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Princípio da unidade de convicção e ação acidentária, carga eficacial da sentença trabalhista que reconhece o vínculo e reflexos previdenciários.

Duas angustiantes questões para o trabalhador brasileiro

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09/10/2007 às 00:00
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Qualquer jurisdicionado não conseguiria entender esse paradoxo, se numa das justiças competentes para "acidente do trabalho" for considerado como vitimado e na outra não tiver sofrido qualquer sinistro.

1.Generalidades

A despeito de o sistema jurídico pátrio trazer um viés protetivo ao hipossuficiente, o que se tem visto, na realidade, e com muita tristeza, é a depauperação dos direitos dos trabalhadores que, em última análise, são segurados da Previdência Social brasileira (art. 12, da Lei n. 8.212/91).

Bem por isso que há, no plano fático, duas tormentosas situações, quais sejam: a) hodiernamente, a persistir o posicionamento de que as ações acidentárias haverão de ser analisadas e julgadas pela Justiça Estadual, quando propostas em desfavor do INSS, nada obstará que outro seja o entendimento da justiça laboral no momento em que o empregado buscar reparação de tal infortunística em face de seu empregador; b) reconhecido o vínculo de trabalho pela justiça especializada, nenhum tem sido o valor desse ato sentencial perante a autarquia previdenciária, já que a execução de ofício dessas contribuições vem se referindo apenas às verbas elencadas na decisão trabalhista, e, devido a isso, o segurado não aufere, quanto ao benefício previdenciário, esse interstício declarado na totalidade por esta Colenda Justiça.

Qualquer jurisdicionado, em sã consciência, não conseguiria entender esses dois elementares paradoxos: a) quanto à justiça competente para dirimir a globalidade da ocorrência "acidente do trabalho", se em uma delas for considerado como vitimado por tal infausto e na outra não ter sofrido qualquer sinistro; b) ser tido na conta de trabalhador de alguém, por imperativo de uma sentença, e ao mesmo tempo não lograr o auferimento desse tempo mourejado perante o INSS, isto é, ver-se operário pela lira da Poder Judiciário, porém não ser tido na conta de segurado no átrio da previdência social.

Essas indagações, mais do que o ofertamento a uma taxonomia lógica, devem ser encaradas como a busca da satisfação da própria dignidade do trabalhador e a meta maior da consagração da valorização social do trabalho (arts. 7º. e 170, da Lei das Leis), sem perder de vista que a resposta a elas poderá significar maior ou menor crédito a integralidade de uma tutela jurisdicional otimizada.

Abebera-se da doutrina de Flávia Piovesan, em seu livro Temas de direitos humanos; São Paulo: Max Limonad, 2003, p. 390:

"Por tamanha envergadura, afirma-se, no entendimento mais engajado com a ordem constitucional implantada, que "principio constitucional que é, o respeito à dignidade da pessoa humana obriga irrestrita e incontornavelmente o Estado, seus dirigentes e todos os atores da cena política governamental, pelo que tudo que o contrarie é juridicamente nulo".

Assim sendo, este modesto escrito, timbrado que é pela limitação de seu próprio autor, intenta promover, na mente dos operadores jurídicos, a grandeza e a responsabilidade que o temário em comento desafia, máxime para que, sem utopia, abeire-se o máximo possível do que se pode cognominar de Estado Democrático de Direito, preconizado no art. 1º, da Lex Legum.

Perora-se com a imorredoura lição de Norberto Bobbio (in: A Era dos Direitos 3ª. ed., Rio de Janeiro: Campus, 2004), que assenta: "O problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los. Passa da problemática filosófica para a política".


2.Da competência da Justiça do Trabalho para o processamento de lides acidentárias em que se tenha o INSS como parte passiva. Homenagem a uma exegese constitucional balizada no princípio da unidade de convicção.

