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Direito e História: Genny Gleiser, o anti-semitismo na era Vargas e o Habeas Corpus nº 25906/1935.

Um estudo de caso

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4) O reforço do pedido inicial

Em 20 de setembro de 1935 o escritório dos advogados Malcher da Cunha, Antonio Dias Tavares Bastos e Helvécio Monassa, todos do Rio de Janeiro, por delegação da Comissão Executiva do Partido Socialista do Brasil, representado especificamente por Tavares Bastos, protocolou petição, reforçando o pedido inicial, e aduzindo razões, protestando pela liberdade de Genny Gleiser. A petição é datilografada, conta com quatro laudas, e em seguida reproduzo; a citação é extensa, porém suscita que se aprecie a técnica de redação forense da época, bem como o jogo retórico que se desenhava:

"Exmo. Sr. Ministro Presidente da Corte Suprema-

O abaixo-assinado, brasileiro, solteiro, advogado inscrito na Ordem sob o nº 286, com escritório nesta Capital, a Rua do Carmo nº 5, 4º andar, nos autos de hábeas corpus nº 25.906, impetrado em favor de Genny Gleiser, menor de 17 anos de idade, que se acha recolhida à prisão em lugar incerto e não sabido, em virtude de abuso de poder e autoridade do Ministro da Justiça, vem perante V.Excia. expor e requerer o seguinte: A paciente, que conta idade pela qual não é lícito fazê-la responder a processo crime, qual seja ele, sem a observância do que prescreve o Código de Menores, arts. 69 e 86, foi presa há cerca de dois meses em São Paulo, quando assistia a uma reunião estudantil, sem que seus pais tivessem tido notícia de seu paradeiro, que continuou ignorado a todos, até que veio a imprensa descobrir achar-se ela recolhida à prisão comum de um xadrez na cidade de Campinas, estado de São Paulo. Requerida na capital daquele Estado uma ordem de hábeas corpus, perante a instância inferior da Justiça local, considerou-se o juiz a quo incompetente para tomar conhecimento do pedido, em virtude da qualidade da autoridade coatora. Renovado o pedido, desta vez perante uma das varas federais daquele Estado, ainda essa medida não pode ser tomada em conhecimento pelo magistrado de 1ª instância, por ter ficado o mesmo ciente de tratar-se de paciente sofrendo de coação por parte de autoridade cuja jurisdição escapava a sua competência. Acontece que, a 13 do corrente, deu entrada nesta Egrégia Corte um pedido de hábeas corpus em favor da mesma paciente, impetrado pelo serviço de Assistência Judiciária do vespertino A Nota, por seu advogado, Dr. Sylvio Rangel de Fontoura, o qual tomou o número 25.906 e foi distribuído ao Sr. Ministro Relator Olimpio Sá, sendo somente a este remetido o processo a 19 do corrente mês. Entretanto, por uma entrevista coletiva dada à imprensa, e divulgada a 17 deste pela Agência Meridional de publicidade, autorizada a funcionar no país, o chefe da polícia do Estado de São Paulo, de regresso à capital daquele Estado, torna público e notório que a menor presa, Genny Gleiser, "deverá ser brevemente expulsa do país, pois a sua ordem de expulsão já está perfeitamente legalizada, faltando apenas ser visado o seu passaporte". O suplicante, assim entende de aditar ao pedido ajuizado, em processo nesta Egrégia Corte, a preliminar de que seja mandado oficiar, por despacho do Exmo. Sr. Ministro Presidente, ordenando também juntada desta aos autos, com a indispensável urgência, ao Sr. Ministro da Justiça, no sentido de que não seja consumada a expulsão, sustando-se o embarque a que se obrigará a paciente, a vista do que tão claramente deixam perceber as autoridades, até julgar-se este. Pelo que se evidencia ainda, não só das entrevistas das ditas autoridades policiais, cumpridoras de determinações emanadas do Ministro da Justiça, como mesmo pela pena de certos jornalistas oficiosos, de acordo com o que se depara num artigo de O Jornal de 14 do corrente sob a epígrafe de Doux Pays, onde se procura justificar a reclusão e