Sumário: 1) Introdução. 2) A Inicial do Habeas Corpus 25906/1935. 3) A Imprensa e as Primeiras Repercussões. 4) O Reforço do Pedido Inicial. 5) O Papel de Assis Chateaubriand. 6) As Informações do Ministro da Justiça. 7) O Julgamento no Supremo Tribunal Federal.8) Conclusões. Bibliografia
1) Introdução
O presente ensaio pretende resgatar e polemizar habeas corpus impetrado em favor de Genny Gleiser, judia de origem romena, acusada de ligações com o comunismo, fatos que se desdobraram em meados da década de 1930. A história de Genny Gleiser me instigou quando eu lia um daqueles livros que marcam, e que parecem que foram escritos para mudar a vida das pessoas. Eu lia Maria Luiza Tucci Carneiro, O Anti-Semitismo na Era Vargas, e me impressionava com revelações impressionantes, fartamente documentadas, relativas ao anti-semitismo durante a ditadura de Getúlio Vargas. Eu pesquisava documentos e textos de Francisco Campos, eminência parda do Estado Novo, jurista oficial do regime, e tudo que se relacionava com aquele momento não me parecia estranho. Além disso, Maria Luiza desconstruía mitos dos bastidores do Estado Novo, alguns ligados ao integralismo, outros não, o que para um professor de direito propiciava manancial interessante para a problematização de nossas verdades normativas.
Maria Luiza, questionava os papéis de Oswaldo Aranha, de algumas figuras do Itamaraty (que se pronunciavam sobre a nocividade da emigração judaica), bem como denunciava a função do jornal Acção, dirigido pelos integralistas, e que veiculava mensagens anti-semitas. O que, por outro lado, não era novidade, dada tradição que revela certo eugenismo em autores como Oliveira Vianna, Alberto Torres, Sílvio Romero, Euclides da Cunha e Nina Rodrigues, todos pranteados pela historiografia clássica que se tem entre nós. Além disso, Genny Gleiser havia sido formalmente acusada de ligações com o partido comunista, o que convergia para a pesquisa que eu desenvolvia.
Genny Gleiser, judia, romena e comunista, jovem de 17 anos, havia sido presa, mal tratada e deportada pela ditadura Vargas, com aval das autoridades judiciárias, em 1935. Segundo Maria Luiza Tucci Carneiro, "(...) Gleiser teve seu trajeto interrompido ao ser resgatada na França, numa ação fantástica, pelos membros do Partido Comunista Francês" (CARNEIRO, 2001, p. 72). Os fatos remetiam a Olga Benário, então companheira de Prestes, também judia e comunista, alemã, que perdeu a vida em campo de concentração, tema de outro ensaio que redigi. O assunto me instigava. Que fazer?
Tentei repassar literatura sobre a prisão de Genny, mas, ao que me consta, e até onde pude alcançar, não havia nada específico. Porém, o nome Gleiser me levava a Berta, antropóloga que fora casada com Darcy Ribeiro [01], misto de antropólogo, literato, político, filósofo e sociólogo que sempre admirei, e que sempre li. Nas Confissões de Darcy há apenas duas referências a Genny, sua cunhada, que ele grafou com J, escrevendo Jenny. A primeira das passagens é lacônica, porém expressiva, e tem como foco Berta, e não Genny:
"Na verdade das coisas, eu me apaixonara por uma menina comunista que tinha uma história heróica. Conheci Berta num comício, quando pedi um cigarro a um companheiro que sustentava outra vara da faixa que abríamos. Ela veio trazer. Nunca mais me deixou. Soube depois o segredo dos mistérios dela, complicadíssima para namorar. Ela era a irmã menor que ficara escondida no Brasil, quando Jenny, a mais velha, jovem ativista, foi banida junto com Olga Benário, a mulher de Prestes, para ser mandada para um campo de concentração na Alemanha. Olga cumpriu seu destino e foi morta lá. Jenny escapou porque portuários franceses, advertidos de sua presença no navio, a tiraram de lá" (RIBEIRO, 2002, p. 138).