Principia-se por assercionar que na atual Constituição Federal, em momento algum, tem-se o cometimento da competência para os litígios acidentários típicos (previdenciários) como sendo da Justiça Estadual. O que se vislumbra, a bem da verdade, é que a Justiça Federal Comum não é a adequada para a apreciação de tais demandas, como exsurge da exceção contida no art. 109, I, da Carta Política.

Essa particularidade, aliás, fora apreendida pelo ínclito Min. Sepúlveda Pertence, quando do exame do CC 7204 MG, ao enfatizar:

"Acontece que essa interpretação era tipicamente o que Barbosa Moreira chama de "interpretação retrospectiva", que não observou que, quando se firmou, por exemplo, a Súmula nº 235, não havia apenas a regra excludente da competência da Justiça Federal, mas, também, o art, 123 da Constituição de 1946, o art. 134, § 2º, da Constituição de 1967, e o art. 142, § 2º, da Carta de 1969, isto é, havia também uma outra norma excludente, no capítulo da Justiça do Trabalho, para deixar explícito que a ela não competiria, mas, sim, à Justiça comum dos Estados e do Distrito Federal o julgamento das ações de acidente de trabalho."

Ora, se inexiste norma constitucional que vede à Justiça do Trabalho competência para julgar ações acidentárias promovidas em face do INSS e, sobremais disso, inocorre igualmente qualquer preceito que afete à Justiça Estadual o exame de tais conflitos de interesses, aquilata-se, com meridiana facilidade, que o art. 109, I, da Lei Maior apenas afasta a competência da Justiça Federal Comum, porque a Justiça do Trabalho, igualmente federal, tão somente especializada, pode – e deve – sindicar tudo o que dimana do elemento trabalho, inclusive os fatos danosos dele decorrentes, seja em nível de acidente típico ou mesmo no campo das doenças ocupacionais que equivalham àquele (arts. 19 e 20, da Lei n. 8.213/91).

Sem desmerecer a magistratura brasileira como um todo, é de sabença comum que o juiz do trabalho detém, desde seu recrutamento, um ideário de protetividade aos direitos individuais e sociais dos obreiros, ou seja, foca-se no resguardo de toda e qualquer artimanha que venha a fragilizá-los, conferindo a real dimensão do art. 170 da Carta da República.

Não é à toa que o lente, atual ministro do Supremo Tribunal Federal, Eros Grau, no seu compêndio "A Ordem Econômica na Constituição de 1988". 9ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 157, 175 e 182, afirmou:

"Que a nossa Constituição de 1988 é uma Constituição dirigente, isso é, inquestionável. O conjunto de diretrizes, programas e fins que enuncia, a serem pelo Estado e pela sociedade realizados, a ela confere o caráter de plano global normativo, do Estado e da sociedade. O seu art. 170 prospera, evidenciadamente, no sentido de implantar uma nova ordem econômica." (...) "- a ordem econômica na Constituição de 1988 contempla a economia de mercado, distanciada porém do modelo liberal puro e ajustada à ideologia neoliberal (Washington Peluso Albino de Souza); a Constituição repudia o dirigismo, porém acolhe o intervencionismo econômico, que não se faz contra o mercado mas a seu favor (Tércio Sampaio Ferraz Júnior); a Constituição é capitalista, mas a liberdade apenas é admitida enquanto exercício no interesse da justiça social e confere prioridade aos valores do trabalho humano sobre todos os demais valores da economia de mercado (Jose Afonso da Silva); (...) "... particularmente o que define como fim da ordem econômica (mundo do ser) assegurar a todos existência digna – resulta que valorizar o trabalho humano e tomar como fundamental o valor social do trabalho importa em conferir ao trabalho e seus agentes (os trabalhadores) tratamento peculiar." (A grafia em itálico pertence ao autor da obra referida, contudo parênteses, reticências e negritos são originários deste escritor).

