestores públicos municipais de diversas frentes de atuação, que foram o público-alvo desta edição do projeto. Partindo da capital pessoense rumo ao interior do Estado, o objetivo do Projeto Oduduwá foi efetuar uma capacitação de servidores públicos (professores da rede pública, assistentes sociais, enfermeiros e outros profissionais de saúde, conselheiros tutelares, guardas municipais, agentes administrativos, etc.) e de membros das associações comunitárias, com vistas a colaborar com o diálogo institucional em um total de dez municípios paraibanos, para que estes traçassem planos estratégicos de promoção da igualdade racial, no sentido de assumirem suas competências constitucionais e garantirem efetividade social às normas relacionadas à proteção das comunidades quilombolas e ao enfrentamento do racismo, em todas as suas expressões.
Nesta edição do projeto, entre os meses de março e setembro de 2022, foram visitados pelo “Curso de Formação em Cidadania Quilombola” os seguintes municípios: João Pessoa (quilombo de Paratibe), Conde (quilombos de Gurugi, Ypiranga e Mituaçu), Gurinhém (quilombo de Matão), Dona Inês (quilombo de Cruz da Menina), Alagoa Grande (quilombo de Alagoa Grande), Santa Luzia (quilombos da Serra do Talhado e de São Sebastião), Ingá (quilombo de Pedra d’água), Pombal (quilombos dos Rufino e dos Daniel), Catolé do Rocha (quilombo de Lagoa Rasa, São Pedro, Pau de Leite, Curralinho e Jatobá), Várzea (quilombo de Pitombeira) e Cajazeirinhas (quilombos de Umburaninhas e Vinhas)2. Dentre as metas do projeto, encontrava-se a mobilização em favor da estruturação das organizações administrativas municipais, de modo a fazer contemplar a existência de órgãos e conselhos de igualdade racial no aparato burocrático dos municípios em cujos territórios se encontram comunidades quilombolas e a consequente possibilidade de adesão ao Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial (SINAPIR).3
Em que pese tivéssemos em conta que as especificidades regionais e locais impusessem a necessidade de novas visitas para o fim de maiores aprofundamentos acerca da realidade local dos quilombos encontrados nesses municípios, os encontros foram uma oportunidade rica para que pudéssemos observar, a partir da perspectiva dos discursos particulares, que existem fatores comuns, capazes de revelar traços da discriminação e da desigualdade estruturais e atravessar as histórias pessoais, e que se conectam em função do contexto colonialista brasileiro. Esta atividade de imersão no universo da negritude urbana e rural da Paraíba, oportunizada pelo financiamento do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, se justificava diante do fato de que as hierarquias raciais se tornam de mais difícil compreensão, no senso comum, à medida que a humanidade se distancia do período histórico escravocrata, de modo que as cicatrizes do colonialismo e as características estruturais das relações sociais fundadas no racismo permanecem marcando o cotidiano de indivíduos e comunidades4. O entendimento deste fato, no entanto, pressupõe a reflexão sobre o processo de exclusão histórica, que culminou com a privação efetiva a direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais, em função da discriminação baseada na origem étnico-racial.
A Paraíba é uma das unidades federadas que mais enfrentam desafios, em termos de desenvolvimento econômico e social, em função das profundas disparidades existentes entre as diferentes regiões do país. Com uma concentração significativa de renda nas zonas metropolitanas, especialmente em João Pessoa e Campina Grande, o interior do Estado apresenta índices muito baixos de desenvolvimento humano e econômico5. A região do semiárido, por exemplo, é uma das mais afetadas pela seca e pela pobreza, com baixos índices de escolaridade, expectativa de vida e acesso a serviços básicos de saúde e saneamento. Frequentemente, nessas regiões, as pessoas precisam se deslocar por grandes distâncias para conseguir água potável, sendo escassa a oferta de transporte público. Os carros-pipa que abastecem a água potável chegam a algumas comunidades do semiárido, apenas por ocasião de missão institucional do Exército brasileiro6, como nos informou em campo ANTONIO DE LISBOA DA SILVA, em Várzea/PB, no quilombo de Pitombeira.