a expulsão da menor paciente, aquelas citadas autoridades teriam forgicado [sic] um processo de expulsão, onde não teve ela as garantia sequer conferidas em lei, desde a nomeação de curador, direito e prazos para produzir defesa, como nem seus pais jamais tiveram notícia do procedimento legal porventura intentado contra sua filha, menor de 17 anos, a quem portanto cabia prover o seu amparo em semelhante transe.Havendo pois uma forma processual a seguir, para que tenha lugar a medida extrema e rigorosa, que é a expulsão, mesmo quando não se trate de uma menor, evidentíssimo se torna que esse banimento imposto à paciente é a culminância a que visava a violência da autoridade coatora, com a prisão efetuada, mantendo a paciente em prisão "incomunicável", de sorte a lhe não ser possível defender-se das acusações com que foram solícitos em mimosear-lhe os aficionados da mentalidade policial que atualmente infelicita a psique ministerial do palácio da Praia do Peixe.Releva acrescentar que a paciente, onde quer que se encontra-se presa, nunca foi dado conhecer pela própria polícia, no frisante propósito de evitar que lhe fosse tentado um meio de defesa à tramóia do processo de expulsão, cujas provas nunca se exibiram, já que se tornava fácil seqüestrá-la, como até hoje, sem nota legal de culpa, como exige a Constituição Federal. Somente pelo que deixa transparecer a societas sceleris autoritatis empenhada na expulsão de Genny Gleiser, procura-se enredar contra ela o pressuposto de que seja uma terrível agitadora comunista, fichada na polícia, com missões secretas da Terceira Internacional, vinda ao Brasil, onde chegou aos 15 anos de idade, especialmente para encabeçar uma revolução social, etc., etc., e mais outras tantas fantasias da delirante imaginação da Ordem Político-Social, como se vê da própria entrevista do mesmo famigerado chefe da polícia paulista. Ora, pela idade evidentemente tenra da paciente, não é crível que possam também os venerandos Srs. Ministros desta vetusta Corte achar que se encontre ela investida de quaisquer missões de ordem a despertar temores de parte de nossas tão consolidadas e nobres instituições sociais.Muito pelo contrário, parece-nos bem que mais atentam contra a essência dessas instituições as más autoridades que investem sem cerimônia contra a família, arrancando do poder de seus pais uma jovem de 17 anos, para expulsá-la do país e expô-la à aventura dos sem destino e ao infortúnio dos que lhe provêm ao sustento e educação. A vingar tal princípio, no pseudo regime democrático em que supomos viver, não estaremos longe algum dia de ver beleguins alçados à condição de julgadores e defensores da segurança pública, virem tomar dos braços das amas crianças ainda de peito, para lhes darem o destino que a sua mentalidade preventiva de futuros surtos revolucionários entender melhor lhes traçar: é o caminho a que se pretende internacionalização das polícias, como ali mesmo preconiza ainda a subserviente inclinação do entrevistado chefe de polícia de São Paulo: a mentalidade policial ditando leis ao mundo! Valha-nos a consciência profundamente jurídica dos nossos tribunais, diante do cafarnaum que se anuncia. Nestes tribunais, ainda resta a sorte da Justiça. Egrégios Srs. Ministros, a salvação de Genny Gleiser está na coragem de afirmardes que todas as menores filhas de família ainda estarão amparadas pela lei contra o golpe de autoridades que abusam de seu poder, no mais funesto dos atentados à sociedade. Fazendo pois o presente pedido para que, urgente e preliminarmente seja oficiado ao Ministro da Justiça, a fim de que suste o embarque da paciente, cuja presença se reclama à sessão de julgamento, espera-se afinal seja concedida a medida impetrada como o foi, com fundamento na Constituição Federal, art. 113, nº 23, tomando o Ministério Público em conseqüência as medidas que entender, ditadas pelo nº 21, in fine, do mesmo artigo do nosso estatuto básico, como de JUSTIÇA".