Identicamente, no plano previdenciário, encontra-se, como paradigma ancilar, o vértice do resguardo à pessoa do segurado (arts. 1º. e 2º., da Lei 8.213/91), o que recomenda uma hermenêutica diferenciada no trato de tão sensível questão, em que, na maioria das vezes, está-se diante de cidadãos alquebrados por doença ou por idade.

De jeito que a justiça especializada está guarnecida, tanto pelo mote do zelo, na delicada ocorrência da verificação do acidente do trabalho, tendo em mira o obreiro vitimado e todos os matizes daí decorrentes, quanto pela senda da formação de seus julgadores, sempre atentos à proteção integral dos direitos fundamentais (dignidade humana e valorização social do trabalho).

Nesta esteira verbera Ingo Wolfgang Sarlet, in A eficácia dos direitos fundamentais. 5ª. ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p.56, litteris:

"Os direitos da segunda dimensão podem ser considerados uma densificação do princípio da justiça social, além de corresponderem às reivindicações das classes menos favorecidas, de modo especial da classe operária, a título de compensação, em virtude da extrema desigualdade que caracterizava (e de certa forma, ainda caracteriza) as relações com a classe empregadora, notadamente detentora de um maior ou menor grau de poder econômico".

Não é à toa que o Supremo Tribunal Federal, quando em momento antecedente havia reconhecido que o signo acidente do trabalho haveria de ser curado pela Justiça Estadual, revisitara seu entendimento como se espraia desta ementa:

"CONSTITUCIONAL. COMPETÊNCIA JUDICANTE EM RAZÃO DA MATÉRIA. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E PATRIMONIAIS DECORRENTES DE ACIDENTE DO TRABALHO, PROPOSTA PELO EMPREGADO EM FACE DE SEU (EX-)EMPREGADOR. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO. ART. 114 DA MAGNA CARTA. REDAÇÃO ANTERIOR E POSTERIOR À EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 45/04. EVOLUÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. PROCESSOS EM CURSO NA JUSTIÇA COMUM DOS ESTADOS. IMPERATIVO DE POLÍTICA JUDICIÁRIA. Numa primeira interpretação do inciso I do art. 109 da Carta de Outubro, o Supremo Tribunal Federal entendeu que as ações de indenização por danos morais e patrimoniais decorrentes de acidente do trabalho, ainda que movidas pelo empregado contra seu (ex-)empregador, eram da competência da Justiça comum dos Estados-Membros. 2. Revisando a matéria, porém, o Plenário concluiu que a Lei Republicana de 1988 conferiu tal competência à Justiça do Trabalho. Seja porque o art. 114, já em sua redação originária, assim deixava transparecer, seja porque aquela primeira interpretação do mencionado inciso I do art. 109 estava, em boa verdade, influenciada pela jurisprudência que se firmou na Corte sob a égide das Constituições anteriores. 3. Nada obstante, como imperativo de política judiciária -- haja vista o significativo número de ações que já tramitaram e ainda tramitam nas instâncias ordinárias, bem como o relevante interesse social em causa --, o Plenário decidiu, por maioria, que o marco temporal da competência da Justiça trabalhista é o advento da EC 45/04. Emenda que explicitou a competência da Justiça Laboral na matéria em apreço. 4. A nova orientação alcança os processos em trâmite pela Justiça comum estadual, desde que pendentes de julgamento de mérito. É dizer: as ações que tramitam perante a Justiça comum dos Estados, com sentença de mérito anterior à promulgação da EC 45/04, lá continuam até o trânsito em julgado e correspondente execução. Quanto àquelas cujo mérito ainda não foi apreciado, hão de ser remetidas à Justiça do Trabalho, no estado em que se encontram, com total aproveitamento dos atos praticados até então. A medida se impõe, em razão das características que distinguem a Justiça comum estadual e a Justiça do Trabalho, cujos sistemas recursais, órgãos e instâncias não guardam exata correlação. 5. O Supremo Tribunal Federal, guardião-mor da Constituição Republicana, pode e deve, em prol da segurança jurídica, atribuir eficácia prospectiva às suas decisões, com a delimitação precisa dos respectivos efeitos, toda vez que proceder a revisões de jurisprudência definidora de competência ex ratione materiae. O escopo é preservar os jurisdicionados de alterações jurisprudenciais que ocorram sem mudança formal do Magno Texto. 6. Aplicação do precedente consubstanciado no julgamento do Inquérito 687, Sessão Plenária de 25.08.99, ocasião em que foi cancelada a Súmula 394 do STF, por incompatível com a Constituição de 1988, ressalvadas as decisões proferidas na vigência do verbete. 7. Conflito de competência que se resolve, no caso, com o retorno dos autos ao Tribunal Superior do Trabalho." (CC 7204/MG, Rel.: Min. CARLOS BRITTO, J.: 29/06/2005, Tribunal Pleno, DJ 09.12.2005, p. 5)

