Resumo: Há um grande problema em torno da segurança jurídica devido às diferenças que se buscam estabelecer em relação a temas repetitivos. Aqui, o foco está na discussão sobre o direito de livre associação em condomínios atípicos e o enriquecimento sem causa, à luz da impossibilidade reconhecida pelas Cortes Superiores para os condomínios típicos.
O Código Bevilácqua apresentava o condomínio tradicional como um foco de desarmonia, consubstanciado na máxima "o que é de todos não é de ninguém", gerando discórdia. Em nome da paz social, deveria ser extinto em caso de divergências, o que originou a ideia da extinção de condomínio, mantida até os dias atuais.
O domínio, de modo geral, surge como algo pertencente a um único titular. Na versão romana, o dominus (que, por corruptela ao longo dos milênios, deu origem ao termo "dono") remete à ideia de que a propriedade seria algo exclusivo. A ausência de exclusividade seria, portanto, uma anomalia. Tanto que, no direito romano, previa-se um chefe familiar que detinha as propriedades de toda a família – o bonus pater familias, que deveria ser prudente.
Nessa perspectiva, o condomínio seria algo anômalo. No entanto, com o avanço populacional sobre um patrimônio imobiliário cada vez mais escasso, ele se tornou uma realidade. Inicialmente, porque o chefe familiar foi perdendo seu poder, e a propriedade passou a ser partilhada entre os filhos, que a mantinham em conjunto até o surgimento de divergências.
Posteriormente, sobretudo nos grandes centros urbanos, surgiram os condomínios verticais. Com a necessidade de segurança, também se difundiram os condomínios horizontais (casas), nos quais há áreas comuns e unidades privativas, demandando um tratamento diferenciado em relação ao condomínio comum.
No entanto, surgiram situações híbridas, chamadas de condomínios atípicos, nos quais vários imóveis autônomos se reúnem para formar associações que funcionam como condomínios. Essa nova configuração tem gerado diversos problemas.
Malgrado a jurisprudência das Cortes Superiores tenha resolvido essas questões de forma clara em favor dos proprietários de imóveis que não desejam se associar, por incrível que pareça, ainda há um grande volume de processos em que as associações insistem em discutir essas cobranças.
Em primeiro lugar, nesses espaços, há áreas públicas (ruas, praças, postes de iluminação), que demandam a prestação de serviços públicos. Quando o condomínio se fecha, essas áreas passam a ser vistas como não mais acessíveis ao público, transferindo aos moradores os custos de serviços como coleta de lixo, asfalto, manutenção e limpeza das ruas.
Muitos moradores da área, que antes não constituía um condomínio, mas era formada por propriedades individuais e privadas, têm o legítimo direito de querer manter sua autonomia, justamente para não serem obrigados a arcar com tais custos. Além disso, muitos não desejam se submeter aos caprichos de vizinhos que, conforme revela a experiência, por anos os ignoraram ou com quem sequer mantinham um bom relacionamento.
Nesses casos, surge a necessidade de uma ampla ponderação entre princípios para analisar não apenas o direito à propriedade privada, mas também a liberdade de associação e o princípio da legalidade. As associações, frequentemente, alegam que não se pode admitir enriquecimento sem causa, argumentando que o morador não poderia se recusar a pagar por algo que beneficia seu imóvel. Em alguns casos teratológicos, alguns municípios chegam a editar leis – inconstitucionais, diga-se de passagem – que legitimam a cobrança dessas taxas associativas.
Os Tribunais Superiores já se posicionaram sobre o tema, mas muitas associações preferem fazer ouvidos de mercador e continuam cobrando. Trata-se da teoria dos grandes números, que o Poder Judiciário deve combater a todo custo[1], pois induz os incautos a acreditar que é melhor pagar o que se exige do que acionar a Justiça e correr riscos.
Assim, não se nega que, em algumas situações, determinadas áreas nascem vocacionadas para serem condomínios. No entanto, devido a certas comunhões de interesses e à existência de um regime mais ou menos uniforme, surgem os chamados condomínios atípicos. Isso, contudo, não justifica a imposição da participação a quem não deseja aderir.
Isso porque não se pode obrigar o titular de um direito real de propriedade plena – por exemplo, o proprietário de um imóvel vizinho – a alterar a natureza jurídica do seu bem contra a sua vontade, sem uma lei que o obrigue a fazê-lo.