A condição das comunidades quilombolas do Estado, equiparadas a comunidades tribais7, segundo os parâmetros internacionais, desperta especial preocupação, tendo em conta o estado crítico do quadro social de garantia de acesso à terra na Paraíba, havendo apenas três casos de êxito em ações de desapropriação e imissão na posse: o quilombo do Bonfim8, situado em Areia/PB (2011), o quilombo do Grilo9, localizado em Riachão/PB (2016) e a comunidade de Caiana dos Crioulos10, localizada em Alagoa Grande (2020). Os quilombos de Matão11, localizado em Mogeiro/PB (2021), e de Pedra D’água12, situado em Ingá (2023) conseguiram êxito parcial na titulação, mas ainda aguardam a conclusão do procedimento, em outras áreas reivindicadas.
A maior parte dos quilombos do Estado da Paraíba, no entanto, está localizada em lugares distantes da zona urbana das cidades, nos limites entre municípios, em locais de difícil acesso, e em regiões inóspitas, desde a era colonial.
Quanto à questão, os quilombolas de Matão, por exemplo, trouxeram a lume o fato de que fazem uso dos equipamentos públicos vinculados ao município de Gurinhém/PB, por conta da maior facilidade para o acesso, já que a comunidade é entrecortada por uma serra. No entanto, após o georreferenciamento, no momento da delimitação territorial, foi constatado pelos técnicos do INCRA que a comunidade de Matão seria geograficamente situada em Mogeiro/PB, ainda que fosse mais próximo do centro urbano de Gurinhém, causando impasses políticos com ambas as prefeituras, que não encaram com bons olhos o uso do aparato de saúde por munícipes vizinhos, por razões econômicas relacionadas a repasses de verbas públicas. A premissa dos municípios, no entanto, por óbvio, afronta o princípio da universalidade que orienta as ações e serviços de saúde, uma vez que o acesso à política sanitária é um direito fundamental, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício. Ademais, os direitos essenciais do homem não derivam do fato de ser ele cidadão deste ou daquele município, tendo, pelo contrário, como fundamento os próprios atributos da pessoa humana.
Acontece que foi a dinâmica da exclusão social que fez com que muitas comunidades quilombolas ficassem adstritas a espaços de isolamento. Em grande parte das vezes, as comunidades quilombolas são marcadas por um processo histórico de ocupação associado a lugares de refúgio, sendo possível imaginar a insustentabilidade da permanência dos negros nas proximidades dos centros urbanos da sociedade escravocrata, na época da vigência do Conselho Ultramarino de 174013. O próprio nome de certas localidades atravessou as gerações, registrando nos mapas das cidades a marca da opressão racial, de modo que até hoje, por exemplo, no município de Ingá/PB, são vastamente conhecidos os bairros de “Mata-negro” e “Senzala”.
Os representantes das comunidades quilombolas relatam dificuldades incomensuráveis para levar as crianças à escola, ou mesmo conseguir um atendimento médico, em função de precisarem se deslocar por estradas de barro, que ficam intrafegáveis em certas estações do ano, havendo localidades em que somente é possível se chegar de trator, como é o caso da comunidade de Serra do Comissário, localizada em Lagoa/PB, no sertão paraibano, conforme relatado por FRANCISCA MARIA DA SILVA (BIDIA). No quilombo da Serra do Talhado, localizado em Santa Luzia, sertão paraibano, é preciso subir uma ladeira extremamente íngreme para se chegar à comunidade. Por muito tempo, o acesso se dava por estradas de barro. Lideranças locais comentaram que, quando morria alguém, o corpo dessas pessoas era conduzido ladeira abaixo pelos parentes, em redes. Em sala de aula, DONA “DA GUIA” comentou que trouxe, do quilombo, o corpo de uma filha falecida em uma bicicleta, para enterrá-la na zona urbana de Santa Luzia.