A segunda passagem também é esfíngica; Darcy Ribeiro apenas lembrou que Berta vivia preocupadíssima que descobrissem que "(...) era a irmã viva e escondida da célebre Jenny Gleiser" (RIBEIRO, cit., p. 198). Fernando Morais, biógrafo de Olga, ocupou-se de Genny Gleiser, em passagem muito informativa, quando descreve a percepção que o Estado Novo tinha de sua biografada, Olga, como estrangeira nociva. Genny é indicada como precedente perigosíssimo:
"(...) De todos os casos de expulsão de estrangeiros ‘indesejáveis’ de que tivera notícia- e eram centenas e centenas- um, particularmente, Olga acompanhara de perto, ainda em liberdade, pelo noticiário dos jornais, e ficara estarrecida com seu desfecho. Depois de manter presa durante quatro meses, sob a vaga acusação de ‘subversão’, o governo de Vargas decidira deportar uma garota de 17 anos, Genny Gleizer, judia romena, apesar da manifestação de centenas de sindicatos e associações de estudantes e intelectuais, tanto do Brasil como do Exterior. Durante o processo de expulsão de Genny, a opinião pública testemunhara alguns gestos comoventes de solidariedade. Quando se anunciou, por exemplo, que se ela casasse com um brasileiro as leis a protegeriam da deportação, vários escritores e intelectuais se ofereceram como voluntários. Num comício pela libertação de Genny, no centro de São Paulo- onde tinha sido presa- o estudante Paulo Emílio Salles Gomes anunciou que sairia do palanque diretamente para o cartório, em busca de um juiz que oficializasse seu casamento com a garota. Chegou tarde. O jornalista Artur Piccinini, que acompanhava o ‘caso Genny’ para o diário A Platéia, tomara-lhe a frente e havia solicitado ao Juízo de Paz do bairro da Sé, na capital paulista, a publicação dos proclamas para seu matrimônio. Insensível a tudo isto, em outubro de 1935 o governo deportou Genny Gleizer para a Europa" (MORAIS, 1988, p. 188).
Os fatos reportavam-se ao anticomunismo que o governo Vargas protagonizava. Porém, havia algo mais. À época dos fatos, Genny era moça, bem nova, ainda não tinha 17 anos. Vinha da Romênia. Era judia. E o livro de Maria Luiza Tucci Carneiro tratava justamente do modo como o governo Vargas sistematicamente hostilizou judeus, que desesperados na fuga do nazismo não conseguiam vistos para desembarque no Brasil. São fantasmas de uma geração (e a expressão é complemento ao titulo do livro). Francisco Campos, Gustavo Capanema, Filinto Müller, todos pareciam envolvidos na trama. Com honrosas exceções, a exemplo do embaixador Souza Dantas, que tanto lutou pela causa judaica, tem-se a impressão de que o anti-semitismo fora característica muito importante de época que se quer esquecer, não obstante apelo populista prenhe de miopia, e que vê algum progresso em um tempo de tanta violência. A referência à CLT é o exemplo mais recorrente. É que há quem ainda acredite que o avanço do trabalhismo fora conquista do proletariado. Pelo contrário, concessões é que marcaram a normatividade laboral. Ainda, a legislação trabalhista propiciou a Getúlio amplo campo de manobra, explorado até o início da década de 1960, e refiro-me a João Goulart.