Com todo o respeito, ninguém pode ser forçado a fazer algo que não deseja, salvo por determinação legal. Com maior razão, não se pode exigir que alguém modifique a natureza do direito real sobre o imóvel em que reside. Portanto, se, em uma mesma rua, houver seis imóveis e os proprietários dos números 1 a 4 e 6 decidirem formar uma associação e fechar o quarteirão, em tese, deverão respeitar ou negociar com o dono do imóvel número 5, garantindo seu direito de continuar sendo um imóvel de rua ou permanecer fora da associação.
Essa situação se torna ainda mais problemática quando, contra a vontade do proprietário, se impõe a adesão a decisões arbitrárias da maioria – como, num exemplo extremo, decidir afastar as ruas cobertas de asfalto e substituí-las por ouro, ou instalar um muro de contenção revestido de mármore de Carrara – em vez de simplesmente arcar com as taxas e despesas de manutenção junto ao Poder Público.
Não há que se falar em imposição de algum bem comum em prol da associação, que possui natureza privada e não representa, necessariamente, os valores inerentes à sociedade. Logo, nem mesmo a função social dos demais imóveis poderia ser cogitada em um caso como este, considerando uma interpretação da LINDB, especialmente à luz dos seus artigos 3º e 5º.
A Carta Constitucional garante não apenas o direito à propriedade privada (condicionado apenas à função social, que, neste caso, não poderia ser invocada pelos demais), mas também assegura que ninguém pode ser compelido a aderir contra a própria vontade. Além disso, consagra o princípio da liberdade de associação.
Resta analisar se haveria, ou não, alguma vulneração ao princípio da ordem pública[2] – um conceito vago que pode ser invocado em qualquer tempo e grau, mas cujo caráter residual deve ser demonstrado. Também se poderia discutir a vedação ao enriquecimento sem causa (artigo 884 do Código Civil), que se impõe mesmo sem a necessidade de prova do empobrecimento de outrem, conforme o Enunciado 35 das Jornadas de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal. Ressalte-se que essa discussão não se aplica a condomínios formais, mas sim aos condomínios atípicos.
Durante décadas, debateu-se se esses entes – que, pela teoria clássica de Phelippe Hauriou, eram considerados entes despersonalizados – poderiam cobrar compulsoriamente contribuições de proprietários sob o argumento de que, associados ou não, todos se beneficiariam dos serviços prestados em favor do grupo. Atualmente, há uma tendência de equipará-los a pessoas jurídicas, pelo simples fato de possuírem CNPJ, o que reforça uma visão mais ampla e generalista sobre sua natureza jurídica[3]. Essa argumentação baseia-se na ideia dos atos unilaterais do direito obrigacional, especificamente na modalidade de vedação ao enriquecimento sem causa.
Fato é que – e respeito quem de mim divergir – há dois Temas Repetitivos de dois Tribunais Superiores que impedem tais cobranças: o Tema Repetitivo 492 do STF e o Tema Repetitivo 882 do STJ. Ambos analisaram expressamente a questão e concluíram que prevalece o direito do proprietário à liberdade associativa, permitindo-lhe escolher se deseja ou não se associar, sobrepondo-se, assim, ao argumento da vedação ao enriquecimento sem causa.
Aliás, sobre a cobrança de uma taxa de manutenção, cuja inconstitucionalidade foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 695911 / SP, decidiu-se:
“É inconstitucional a cobrança, por parte de associação, de taxa de manutenção e conservação de loteamento imobiliário urbano de proprietário não associado até o advento da Lei nº 13.465/17 ou de anterior lei municipal que discipline a questão, a partir do qual se torna possível a cotização de proprietários de imóveis, titulares de direitos ou moradores em loteamentos de acesso controlado, desde que:
i) já possuidores de lotes, tenham aderido ao ato constitutivo das entidades equiparadas a administradoras de imóveis; ou
ii) no caso de novos adquirentes de lotes, o ato constitutivo da obrigação tenha sido registrado no competente registro de imóveis.”