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Feita esta necessária digressão, merece ser observado, também, que seria tenebroso que dois órgãos distintos do Poder Judiciário, mesmo frente a um evento único (acidente do trabalho), pudessem concluir de modo díspar ou, em bom vernáculo, apontar que o mesmo trabalhador em uma província jurisdicional fosse tido como envolto no pálio acidentário e em outra reconhecesse que o dito obreiro não estaria jungido a esse malogro.

De há muito se tem consciência que, no campo ortodoxamente processual, nada impede que existam provimentos incompatíveis entre si, como resta sinalizado por Ernane Fidelis dos Santos, em sua obra Manual de Direito Processual Civil, vol. I, 7ª ed., 1999, Ed. Saraiva, pp. 9 e 10:

"O que importa na jurisdição é a função de regular a situação concreta, nada mais. Daí não serem absurdas, sob o aspecto lógico, as contradições que possam surgir em dois ou mais julgamentos, quando os efeitos práticos de um não excluírem os do outro. Dois funcionários públicos, dentro das mesmas condições, foram exonerados por ato do Governador do Estado. Separadamente, socorreram-se ao Poder Judiciário. O primeiro logrou êxito; o ato governamental foi julgado ilegal. O segundo não teve a mesma sorte; o juiz que conheceu o pedido julgou-o improcedente, considerando legal o ato do Executivo. Duas causas, fundamentação e pedidos idênticos, mas sem manterem a identidades de partes, tiveram destinos diversos. O primeiro julgamento, porém, não conflita com o segundo nos seus efeitos práticos. Daí, sob o aspecto processual, ter cada um sua validade real, com efeitos determinados e não conflitantes. (...) Aconselha-se o julgamento conjunto de causas conexas, não porque possa haver interferência de um feito no outro, mas para evitar decisões conflitantes nos fundamentos que, de alguma forma, podem causar desprestígio à justiça."

Porém, no patamar ontológico, tal cometimento não é de bom tom e mais recentemente em que se visualiza o processo como veículo que almeja a obtenção de uma decisão justa, isto é, quando se colima a maior gama de resultado possível, impensável se torna albergar veredictos contraditórios sob pena de vilipêndio ao princípio da unidade de convicção.

Neste rumo é a lição do professor Cândido Rangel Dinamarco, em sua obra Instituições de Direito Processual Civil, vol. I, 3ª ed., Malheiros Editores, p. 108:

"Diferente é o posicionamento moderno, agora girando em torno da idéia do processo civil de resultados. Consiste esse postulado na consciência de que o valor de todo sistema processual reside na capacidade, que tenha, de propiciar ao sujeito que tiver razão uma situação melhor do que aquela em que se encontrava antes do processo. Não basta o belo enunciado de uma sentença bem estruturada e portadora de afirmações inteiramente favoráveis ao sujeito, quando o que ela dispõe não se projetar utilmente na vida deste, eliminando a insatisfação que o levou a litigar e propiciando-lhe sensações felizes pela obtenção da coisa ou da situação postulada."

O esteio, o axioma mesmo da segurança jurídica, que sustenta uma prestação jurisdicional compreensível pelo consumidor dela, está fincado no cânone da unidade de convencimento.