O puzzle referente ao anti-semitismo na época de Vargas torna-se ainda mais intrigante, quando se lê, por exemplo, o estudo de Stanley Hilton sobre Oswaldo Aranha. Então chanceler brasileiro junto à ONU, segundo Hilton, "o papel de Aranha nas deliberações [sobre a criação de Israel] seria de apoio discreto, mas intenso, às reivindicações sionistas" (HILTON, 1994, p. 555). Historiografia tradicional vinculou fortemente Oswaldo Aranha à criação do Estado de Israel. Mas não é bem isso que entendi lendo Maria Luiza Tucci Carneiro; é que Oswaldo Aranha simboliza duas faces de um mito, e no entender de Maria Luiza:
"Oswaldo Aranha é considerado uma das maiores personalidades do governo Vargas. Como um dos principais mentores da Revolução de 30, marcou este momento crítico da História do Brasil com uma presença de grande diplomata e mediador político. Analisando o seu desempenho político no período de 1930-1945, rastreamos uma personalidade atuante e persistente ao lado de Getúlio Vargas de quem era amigo íntimo e de confiança (...) Da releitura das biografias escritas sobre Oswaldo Aranha emerge a existência de uma lacuna no que diz respeito a sua atuação como ministro das Relações Exteriores durante o Estado Novo. Foi justamente nessa fase de sua carreira que colocou em prática no Brasil uma política imigratória eminentemente restritiva aos judeus, visto tramitar pelos bastidores do Itamaraty um dos maiores ‘pacotes de correspondência anti-semita´" (CARNEIRO, cit., p. 193).
Essa suposta dubiedade de Oswaldo Aranha poderia ser estendida para mais gente do círculo próximo a Vargas. Os fatos que marcaram o processo e a expulsão de Genny Gleiser poderiam fomentar pesquisa nesse sentido. Esse anti-semitismo me aborrecia há muito tempo. E foi na biografia de Stefan Zweig, esplendidamente escrita por Alberto Dines, que o caso de Genny reaparecia:
"Fato que produz muitas manchetes no Rio de Janeiro e em São Paulo, desde outubro do ano anterior, são as incursões da polícia contra centros operários judeus no Rio de Janeiro. Na praça Onze, foram invadidos o centro cultural dos trabalhadores onde funcionava a redação do semanário judeu comunista Unhoid, ‘O Começo", assim como a cozinha popular e uma escolinha para os filhos dos operários. Prenderam 23 militantes, dos quais 15, por estarem com papéis irregulares, foram deportados para a Alemanha e jamais encontrados. Entre eles, Motel Gleizer, redator do semanário. A polícia chegou até ele porque sua filha Jenny (ou Schendla) foi presa sob a acusação de organizar o primeiro Congresso da Juventude Proletária e Estudantil em São Paulo" (DINES, 2004, p. 50).
Em seguida, Alberto Dines apresentou mais um parágrafo, sumariando a história da judia romena, presa e violentada por integrantes do Estado Novo:
"História dramática: um repórter localizou a moça numa prisão paulista, enquanto armou-se a grita na imprensa para libertá-la. Um aluno da Universidade de São Paulo: Paulo Emílio Salles Gomes, mais tarde preso e torturado, foi um dos que se empenharam na cruzada. Em outubro de 1935, junto com outros militantes judeus, Jenny é deportada secretamente através de Santos, no cargueiro francês Aurigny, para ser entregue ao governo fascista da Romênia. Na França, em conluio com o capitão do barco, estivadores e operários do porto a libertam. Jenny escapa dos nazistas, alguns dos companheiros foram lutar na Espanha, o pai desapareceu. Improvável que o editor Koogan não tivesse tomado conhecimento do caso de Jenny, que foi manchete do vespertino A Noite ao longo de outubro de 1935 e comoveu muita gente, judeus e não judeus" (DINES, cit., loc.cit.).
Em nota de rodapé, Alberto Dines ampliou as informações e explicitou o desfecho da história. Observou que depois da guerra Genny Gleizer teria conseguido entrar nos Estados Unidos, onde teve uma filha. Genny formou-se em psicologia. Em 1982 Genny teria contado sua história para Eva Blay, em Nova Iorque. Foi lá que Genny teria vivido até 1995 (cf. DINES, cit., loc.cit.). Ao que consta, Genny Gleizer nunca voltou ao Brasil. Como havia processo judicial, relativo à expulsão de Genny, o caso também propiciava estudo de história do direito, com base em fonte primária, e que poderia metodologicamente questionar essa história do direito bufa e inocente, apologética e inconseqüente, que hoje se faz no Brasil, com algumas honrosas exceções.