Para exprimir a ideia em torno do que se aponta, e considerando que a jurisprudência agora é uníssona no sentido de que a pretensão dessas cobranças viola a liberdade associativa como garantia fundamental, conclui-se que não há como cobrar taxas de associação sem a anuência dos proprietários. Nesse sentido, destaca-se:
“RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DIREITO CONSTITUCIONAL. LIBERDADE DE ASSOCIAÇÃO. LOTEAMENTO FECHADO. ASSOCIAÇÃO DE MORADORES. COBRANÇA DE TAXA DE MANUTENÇÃO E CONSERVAÇÃO. POSSIBILIDADE. PRINCÍPIOS DE EQUIDADE E ETICIDADE. PRINCÍPIO DE VEDAÇÃO DE ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA NOS AUTOS. 1. O exercício da liberdade de associação é independente das obrigações decorrentes das limitações do direito de propriedade, cujo uso é condicionado ao interesse coletivo e à proibição de locupletamento ilícito. 2. Se de um lado há o interesse comum dos moradores de implementarem infraestrutura e serviços que venham a beneficiar a todos, embora não se configure um condomínio nos termos estritos da lei e não seja ninguém obrigado a se associar, de outro, não é razoável que prevaleça o interesse particular daquele que se recusa a partilhar das despesas, se locupletando do esforço alheia. 3. O princípio da vedação do enriquecimento ilícito encontra amparo nos objetivos da República, como relevante fator na construção de uma sociedade livre, justa e principalmente solidária (art. 3°, I, da CF). A negativa de alguns moradores de custearem as despesas comuns afronta ainda o princípio constitucional da solidariedade, que impõe a todos um dever jurídico de respeito coletivo, que visa beneficiar a sociedade como um todo. 4. Parecer pelo desprovimento do recurso extraordinário.
Com todo o respeito, in claris cessat interpretatio[4], como assevera a conhecida parêmia latina – não há margem para legitimar tais cobranças. No entanto, vez ou outra, operadores do direito se deparam com decisões que as legitimam. Com todo o respeito, à luz do dever de zelar pela estabilidade da jurisprudência (artigo 926 do CPC), esses são casos que demandam reclamação processual para o resgate da soberania do Tribunal Superior, conforme o artigo 988 e seus consectários do CPC.
O Superior Tribunal de Justiça já se manifestou no sentido de que deve prevalecer o princípio da harmonia da jurisdição, a fim de evitar a coexistência de decisões judiciais contraditórias. Nesse sentido, no julgamento do CC 117.987, Rel. Min. Nancy Andrighi (2013), firmou-se o entendimento de que não seria possível aceitar a convivência de decisões conflitantes capazes de gerar instabilidade nas relações jurídicas.
A partir desse precedente, muitas Câmaras do E. TJSP têm modificado seu entendimento, por exemplo:
CONDOMÍNIO ATÍPICO – AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXISTÊNCIA DE DÉBITO - Sentença de improcedência - APELO DA AUTORA - Pretensão à inversão do julgado – Parcial admissibilidade – Em que pese a orientação anteriormente esposada por esta relatoria, fundada no princípio da vedação do enriquecimento sem causa, é necessário revê-la em função do entendimento adotado pelo Superior Tribunal de Justiça, em sede de análise de recursos sob o rito dos repetitivos, previsto no art. 543-C , do CPC /1973 (REsp's n. 1280871/SP e 1439163/SP), em que pacificado o entendimento de impossibilidade de cobrança de taxa de manutenção em face de associado que a ela não anuiu – Autora que se manteve associada à ré até 05.12.2014, devendo responder pelas mensalidades referentes a esse lapso temporal, bem como pelos custos de rateio de captação de água, consoante por ela mesma reconhecido em contranotificação. Sentença parcialmente reformada – RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO
TJ-SP - Apelação APL 00118294920148260337 SP 0011829-49.2014.8.26.0337 (TJ-SP) Data de publicação: 26/07/2016
Como argumento de reserva, o Supremo Tribunal Federal, em mais de uma oportunidade, vem reconhecendo a existência de uma garantia constitucional implícita, qual seja, o princípio da segurança jurídica. Há, inclusive, quem defenda a necessidade de que os Tribunais validem a justified trust, ou seja, a confiança depositada no Poder Judiciário.
A esse respeito, destacam-se as considerações do Ministro Celso de Mello, proferidas em julgamento realizado pelo Pretório Excelso em 26/03/2010, reconhecendo a segurança jurídica como direito fundamental de proteção constitucional impositiva[5]. Nesse contexto, fomenta-se a necessidade de um exame de ponderação em sede de controle difuso de constitucionalidade, especialmente em casos como este – sendo o desafio demonstrar a similitude fática.