A respeito da unicidade de cognição, colaciona-se o registro de Iolmar Alves Baltazar, na matéria intitulada "A nova Justiça do Trabalho e a noção de totalidade concreta", publicada no site Jus Navigandi nº 1019 (16.4.2006); elaborado em 01.2006; acessado em 15.08.06, ao vaticinar que:

"Segundo o princípio da unidade de convicção, como enunciado e formulado pelo Ministro Cezar Peluzo no CC nº 7.204-1, "não convém que causas, com pedidos e qualificações jurídicos diversos, mas fundadas no mesmo fato histórico, sejam decididas por juízos diferentes". Nesse sentido, conclui o Ministro Peluzo que se o mesmo fato houver de ser submetido à apreciação jurisdicional por mais de uma vez, o mais razoável é que o seja pelo mesmo ramo judiciário, "por conta dos graves riscos de decisões contraditórias, sempre ininteligíveis para os jurisdicionados e depreciativas para a justiça"."

Não se tem qualquer dúvida que um trabalhador que ingressasse com duas demandas – uma na faina da Justiça Estadual, postulando benefício acidentário a ser prestado pela Autarquia Previdenciária e outra perante a Justiça do Trabalho, pugnando reparação dos danos decorrentes do malsinado ato, agora desejoso de que seu ex-empregador viesse ressarci-lo –, não compreenderia se aquela primeira afastasse a capitulação do acidente, mormente porque esta última estaria esvaziada para julgar com cognição exauriente este mesmo ponto fático.

Esta, inclusive, foi a alumiada impressão do magistrado laboral mineiro Julio Bernardo do Carmo, na matéria "Da competência da Justiça do Trabalho para apreciar e julgar pedidos de indenização por danos materiais e morais decorrentes de acidente de trabalho. Competência absoluta ou condicionada?", inserido no Jus Navigandi nº 736 (11.7.2005); elaborado em 06.2005; acessado em 15.08.2006, ao pontificar:

"E assim era porque se a competência genuína e originária para apreciar todo e qualquer litígio que tivesse como substrato jurídico o acidente de trabalho era da Justiça Comum, a quem compete inclusive pronunciar-se sobre a caracterização ou não do próprio acidente do trabalho no plano fático-jurídico e uma vez tendo decidido, e.g., aquele segmento do Poder Judiciário pela ocorrência ou inocorrência do acidente de trabalho, que margem de decisão sobraria para a Justiça do Trabalho apreciar o mesmo fato em face de empregador, qual seja, a caracterização ou não do acidente de trabalho ? A rigor, nenhuma. A não ser que, ferindo-se o princípio da unidade de convicção, pronunciasse existir o acidente de trabalho quando este foi tido por inexistente pela Justiça Comum ou pronunciasse inexistente o mesmo fato quando na Justiça Comum tal fato foi dado por incontroverso."

Inobstante, logicamente até mesmo por refugir do thema decidendum do CC 7204 MG, o preclaro Min. Carlos Britto enveredara-se pela competência da Justiça Estadual para volver a casuística acidentária que se relacione com o INSS. Não deixara, por outro lado, de esboçar interessante excerto, ao afirmar que:

"A causa e seu efeito. Porque sem o vínculo trabalhista o infortúnio não se configuraria; ou seja, o acidente só é acidente de trabalho se ocorre no próprio âmago da relação laboral. (...) Aspecto em que avulta a especialização mesma de que se revestem os órgãos judicantes de índole trabalhista. É como dizer: órgãos que se debruçam cotidianamente sobre os fatos atinentes à relação de emprego (muitas vezes quanto à própria existência dela) e que por isso mesmo detêm melhores condições para apreciar toda a trama dos delicados aspectos objetivos e subjetivos que permeiam a relação de emprego." (ausentes da fonte reticências que estão encartadas dentro do parêntese).

