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Reedição de medida provisória rejeitada e fraude à Constituição:

o caso da MP nº 377/07

Leia nesta página:

Foi rejeitada pelo Senado, no último dia 25 de setembro, a Medida Provisória nº 377, de 18 de junho de 2007. Tal ato, entre outras providências, criava a Secretaria Especial de Planejamento de Longo Prazo da Presidência da República, com status de Ministério.

Com a rejeição pelo Senado, criou-se a esdrúxula situação de deixar um Ministro sem Ministério – conseqüência que deveria ter sido ao menos cogitada pelo Executivo, ao adotar a questionável (para não dizer inconstitucional) solução de criar uma pasta por meio de MP.

A questão que buscamos abordar, porém, é outra. O Executivo já demonstrou que considera indispensável a referida Secretaria. Buscando, então, uma maneira de fazê-la ressurgir no mundo jurídico, cogitou-se editar nova Medida Provisória, criando um órgão em tudo semelhante ao rejeitado pelo Senado, apenas com um nome diferente.

A nosso ver, trata-se de saída absurda e flagrantemente inconstitucional.

Absurda porque, fosse o Brasil um país realmente sério, em que a Constituição não se resumisse a um pedaço de papel (como já dizia Ferdinand Lassale na Alemanha do século XIX), não passaria pela cabeça de qualquer governante em sã consciência que o Congresso pudesse aprovar uma Medida Provisória substancialmente igual, apenas porque se lhe mudasse o nome.

Inconstitucional, porque importa em uma flagrante fraude à Constituição.

O conceito de fraude à Constituição é trazido pela doutrina para explicar as ações jurídicas que, embora não afrontem diretamente o texto da Constituição, são com ela, em substância, incompatíveis [01]. Trata-se de manobra ardilosa para violar a Constituição sem que tal violência fique patente. Assim, sob a roupagem de constitucionalidade, esconde-se uma medida na verdade incompatível com a norma fundamental.

A teoria da fraude à Constituição se funda, como se vê, num paradigma pós-Positivista, ou da assim chamada Nova Hermenêutica Constitucional. São pressupostos lógicos dessa teorização a pluralidade de significados do texto normativo (diferença entre norma e texto da norma), a incorporação de valores pela ordem jurídico-constitucional e o conceito de Constituição como sistema aberto de regras e princípios, por exemplo [02].

Realmente, só se pode falar em fraude à Constituição se admitirmos a possibilidade de que um determinado ato esteja amoldado ao texto da norma mas contrarie os valores nela (norma) incorporados. Cuida-se de uma inconstitucionalidade não aparente, mas subreptícia, disfarçada, uma forma vil de tentar ludibriar a opinião pública por meio de uma medida aparentemente constitucional, mas que atinge o próprio âmago da Constituição: os valores [03].

A partir dessa perspectiva, a fraude à Constituição se configura uma das mais insidiosas formas de inconstitucionalidade, seja porque não permite, a priori, a identificação dos defeitos que lhe são inerentes, seja porque ataca o cerne da Constituição moderna, a parte mais importante, a essência mesma da norma fundamental: os valores.

Embora tratando sobre questão distinta (a vinculação do legislador às decisões do Tribunal Constitucional), Canotilho expõe, indiretamente, a vedação a tal comportamento inconstitucional: "Este limite negativo resulta do princípio da constitucionalidade e, como tal, é um limite jurídico-constitucional e não um limite político-institucional assente no simples princípio da confiança entre órgãos constitucionais" [04].

No caso em questão, argumenta-se que a Medida Provisória não contrariaria o art. 62, §10, da CF, segundo o qual "É vedada a reedição, na mesma sessão legislativa, de medida provisória que tenha sido rejeitada ou que tenha perdido sua eficácia por decurso de prazo".

A alegação falaciosa é a de que a Constituição veda a reedição da mesma Medida Provisória, mas não a edição de uma nova MP, mesmo que essa "novidade" decorra de mera modificação acessória, formal, como é o caso do nome da Secretaria.

A intenção de fraude é patente, segundo pensamos. Ora, a Constituição proíbe a reedição de MP rejeitada em respeito à autoridade das decisões do Parlamento, que representa, aceite-se ou não, a vontade popular (art. 1º, parágrafo único, da CF). Assim, editar a mesma Medida Provisória, sem qualquer modificação, ou com modificações apenas tópicas, acessórias, irrelevantes (como é o caso do nome da Secretaria), é de um mau-caratismo político e constitucional sem tamanho. É, para usar a terminologia de Konrad Hesse, a vitória da "vontade de poder" sobre a "vontade de Constituição" [05].