A visita a tais municípios e o debate sobre a realidade local vivenciada por tais comunidades nos pôs, muitas vezes, diante de descrições de casos reais de violações a direitos humanos, de caráter coletivo e individual, e da precarização da qualidade de vida, em níveis inimagináveis, diretamente decorrente do fenômeno da desigualdade racial, ainda que passados 134 anos da abolição formal da escravidão. Situações emblemáticas concretas, como o fato de uma criança quilombola de Pitombeira, cuja mãe foi vítima de feminicídio, ter sido retratada ao Ministério Público do Estado da Paraíba como “sem risco” por um assistente social da prefeitura municipal de Várzea/PB, ou a condição de Céu das Louceiras14, liderança comunitária do quilombo da Serra do Talhado, Santa Luzia/PB, assassinada pelo próprio marido, mediante emprego de fogo e gasolina, revelam como a marca da violência social expõe particularmente à marginalização pessoas afrodescendentes, muitas das quais seguem sobrevivendo em situação de extrema pobreza. Nesse aspecto, a partir da observação concreta, é possível se vislumbrar a necessidade de uma abordagem interseccional do racismo15, que tenha em conta a crítica feminista negra e atribua especial relevo à situação das vítimas do racismo patriarcal e considere o encontro de gênero e raça como marcadores sociais de exclusão.
A observação in loco da realidade dos quilombos da Paraíba nos forneceu subsídios para constatar, a partir de narrativas emblemáticas, que o racismo na sociedade brasileira é, de fato, estrutural, não faltando no depoimento das pessoas negras visitadas, falas capazes de expor o caráter marginalizante das iniquidades raciais, ainda presentes no cotidiano de tantas comunidades, espalhadas por tantos municípios. Por outro lado, é possível destacar a ocorrência de fatos com estruturação idêntica, a alterarem-se a paisagem e os personagens envolvidos, mantido o caráter excludente do racismo, que atira para o lugar da desvantagem a maior parte da população negra.
A título de exemplo, vale lembrar a fala de BIANCA CRISTINA DA SILVA GREGÓRIO, representante do quilombo de Cruz da Menina, e atual presidente da Coordenação Estadual das Comunidades Negras e Quilombolas da Paraíba (CECNEQ-PB), que nos contou que na cidade de Dona Inês/PB havia uma lenda urbana, altamente preconceituosa, mas repetida pelos munícipes, que estigmatizava os negros da comunidade, tratando-os como “perigosos” e os designando como “canibais”, esclarecendo, no entanto, que não há qualquer registro de antropofagia na localidade, sendo esta apenas uma forma de se rotularem negativamente os oriundos do quilombo. No caso de Cruz da Menina, como se vê, criou-se, por meio do discurso, uma imagem social estereotipada dos moradores da comunidade quilombola, a partir do que se motivam atos de preconceito, não raramente, repercutindo em comportamentos de exclusão e de violência. Não faltaram percepções, em especial por parte das mulheres negras da comunidade, de que esse preconceito é repetido nos espaços públicos, recaindo a excludente impressão até mesmo sobre as crianças quilombolas.
Aos negros, não é difícil perceber o descompasso abissal entre “aquilo que se é” e “aquilo que se diz sobre”, o pacto da branquitude16. A etiqueta de “canibal”, atribuída aos quilombolas de Cruz da Menina, coincide com a etiqueta de “criminoso” e esta categorização é o exercício de um ato de poder, que aqui se revela no plano linguístico. Esta fala nos permite perceber como o “etiquetamento”17 é o resultado de um processo de imputação, que, na verdade, não é aplicado somente no plano discursivo do cotidiano de Dona Inês/PB, mas é, sobretudo, a forma como os negros da localidade são submetidos à condição de “assujeitados”, por meio de discursos falaciosos, mas que, apesar disso, são também replicados preconceituosamente pela mídia, pela polícia, pelo sistema de justiça e pelas demais instâncias de controle social, o que também foi descrito em outros locais visitados.