Explico-me melhor. Agora que a história do direito foi incorporada aos currículos dos cursos de direito percebe-se a proliferação de livros-texto, que apresentam uma história do direito singela, baseada em fontes secundárias, sem nenhum nível de problematização, manipuladas, e que se prestam para justificar o que já existe. Não se avança. Transita-se do Código de Hamurábi para o direito romano, da idade média para a revolução francesa (sempre elogiada), da criação dos cursos jurídicos no Brasil para a constituição de 1988. Não há pesquisa específica, com base em fonte primária, e que possibilite investigação criativa e prospectiva da história. Apanha-se um fato do passado e apresenta-se a circunstância como passo indicativo da evolução do direito.
É bem aí que me lembro de outro refugiado, Walter Benjamin, também judeu e também perseguido. Walter Benjamin fugia da França, dominada pelos nazistas. Surpreendido na fronteira com a Espanha, suicidou-se; não conseguiu chegar até os Estados Unidos, onde estavam pesquisadores da escola de Frankfurt, a exemplo de Max Horkheimer, Theodor W. Adorno e Erich Fromm. A propósito, há notícias de uma carta de Erich Auerbach, escrita a Walter Benjamin, e datada de 23 de setembro de 1935, que insinuava eventual possibilidade do filósofo alemão lecionar no Brasil, na Universidade de São Paulo (cf. LÖWY, 2005, p. 9).
Walter Benjamin concebeu a imagem do salto do tigre, em sua XIV tese sobre a história. Segundo Benjamin, o filósofo da melancolia, o historiador avança para o passado, e como um predador apanha o que lhe interessa; usa o que apanhou como quer, faz do pretérito objeto da justificação do presente (cf. BENJAMIN, 1985, p. 261). E é um pouco disso que se vê em alguns livros de história do direito, bem como nas introduções históricas que os vários manuais apresentam. Tem-se relação equivocada entre direito e história, em âmbito de historiografia jurídica tradicional. É essa relação incestuosa que pretendo menosprezar, na medida em que fontes primárias qualificam o núcleo das pesquisas e das conclusões que seguem. Tenho notícias do uso dessa metodologia, em estudo sobre processos sociais, escravidão e justiça em Santos na década de 1880, tema do livro de André Rosemberg, Ordem e Bula (2006).
Foi com esse objetivo que no Supremo Tribunal Federal, junto ao arquivo, fiz carga dos autos do processo de habeas corpus nº 25.906, relativo ao caso de Genny Gleiser. É o estudo desse processo que se tem pela frente, com o objetivo de se vincular direito e história, com base em fonte primária.
2) A Inicial do Habeas Corpus 25906/1935
No dia 13 de setembro de 1935 o bacharel Sylvio de Fontoura Rangel protocolou na Corte Suprema (como então se denominava o Supremo Tribunal Federal) uma petição de habeas corpus em favor de Genny Gleiser, natural da Romênia, menor de idade, e que se encontrava detida pela polícia do regime de Getúlio Vargas, em local desconhecido. Endereçada ao Ministro-Presidente daquela Corte, a peça é manuscrita, consta de duas laudas, e dá início ao pedido de habeas corpus que levou o número 25.906. O Ministro Olympio de Sá foi indicado relator.
Segue a petição inicial, apenas alterando-se os modelos ortográficos, facilitando-se a compreensão do leitor contemporâneo:
"Exmo. Sr. Presidente e demais Ministros da Egrégia Corte Suprema.