Portanto, a relação-base, a matriz de um acidente do trabalho, é o desempenho da atividade laboral, de sorte que o reflexo previdenciário é de natureza secundária e, dito isto, se torna impensável que a Justiça do Trabalho possa aquilatar a própria causa fundante (relação de trabalho) e por uma contradição inexplicável, não possua competência para verificar um espectro acessório dela decorrente, qual seja, as conseqüências jurídicas emergentes do cometimento acidentário.

Como bem defende o mestre Sebastião Geraldo de Oliveira, na obra ‘Indenizações por acidente do trabalho ou doença ocupacional’. São Paulo: Ltr, 2005 Capítulo 11 pp. 263-288, pode-se inferir que, quando se trata da competência para julgar acidente de trabalho, raciocínio que se aplica ao caso em tela, ou seja, a de que o princípio do Juiz Natural é frontalmente agredido quando pontuamos por duas competências para julgar as demandas oriundas da relação de trabalho, gênero da qual o acidente de trabalho é espécie, a hermenêutica ensina que, se o gênero está completado, não há necessidade de numerar as espécies.

Socorre-se, por oportuno, como elemento argumentativo do que está grafado no art. 108, do Código de Processo Civil, assim vazado: "A ação acessória será proposta perante o juiz competente para a ação principal.".

Bem se observa, então, que o sistema jurídico, seja no prisma constitucional, seja na esfera da lei federal, preocupa-se com a unidade de convicção, já que evidencia que as lides acessórias hajam de ser apreciadas pelo juízo do feito principal e, como asseverado dantes, o acidente do trabalho é reflexo do próprio mourejar e, com isso, se está a pontuar que, se se estivesse diante de dois círculos concêntricos, vislumbrar-se-ia que o maior dele é o que enfeixa a relação de trabalho, conquanto o menor volta-se a uma situação episódica, mas dela decorrente, desembocadora do ato acidental, que este último encontra-se umbilicalmente atrelado ao desempenho funcional.

Passando adiante, ainda tomando de empréstimo a figura geométrica acima referida, isto é, o círculo afeto ao acidente do trabalho, não se tem como elocubrar distinção do fato histórico "acidente do trabalho para fins trabalhistas" e "acidente do trabalho para persecução previdenciária".

Essa realidade – acidente do trabalho – é única, e não se cansa de repetir, defluente da atividade desempenhada pelo prestador de serviços. Logo, não se pode conceber que duas justiças distintas examinem o mesmo punctum saliens, a menos que se dê de ombros ao primado constitucional da segurança jurídica, que, em última instância, é a clava da certeza que o Direito, por intermédio de seu feixe de normas, deve entregar a todos aqueles que venham reclamar algum bem da vida em juízo.

Esse quadrante não passou despercebido ao processualista de escol Arruda Alvim (apud JORGE, Flávio Cheim, em seu livro "Recurso especial com fundamento na divergência jurisprudencial". In: NERY JUNIOR, Nelson; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (coord.). Aspectos polêmicos e atuais dos recursos cíveis. São Paulo: RT, 2001. p.382):

"A diversidade de interpretações implica que um dos valores funcionais do Direito, a certeza, seja abalado. E quanto mais variadas forem as correntes de pensamento a respeito de uma mesma lei, tanto mais seriamente ficará despida de certeza aquela lei e, conseqüentemente, nessa escala, essa circunstância contribui para que o direito não tenha o grau de certeza desejável, pois, como se sabe, a linguagem do direito é a lei. Assim, é, igualmente, de todos os tempos a preocupação dos sistemas jurídicos em encontrar técnicas conducentes a se conseguir, o quanto isto seja possível, um só entendimento a respeito de um mesmo texto de lei. Pode-se dizer que a lei é vocacionada a ter um só entendimento, dentro de uma mesma situação histórica. A diversidade de entendimentos, na mesma conjuntura histórica, compromete o valor da certeza (do Direito). (as palavras em itálico pertencem ao autor originário).