Evidencia-se uma clara intenção de burlar as regras constitucionais, encontrando uma saída aparentemente constitucional para atingir um fim inconstitucional, com violação aos princípios da democracia, do Estado de Direito e da independência e harmonia entre os poderes.

Aliás, ao tratar de tema muito semelhante (reedição de MP revogada), o Supremo Tribunal Federal já decidiu o seguinte:

"MEDIDA PROVISÓRIA. REVOGAÇÃO. POSSIBILIDADE. EFEITOS. SUSPENSÃO DA TRAMITAÇÃO PERANTE A CASA LEGISLATIVA. IMPOSSIBILIDADE DE RETIRADA DE MP DA APRECIAÇÃO DO CONGRESSO NACIONAL. EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 32. IMPOSSIBILIDADE DE REEDIÇÃO DE MP REVOGADA.

1. Porque possui força de lei e eficácia imediata a partir de sua publicação, a Medida Provisória não pode ser "retirada" pelo Presidente da República à apreciação do Congresso Nacional. Precedentes.

2. Como qualquer outro ato legislativo, a Medida Provisória é passível de ab-rogação mediante diploma de igual ou superior hierarquia. Precedentes.

3. A revogação da MP por outra MP apenas suspende a eficácia da norma ab-rogada, que voltará a vigorar pelo tempo que lhe reste para apreciação, caso caduque ou seja rejeitada a MP ab-rogante.

4. Conseqüentemente, o ato revocatório não subtrai ao Congresso Nacional o exame da matéria contida na MP revogada.

5. O sistema instituído pela EC nº 32 leva à impossibilidade - sob pena de fraude à Constituição - de reedição da MP revogada, cuja matéria somente poderá voltar a ser tratada por meio de projeto de lei.

6. Medida cautelar indeferida." [06].

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Felizmente, porém, a idéia vem perdendo força no próprio governo. Busca-se, agora, a proposição por meio de projeto de lei, o que demanda tempo, ou a criação por decreto de um "Ministério Especial", em outra violação à Constituição, por desrespeito ao princípio da legalidade (art. 37, caput), com exorbitância do poder regulamentar do Presidente (art. 84, VI, a).

Menos mal, então, que a idéia fraudulenta esteja em via de ser abandonada, embora não seja bom sinal a simples cogitação de adotar tão inconstitucionais providências.


REFERÊNCIAS

AGRA, Walber de Moura. Fraudes à Constituição: um atentado ao Poder Reformador. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2000.

CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2003.

HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição, p. 22. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991.

SALOMON, Márcia; e SANDER, Letícia. Supreendido, Governo tenta recriar pasta de Mangabeira. In: Folha de São Paulo, ano 87, nº 28.667, 28 de setembro de 2007, Caderno "Brasil", p. A4.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São paulo: Malheiros, 2006.

TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2003.


Notas

01 Cf. AGRA, Walber de Moura. Fraudes à Constituição: um atentado ao Poder Reformador. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2000.

02 Cf. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 1.159 e ss. Coimbra: Almedina, 2003.

03 Cf. TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional, p. 96 e ss. São Paulo: saraiva, 2003.

04 CANOTILHO, J. J. Gomes. Op. Cit., p. 1.011.

05 Cf. HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição, p. 22. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991.

06 STF, Pleno, ADIn-MC 2.984/DF, Relatora Ministra Ellen Gracie, DJ de 14.05.2004, p. 32.

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Sobre o autor
João Trindade Cavalcante Filho

Professor de Direito Administrativo e Constitucional do OBCURSOS/Brasília. Técnico Administrativo da Procuradoria Geral da República, lotado no gabinete do Subprocurador-Geral da República Eitel Santiago (área criminal/STJ). Coordenador e Professor de Direito Constitucional e Administrativo do Curso Preparatório para Concursos e de Capacitação para Servidores, Estagiários e Terceirizados da Procuradoria Geral da República. Ex-professor de Direito Penal e Legislação Aplicada ao MPU do Curso Preparatório para Concursos da Escola Superior do Ministério Público da União. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional (IBDC).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAVALCANTE FILHO, João Trindade. Reedição de medida provisória rejeitada e fraude à Constituição:: o caso da MP nº 377/07. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1552, 1 out. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10470. Acesso em: 2 nov. 2024.

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