O bacharel Sylvio de Fontoura Rangel, cidadão brasileiro, no gozo de seus direitos civis e políticos, casado, advogado com escritório a rua Evaristo da Veiga nº 16, 2º andar, nesta cidade [o Rio de Janeiro], com fundamento no art. 113 nºs. 21, 23 e 24 combinado com o art. 76, letra h, da Constituição Federal, vem perante esta Egrégia Corte Suprema impetrar uma ordem de habeas corpus em favor da menor Genny Gleiser, natural da Romênia, e, que pelo fato de haver, apenas, comparecido a uma reunião de socialistas, como mera assistente, foi seqüestrada pelo Polícia de São Paulo e se acho hoje a disposição do Sr. Ministro da Justiça, em lugar ignorado em infração flagrante e clamorosa das liberdades e direitos consagrados no citado art. 113 da nossa lei magna, sem que ao menos lhe seja lícito qualquer recurso de defesa ou assistência previstos no citado nº 24 do art. 113. De resto, a competência desta Egrégio Tribunal é evidente tendo-se em consideração não só o fato de achar a paciente, a disposição do Sr. Ministro da Justiça, como ainda em face dos termos contidos na (...) citada disposição do art. (...) da lei constitucional em sua parte final. Nesta conformidade, o impetrante afirmando a verdade do alegado requer que tomado conhecimento do remédio ora impetrado e depois de ouvido o Sr. Ministro da Justiça, seja o pedido deferido na forma da lei e dos mais elementares princípios de solidariedade humana. E. deferimento ".
Após datar e assinar, o impetrante estampou os selos indicadores do recolhimento de custas, bem como ainda adicionou mais um parágrafo:
"O impetrante declara que o presente pedido foi inspirado pelo programa a que está sujeito o Departamento de Assistência Judiciária do vespertino ‘A Nota’, do qual se louva de fazer parte o advogado que toma a responsabilidade desta medida".
O pedido impetrado pelo advogado Sylvio de Fontoura Rangel é de simplicidade marcante, e o fecho, que invoca os mais elementares princípios de solidariedade humana é argumento retórico de muita força. Nos termos da peça de habeas corpus, Genny Gleiser, que seria menor de idade (fato que as forças constituídas posteriormente negaram), apenas participara de uma reunião de socialistas, sem maior dedicação ao movimento, o que lhe valeu a prisão, o fato de estar incomunicável, e o desconhecimento de seu paradeiro, circunstâncias que o Dr. Rangel imputou à responsabilidade do Sr. Ministro da Justiça, o que justificou o protocolo do habeas corpus junto ao Supremo Tribunal Federal.
O pedido foi instruído por excertos de jornal, e quase todos do vespertino A Nota, circunstanciando o problema. Além de menor de idade e acusada de vínculo com os comunistas, Genny Gleiser era judia. Este fato pode ser um dos mais importantes que desencadearam os episódios que serão aqui narrados, como já insinuei na sessão introdutória.
3) A Imprensa e as Primeiras Repercussões
O jornal A Nota tomou a frente da defesa de Genny Gleiser, e o fez também mediante a publicação de notícias alusivas à sorte da moça, seqüestrada pela polícia política. O primeiro dos excertos de jornal, do vespertino A Nota, que instruía a petição inicial do habeas corpus, dá conta da seguinte manchete: "Genny Gleiser era uma criança ignorante quando chegou ao Brasil". E em seguida, lê-se: "História de fome e miséria- estudando e trabalhando em São Paulo a jovem romena teria se tornado comunista". A página do referido jornal exibe foto de Genny Gleiser, que parece muito jovem. Ela estava com cabelos curtos, parcialmente cobertos por um chapéu delicado. O olhar é muito expressivo. Há também foto de seu pai, Sr. Motel Gleiser. Ele aparentava ser de meia idade, cerca de 50 anos, usava óculos de aros redondos e possuía duas entradas acima da testa, o que lhe emprestava perfil intelectual. Reproduziu-se trecho de carta de Genny para seu pai. O jornal ainda publicou foto de pequeno excerto da missiva, na qual se via a caligrafia firme da moça. Reproduzo em seguida a notícia do jornal, literalmente:
"A história triste de Genny Gleiser que vem se arrastando por ai, sem que se tenha tomado até agora uma providência séria, parece ter chegado a seu último capítulo com as declarações do chefe de segurança de São Paulo, de que a infeliz romena continuava presa, aguardando, apenas, o decreto que a expulse do território brasileiro. Falando ao Globo o Sr. Barros Leite não se limitou a essas declarações. Foi mais longe. E acrescentou, ainda, que Genny Gleiser, jovem, bonita e perigosa, era um elemento extremista de temer, vindo especialmente da Romênia para organizar e tomar parte do Congresso Juvenil Comunista, que se realizou em São Paulo, e onde foi presa com outras dezesseis moças que assistiam aquelas comemorações".