De modo similar, com a lente do magistério que sempre guiou o venerável Ministro Cézar Peluso, mesmo nas épocas de suas tertúlias jurídicas perante a inolvidável PUC/SP, quando seu brilho acadêmico amalgamava uma visão pragmática e social do fenômeno jurídico, no caso em apreço, não deixara passar despercebido o vulto do tema aqui analisado, pois, da altura de sua cátedra, fez ressumar esta lira:

"Recebi, depois, um trabalho muito bem fundamentado e muito bem documentado de um juiz do TRT de Minas Gerais, Dr. Sebastião Geraldo de Oliveira, cujas considerações levaram-me a rever aquela posição. E tal posição, que teve modesta influência no teor do acórdão, baseou-se no princípio fundamental da chamada unidade de convicção, segundo o qual, por conta dos graves riscos de decisões contraditórias, sempre ininteligíveis para os jurisdicionados e depreciativas para a Justiça, não convém que causas, com pedidos e qualificações jurídicos diversos, mas fundadas no mesmo fato histórico, sejam decididas por juízos diferentes. O princípio, a meu ver, é irretocável e ainda é o que deve presidir a solução da questão da competência neste caso."

Outro argumento, a nosso sentir, fortíssimo na trilha de que competente é a Justiça do Trabalho para dirimir ações acidentárias forradas, também, em desfavor da autarquia federal, é a possibilidade desta última aforar regressivamente demanda contra o empregador do obreiro vitimado como emerge da literalidade do art. 120, da Lei 8.213/91, assim redigido: "Nos casos de negligência quanto às normas padrão de segurança e higiene do trabalho indicados para a proteção individual e coletiva, a Previdência Social proporá ação regressiva contra os responsáveis.".

Seria de todo paradoxal que, por exemplo, a Justiça laboral reconhecesse a existência de acidente do trabalho no litígio formatado entre empregado e empregador, baseando-se no fato de que o mesmo ocorrera dada a ausência de equipamento de segurança, que haveria de ter sido fornecido pelo patrão e, coincidentemente, a Justiça Estadual não vislumbrasse tal lesão para fins previdenciários. Mesmo assim, a Previdência Social poderia ou não voltar-se contra o empregador? Se a resposta for negativa, apenas se terá como fundamento o fato de não ter sido vertida qualquer verba pública em prol do segurado, mas não tendo em vista a inocorrência de acidente do trabalho.

Práticas tais, evidentemente, enfraqueceriam o contido no art. 120 da Lei de Benefícios, que, acima de tudo, tenciona coibir a ocorrência de acidente de trabalho, nunca apenas preocupada, tão somente, com o fator desembolso pelo INSS, porém, anelando a higidez física dos obreiros. Isso somente seria alcançado a contento se o acidente do trabalho, como um todo, tiver tratamento por apenas um órgão jurisdicional.

Somente se assegurará inelutável carga eficacial das normas constitucionais, máxime as que protegem a dignidade da pessoa humana e a valorização social do trabalho, se se enveredar pela porta única da justiça obreira para analisar o acidente do trabalho como um todo, já que assim poder-se-á assercionar em uma real eficácia social da norma.

Passar ao largo deste quadrante hermenêutico seria mitigar o texto constitucional retirando parte de sua efetividade, diminuindo o potencial do intentado pela Emenda Constitucional 45/2004, que redesenhara o art. 114, da Lei Mater, que, por certo, não se trata de mera sugestão ao seus aplicadores.

Para tanto, nos socorremos do douto Luís Roberto Barroso, na obra "O direito constitucional e a efetividade de suas normas – limites e possibilidades da Constituição brasileira". 8ª. ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 288, ao obtemperar que:

"Não é próprio de uma norma jurídica sugerir, recomendar, aconselhar, alvitrar. Normas jurídicas e, ipso facto, normas constitucionais contêm comandos, mandamentos, ordens, dotados de força jurídica e não apenas moral.".