Essa petição também juntava excertos de jornal, dando conta de movimentação que havia em favor de Genny Gleiser. De São Paulo, publicava-se a seguinte notícia:

"Regressou hoje de sua viagem à capital do país o Sr. Arthur Leite de Barros, secretário de Segurança Pública de São Paulo, que foi tratar de assuntos relativos à sua pasta. O secretário de Segurança Pública foi recebido na estação do Norte por altas autoridades do Estado, delegados de polícia, deputados e numerosas outras pessoas. Em palestra com a nossa reportagem, o sr. Leite de Barros, depois de nos expor os fins de sua viagem, abordou rapidamente o caso da menor Genny Gleiser, secundando as declarações que fez à imprensa carioca informando depois que a menor deverá ser brevemente expulsa do país, pois a sua ordem de expulsão já está perfeitamente legalizada, faltando apenas ser visado o seu passaporte. Finalmente, o secretário de Segurança Pública informou-nos que um dos pontos de seu trabalho consiste em trabalhar para melhor aproximação entre as polícias de S.Paulo e do Rio. É partidário da internacionalização das polícias, o que significa estreita unidade de vistas e de ação entre as organizações policiais internacionais".

No processo há também juntada de notícia publicada na edição de 15 de setembro de 1935, que informava que o Partido Socialista do Brasil envidava esforços para libertar Genny Gleiser, documento que se encontra nos autos do processo que se descreve:

"Solidarizando-se com os que lutam pela libertação da menor Genny Gleiser, arbitrariamente encarcerada pela polícia política, há mais de cinqüenta dias, o C.E. do P.S.B. delegou poderes ao advogado Dr. Tavares Bastos para acompanhar esse caso, no terreno judiciário, para libertação da referida menor".


5) O papel de Assis Chateaubriand

Juntou-se artigo de autoria atribuída ao jornalista Assis Chateaubriand, hostil a Genny Gleiser e partidário de ação mais agressiva, por parte das autoridades policiais. Chateaubriand tinha língua afiada. Por exemplo, certa vez afirmou que "Rui Barbosa era um dos mais notáveis escritores estrangeiros de nosso idioma, deveria ser lido de dicionário em punho" (cf. MORAIS, 1994, p. 103). O paraibano Assis Chateaubriand, a quem Fernando Morais deu o epíteto de Rei do Brasil, viveu relação de amor de ódio com Getúlio Vargas; fora um dos primeiros a apoiar o golpe de 1930, alcançou dramaticamente as forças rebeldes no Rio Grande do Sul. Chateaubriand passava por germanófilo (até onde lhe interessou). Chateaubriand conhecia o idioma alemão, fizera viagem glamorosa à Alemanha do IIIº Reich, registrando a excursão em curioso livro de divulgação. Quanto ao problema de Genny Gleiser, porquanto ela era comunista, Chateaubriand protestava por medidas drásticas e o fazia por meio de artigo virulento, cujo conteúdo segue:

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"Quem não está enxergando limpidamente a técnica e tática comunistas neste alarido em torno de uma jovem romena, agitadora da seção juvenil da III Internacional, e a quem os "camaradas" pretendem fazer passar por uma mártir da truculência policial de São Paulo. A manobra comunista poderá ter sido preparada nas trevas. Mas ela grita as suas origens, acusa a sua procedência, dentro das circunstâncias mais comprometedoras, para aqueles que pensam que não defendem o bolchevismo, senão apenas a liberdade de uma criança. A imprensa carioca está quase toda ela dentro da trama de uma das mais grosseiras mistificações que nossa conhecida Aliança Nacional Libertadora já urdiu estes últimos tempos, para fazer sentir que ela não morreu do mal de sete dias. Um decreto do Ministério da Justiça considerando-a fora da lei e o fechamento de sua sede oficial aqui e nos Estados não seriam o bastante para destruir este esplêndido organismo, concebido e estruturado segundo o sistema moscovita. Os "outlaws" libertadores acabem de promover uma sortida anti-policial e os seus resultados a ninguém é lícito dizer que fracassaram. Faz-se no país inteiro um movimento de simpatia em torno da pequena romena. A maioria da imprensa pinta o aparelho de segurança pública de São Paulo com cores execrandas. O famigerado sentimentalismo brasileiro faz correr rios de tinta urdindo grande e pequenas misérias contra o organismo preposto à defesa da ordem social paulista. O grande público, em horas tais, é o titular de um paradoxal direito de imparcialidade, que é a imparcialidade da ignorância. Ele não examina os fatos. Não os estuda e nem os investiga. Estabelece um ente de razão pela linguagem lavosa e incendiária dos jornais, quando os jornais, no seu noticiário de acontecimentos como esse de Genny Gleiser, traduzem as curvas tendenciosas do repórter simpatizante do comunismo, ao qual a Aliança, do fundo de seus porões de conspiradora, mandou a palavra de ordem. Não reveste nenhum colorido sedutor de perseguição o caso da pequena romena, que os comunistas da imprensa diária de São Paulo e Rio decidiram transformar numa espécie de Joana D´Arc oriental, em véspera de ser queimada pelos borguinhões e pelos ingleses da Ordem Política e Social do Sr. Salles Oliveira. Eu estava em São Paulo quando se suscitou o caso da prisão de Genny. Mandei pesquisar na polícia o que ocorria de verdade a seu respeito. A resposta, haurida de boa fonte, não se fez esperar. Logo no dia de sua detenção puderam as autoridades paulistanas identificar-lhe o retrato no algum de família do nosso confrade Mangabeira Júnior. Ele tinha em seu poder instruções que a III Internacional somente confere a filiados de certa envergadura. Genny não era apenas um membro juvenil da seção de estudantes comunistas. Na sua pasta figuravam documentos demonstrando que ela pesava um pouco mais no seio dos comitês de ação e propaganda do partido na América do Sul. Não era possível, nessas condições, tratá-los como um desses escribas analfabetos que redigem, sem inteligência, com penas rombudas, os dois diários russos nas metrópoles do Rio e São Paulo. A polícia anda certa deixando em paz o muladar sonolento dessas pacatas alimárias. Elas não ofendem o regime e nem a sociedade. Arranham tão somente a gramática, desossam o português e trucidam o bom gosto. Mas acabam sempre inofensivos, sem que, no seu zelo satânico pela causa, arregimentem um prosélito, conquistem um militante. Tal não era o caso de Genny Gleiser. Na monotonia do rebanho dos seus companheiros de ideal, ela se destacava como uma revelação, pelo menos, de vivacidade e de desembaraço precoces (...) Comprovada a sua temibilidade, a polícia só tinha que agir como agiu e está agindo. Ele é uma flor de púrpura insolente, no meio deste espesso trigal de devoradores de ouro moscovita. Jogou a liberdade com destemor, e se a deportarem, honra que lhe seja por ter tido uma coragem de que os seus velhacos defensores não se mostram capazes.A impressão que nos fica do episódio das atividades de Genny Gleiser no Brasil não recomenda a bravura dos que dela se serviram para as manobras de aliciamento em que se encontrou envolvida a polícia de São Paulo. Que cavalheirismo haverá de parte de homens que se utilizam de uma moça de 19 anos para a execução de missões arriscadas da causa? Qual de nós iria servir-se de uma rapariga de tão verdes anos, para vê-la mais tarde dentro da emboscada que lhe armaram os planos inábeis dos seus próprios companheiros? A Aliança Nacional Libertadora será, se assim o quiserem, um partido, com muitos soldados e vários chefes, mas nenhum desses chefes é um "gentleman". Já não era pouco que eles fosses todos jovens burgueses ricos, solidamente montados em palácios e patacões. Agora verifica-se, pelo uso que fazem de mulheres para o exercício de missões que deveriam normalmente caber a homens, que na Aliança Nacional Libertadora as vanguardas competem a Eva, e aos Adões fica esse "doux payx" que o Sr. Getúlio Vargas lhes concedeu, depois que os dissolveu como partido e deixou-os por aí soltos e livres, a ver se podiam lavrar o tento da greve geral de que o ameaçaram tantas vezes".

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Sobre o autor
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Professor universitário em Brasília (DF). Pós-doutor pela Universidade de Boston. Doutor e mestre em Direito pela PUC/SP. Procurador da Fazenda Nacional

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GODOY, Arnaldo Sampaio Moraes. Direito e História: Genny Gleiser, o anti-semitismo na era Vargas e o Habeas Corpus nº 25906/1935.: Um estudo de caso. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1550, 29 set. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10474. Acesso em: 25 abr. 2024.

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