Na coluna ao lado, publicou-se a versão do pai de Genny, da seguinte forma:
"Ontem, esteve em nossa redação o Sr. Motel Gleiser, pai da menina presa na cadeia pública de São Paulo. Vinha, apenas, disse ele, contrariar um trecho das declarações do chefe de segurança. Justamente aquele em que Genny veio da Romênia especialmente para organizar o Congresso Comunista Juvenil. E contou: - Vim para o Brasil em julho de 1929. A situação na Romênia era precária e eu precisava ter dinheiro para sustentar uma esposa e duas filhas. Vim para o Brasil, terra de liberdade e de trabalho. Ficaram na Romênia minha mulher Rosa e as nossas duas filhas menores, Genny, com 12 anos, e Bertha, com 4. Mas aqui, a sorte não me ajudou logo. E não podendo mandar buscar minha família, nem mandar-lhe o necessário para viver sem fome, fui surpreendido com o suicídio de Rosa. Minha mulher não suportara a vida miserável".
E continuava a entrevista:
"Motel Gleiser fez uma grande pausa: E, depois de um instante, mergulhado em recordações dolorosas, prosseguiu: As duas crianças ficaram abandonadas na Romênia. Sem família, sem teto, sem pão. E foi por intermédio da I.C.A., a organização internacional que fornece aos judeus meios para emigrarem, que Genny e Bertha vieram para o Brasil em 1932. E isso foi conseguido pela intercessão do rabino Raffallovich, cidadão inglês e fascista, que as trouxe em sua companhia. Eram duas crianças que não sabiam ler nem escrever. E não conheciam política. E da vida só conheciam duas coisas: fome e frio. -Assim era Genny quando chegou ao Brasil- disse, depois. Em São Paulo entrou para a escola e para a fábrica. Foi estudar e trabalhar. E naturalmente, ai, com muitas outras companheiras de serviço, é que teria adquirido, com a leitura e com as companhias, as idéias políticas que a levaram a assistir, como muita gente, ao Congresso Juvenil".
O pai de Genny ainda insistia que o caso de sua filha configurava situação isolada. Lembrou que 17 garotas foram presas com sua filha, e que somente Genny não fora até então libertada. Perguntava: Por que somente Genny?
O jornal A Hora também publicou a carta que Genny escreveu a seu pai, cujo conteúdo segue, do modo como estampado no vespertino, adaptando-se tão-somente o regime ortográfico:
HHo
"São Paulo- 8-9-1935.
Querido pai.
Papai, não tenho palavras para lhe agradecer pelas boas notícias que o senhor me forneceu. Estava hoje triste, me sentia tão sozinha, longe de meu pai e de meus colegas, e me sentia com tanta vontade de ser libertada e de estar onde eu pudesse trabalhar e conversar. Quando afinal recebi sua carta, fiquei tão contente, senti-me tão feliz. Tem gente que me compreende, que me defende, que me quer bem. Se papai soubesse, como me consola tal notícia, como fico satisfeita, como fico forte, que logo esqueço do que os malvados me fizeram, esqueço de minha tosse, da cadeia, e me sinto tão consolada. Agradeço-lhe papai, agradeço ao senhor e a todos que se interessam por mim. Quando for libertada, saberei agradecer-lhe de outra maneira. Hoje veio me visitar a minha tia Marche. Ela me falou que o advogado vai requerer amanhã outro hábeas corpus. Que queria saber o resultado. Tenho muitas coisas a lhe escrever, mas agora não posso papai. Já são 5 horas e vão fechar a porta. Na cadeia é assim... Amanhã vou lhe escrever de novo. Faça o passível para eu ser posta em liberdade aqui no Brasil, pois eu sou uma moça tão simples, eu penso que não posso prejudicar ninguém aqui no Brasil e fora disso eu gostaria tanto de ficar aqui... Papai, diga: o senhor não acha um absurdo ter medo de mim? Eu sou capaz de fazer mal a alguém? Papai nunca me abandone. Aceite um abraço de sua filha que lhe quer muito bem. Genny. P.S. escreva em português".