E complementa o mesmo autor, ob. cit., p. 290, afirmando que a norma possui "um quarto plano que por longo tempo fora negligenciado: o da efetividade ou eficácia social da norma. A idéia de efetividade expressa o cumprimento da norma, o fato real de ela ser aplicada e observada, de uma conduta humana se verificar na conformidade de seu conteúdo (o autor faz citação nota de rodapé Miguel Reale, Lições preliminares de direito, 1973, p. 135. Hans Kelsen, Teoria pura do direito, 1979, pp. 29-30). Efetividade, em suma, significa a realização do Direito, o desempenho concreto de sua função social. Ela representa a materialização, no mundo dos fatos, dos preceitos legais e simboliza a aproximação tão intima quanto possível, entre o dever-ser normativo e o ser da realidade social." (grifou-se)

Na mesma pegada, apoiando-se Flávia Piovesan, ob. cit. pp. 396-397:

"Ao concordar com a mais atualizada doutrina brasileira e estrangeira, no sentido de que "não há dispositivo constitucional despido de normatividade", e que a própria normatividade não vem no Texto mesmo, sendo antes o resultado de um complexo procedimento que envolve a minudente análise quer do caso concreto, quer da norma que se lhe julgue aplicável, a imperatividade – a força normativa – que se reclama da Constituição depende umbilicalmente do seguimento e aplicação de seus princípios fundamentais; dentre eles, principalmente, da intangibilidade do respeito à dignidade da pessoa humana. (sublinhou-se)

E continua a eminente professora:

"O que deve, então, vingar, a bem da efetiva implementação de todos os ditames constitucionais, é mesmo o entendimento de que seus princípios constitucionais fundamentais valem como lei – lei constitucional. Possuem "eficácia jurídica positiva ou simétrica, pois criam, sim, direito subjetivo ao cidadão, possibilitando exigir judicialmente a produção daqueles efeitos. E para tanto, é que se reclama a hermenêutica concretizadora, que culmine por prestigiar a força normativa dos princípios constitucionais fundamentais, otimizando a força expansiva do principio da dignidade humana." (destacou-se)

Prossegue, ainda, a notável escritora:

"Afirma o Ministro Celso de Mello que: "Todos os atos estatais que repugnem à Constituição expõem-se à censura jurídica – dos Tribunais especialmente – porque são írritos, nulos e desvestidos de qualquer validade. A Constituição não pode submeter-se a vontade dos poderes constituídos e nem ao império dos fatos e das circunstâncias. A supremacia de que ela se reveste – enquanto for respeitada – constituirá a garantia mais efetiva de que os direitos e as liberdades não serão jamais ofendidos. Ao Supremo Tribunal Federal incumbe a tarefa, magna e eminente, de velar por que essa realidade não seja desfigurada." Se assim o é, não se pode negar que a supremacia da Constituição inicia-se por seus princípios fundamentais, tendo ao centro a dignidade do ser humano. Não como critério somente interpretativos, e sim, como normas constitucionais, incondicionalmente determinantes ao sistema brasileiro."

Conclui-se que a competência residual das ações acidentárias propostas em face da Previdência Social radica-se na Justiça do Trabalho, pois que, assim o sendo resguardado, encontrar-se-ão, acima de tudo, os princípios da segurança jurídica e da unidade de convicção, nortes que jamais devem ser olvidados pelos operadores do Direito sob pena de se ter a jurisdição, em bastas vezes, não como o ápice de resultados e, sim, marcada de indelével ficção.

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Sobre o autor
Emerson Odilon Sandim

Procurador Federal aposentado e Doutor em psicanalise

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANDIM, Emerson Odilon. Princípio da unidade de convicção e ação acidentária, carga eficacial da sentença trabalhista que reconhece o vínculo e reflexos previdenciários.: Duas angustiantes questões para o trabalhador brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1560, 9 out. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10511. Acesso em: 22 dez. 2024.

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