Curiosamente, uma menção semelhante foi feita por JOSEANE DOS SANTOS, do quilombo de Paratibe, situado em João Pessoa/PB, que relatou à equipe do projeto que sua mãe confeccionava bonecas de pano para vender e que, por ocasião do racismo religioso, passou a ser injuriada como alguém que fazia “vodu” para prejudicar as pessoas, razão pela qual era discriminada na localidade e, em função disso, largou o ofício. FRANCISCO DAS CHAGAS DA SILVA (CHAGAS), importante liderança do movimento negro do município de Cajazeirinhas/PB, morador do quilombo de Vinhas, registrou que “os nego do Gino” é a forma pejorativa com que os quilombolas do município são tratados. Segundo ele, Gino foi um dos primeiros negros a chegar na comunidade e a utilização da expressão geralmente vem acompanhada de observações maldosas, que buscam categorizar os quilombolas de forma negativa e ofensiva, a partir do discurso da inferioridade racial. Chagas comentou ainda que sua avó foi marcada a ferro e fogo quando nasceu e, para que não fosse beneficiada com a Lei do Ventre Livre, seu “dono” não queria aceitar sua libertação e marcou as suas costas com as iniciais e a mulher passou a vida com essa cicatriz, sendo o fato do conhecimento da comunidade.
Assim, discutir o papel do município no contexto da luta antirracista é tarefa que nos põe a pensar (e repensar) sobre o próprio sistema político e a forma como restou organizado o pacto federativo brasileiro. Em que pese a característica da autonomia político-administrativa e financeira das unidades federadas, em suas três instâncias de governo - federal, estadual e municipal -, a verdade é que a maneira como a Constituição definiu a arrecadação de receitas e dividiu as responsabilidades entre os entes federados terminou por prejudicar a capacidade dos municípios de custearem sua própria estrutura. Diante disso, gastos sociais com saúde, educação, moradia, ou ainda mais básicos e fisiológicos como o acesso à água e a alimentação, terminam sendo duramente afetados pela fragilidade municipal, evidente em diversos espaços com que mantivemos contato em campo. Cumpre lembrar que é o município a instância responsável pela execução da “política de ponta”, cabendo aos agentes públicos municipais o difícil papel de lidar diretamente com as demandas reais da cidadania.
Por outro lado, a própria incapacidade das gestões públicas municipais de compreender e efetivar uma política específica para o enfrentamento do problema racial brasileiro, herdado de um sistema colonial escravocrata que perpassou três quartos da História do Brasil, se junta à ausência de recursos próprios como aspecto agravante da desassistência à população negra. A maior parte dos municípios visitados sequer possui uma divisão ou departamento específico para a promoção de políticas públicas com foco na igualdade racial.
Com esteio no conceito de Estado democrático de direito, temos defendido a adaptação da estrutura administrativa à realidade social, a partir da criação de conselhos municipais com foco na igualdade racial, de modo a permitir a reoxigenação da burocracia do Estado com as demandas oriundas das comunidades excluídas pelo processo histórico escravocrata. Os conselhos participativos são espaços de diálogo e envolvimento da sociedade civil na gestão pública, que, quando conduzidos sem interferências de ordem política ou econômica, têm qualificado a perspectiva da construção de políticas públicas democráticas.
O fomento à criação de conselhos de promoção da igualdade racial e a adesão ao SINAPIR pelos municípios projetam a superação das discriminações históricas e reposicionam as instituições de Estado rumo ao alinhamento e à cooperação com a defesa e promoção dos direitos humanos das populações afrodescendentes. Por ora, contudo, embora a maior parte dos prefeitos municipais tenha sinalizado positivamente para a estruturação dos conselhos de igualdade racial, poucas têm sido as iniciativas que efetivamente se concretizaram na forma da institucionalização desses mecanismos de participação política.
Nesse sentido, vimos propugnando que órgãos de controle, como o Ministério Público e o Tribunal de Contas, podem contribuir com a ordem democrática, recomendando e estimulando que os conselhos de igualdade racial passem a constar dos organogramas administrativos municipais. A partir disso, vislumbramos avanços reais na solução das demandas políticas dos quilombos, a exemplo da primeira experiência exitosa, no município de Ingá/PB, cujo Conselho de Igualdade Racial já tem data e pauta para a primeira reunião.