Estudantes da Universidade do Rio de Janeiro compareceram à redação do jornal A Hora e informaram que estavam se mobilizando com o objetivo de libertar Genny. Uma foto mostrava os estudantes, todos muito jovens, vestidos de terno e gravata, como ditava a moda da época. O jornal noticiou que o governo se negava a dar informações objetivas, relativas ao paradeiro de Genny:
"O governo responde sempre com evasivas às interrogações sobre a verdadeira situação de Genny Gleiser. O chefe da polícia, o "revolucionário" Filinto Muller, declarou a um vespertino que em obediência à lei, Genny estava presa à disposição do Ministro da Justiça para ser deportada, por se ter tornado um "elemento perigoso". Por outro lado, na seção de ordem social, negam que ela ali se encontre, o policial português, Serafim Braga, diz, ingenuamente, que nada sabe a respeito. De São Paulo informam que Genny está no Rio e o Ministério do Interior só informa que Genny será deportada como extremista... De todos os pontos do pais as manifestações populares pela liberdade de Genny Gleiser continuam a surgir. A revolta se avoluma e os gritos de protesto se multiplicam".
Esse mesmo jornal comunicava que estudantes no Rio de Janeiro planejavam realizar protesto em favor de Genny. Membros de um comitê acadêmico teriam adiantado ao jornal que estariam dispostos a recorrer à greve, se necessário para que se desse fim ao insulto que se perpetuava sobre o povo brasileiro. Noticiava-se também que na Câmara Federal houve moções de protesto, por parte dos deputados João Neves e Abguar Bastos. Fora redigido requerimento, como segue:
"Requeremos, ouvida a Câmara, que seja informado pelo sr. Ministro da Justiça o motivo da prisão da menor Genny Gleiser, quais as razões porque permanece presa, assim como o local exato onde se encontra. Requeremos ainda informações se há no Ministério da Justiça algum processo de deportação sobre a referida menor. Assinam: Abguar Bastos, Otávio da Silveira, Paulo Sucider, João Neves, Barros Casal, Domingos Velasco, Bias Fortes, Artur Santos, Bandeira Wogan, Ademar Rocha, Acelino Leão, Plínio Tourinho, Otávio Mangabeira, José Augusto, Mota Lima, Hupp Júnior, Oscar Fontoura, Artur Bernardes, Roberto Moreira e Batista Luzardo".
Também na Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro houve protestos. Noticiou-se que o vereador Frederico Trota criticara o Ministro da Justiça, Vicente Rao reproduzindo um excerto da inflamada fala:
"A opinião pública já está formada a respeito deste caso. A condenação formal das autoridades constituídas está lavrada pelo tribunal popular e é uma condenação sem apelação nem agravo. Não é possível continuarmos neste estado de coisas. A vingar o modo de agir da polícia, nós teremos, sem dúvida, de proteger contra incursões dessa ordem, os nossos próprios lares, os nossos filhos menores".
E comentava o redator do jornal:
"Aludindo às lutas populares na França, o orador acrescenta que, apesar de tudo, o governo francês consentiu que nas manifestações de 13 de julho, comunistas e socialistas, democratas e liberais, fossem para a rua defender as suas convicções. E diz que no Brasil o que se vê, é o governo meter no xadrez uma criança, sob o pretexto de que é extremista".