Além disso, outros Tribunais pátrios entendem que ao condomínio atípico devem ser aplicadas as mesmas normas do condomínio comum, ou seja, não se poderia admitir a ausência de liberdade de associação em seu âmbito. Esse entendimento já foi cristalizado pelo STJ e pelo próprio STF. Sobre a questão:
“APELAÇAO CIVEL - AÇAO DE COBRANÇA - CONDOMINIO DE FATO - LEGITIMIDADE ATIVA - SERVIÇOS DISPONIBSLIZADOS - TAXAS CONDOMINIAIS - ANUENCIA DOS CONDOMINOS - ENCARGOS DEVIDOS. A circunstância do condomínio autor não ser regular, sendo sua existência somente de fato, não retire sua legitimidade para pleitear o recebimento de taxas condominiais. A finalidade do Registro da Convenção de Condomínio e conferir-Ihe validade perante terceiros, não constituindo requisite inter partes. As taxas de manutenção criadas por associações de moradores não obriqam os não associados ou que a elas não anuíram. Constatada a existência de áreas em comum e a concordância dos condôminos, mesmo que tacitamente, com o pagamento de taxas para manutenção dos serviços disponibilizados, são devidos os encargos condominiais exigidos pelo condomínio de fato."
(AC 10245140103244001 MG, 13ª Câmara Cível, Rel. Rogerio Medeiros, em 13/07/2017). (Disponível em: https://bd.tjmg.jus.br/jspui/bitstream/tjmg/7451/1/0209-TJ-JC-024.pdf )
APELAÇÃO. COBRANÇA. CONDOMÍNIO ATÍPICO. TAXA DE MANUTENÇÃO. PRESTAÇÃO DOS SERVIÇOS. PROVA. NECESSIDADE. O condomínio vertical ou atípico é uma realidade social e apesar de não existir lei específica para o caso, deve-se utilizar o Código Civil e a lei 4591 /64 no que for cabível. No caso do condomínio atípico, a taxa cobrada serve manter as despesas em comum dos condôminos, desde que seja demonstrada a efetiva utilização dos serviços por eles.
TJ-MG - Apelação Cível AC 10188050435497001 MG (TJ-MG)Data de publicação: 15/07/2016
Em alusão expressa à possibilidade de permitir cobranças apenas de quem for associado, destaca-se o seguinte aresto do E. TJPR:
CÍVEL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE COBRANÇA EM FASE DE CUMPRIMENTO. ALEGADA IMPENHORABILIDADE DE BEM DE FAMÍLIA. DECISÃO QUE REJEITA A ARGUIÇÃO SOB O ARGUMENTO DE QUE A DÍVIDA COBRADA É DE NATUREZA ANÁLOGA A DAS TAXAS CONDOMINIAIS (ART. 3º , IV , DA LEI 8.009 /90). ASSOCIAÇÃO DE MORADORES. CONDOMÍNIO ATÍPICO. POSSIBILIDADE DE COBRANÇA DE TAXAS PARA MANUTENÇÃO E DESENVOLVIMENTO, MAS APENAS EM RELAÇÃO AOS MORADORES ASSOCIADOS. LIBERDADE DE ASSOCIAÇÃO GARANTIDA CONSTITUCIONALMENTE. ART. 5º , XVII , DA CF . TAXAS COBRADAS QUE POSSUEM NATUREZA DIVERSA DAS TAXAS CONDOMINIAIS. AUSÊNCIA DE CARÁTER PROPTER REM. DÍVIDA COBRADA QUE NÃO SE INCLUI NO DISPOSTO NO ART. 3º , IV , DA LEI 8.009 /90. PRECEDENTES DO STJ. IMPENHORABILIDADE DO BEM DE FAMÍLIA MANTIDA. DECISÃO REFORMADA, PARA ACATAR A ARGUIÇÃO APRESENTADA E AFASTAR A CONSTRIÇÃO. RECURSO PROVIDO. TRIBUNAL DE JUSTIÇA Agravo de Instrumento nº 1.270.509-4"Na esteira da jurisprudência desta Corte, as contribuições criadas por Associações de Moradores não podem ser equiparadas, para fins e efeitos de direito, a despesas condominiais, não sendo devido, portanto, por morador que não participa da Associação, o recolhimento dessa verba. Sendo pessoal o direito, e não tendo a dívida natureza 'propter rem', é irregular a sua equiparação a despesas condominiais, mesmo para os fins da Lei 8.009 /90". (STJ- 3a Turma, AgRg no REsp 1.374.805/SP , Rel. Ministro Sidnei Beneti, j. 25/06/2013)
(TJPR - 8ª C.Cível - AI - 1270509-4 - Região Metropolitana de Londrina - Foro Central de Londrina - Rel.: Lilian Romero - Unânime - - J. 09.07.2015, Data de publicação: 19/08/2015)
Sobre o tema, cumpre pedir vênia para apontar, à guisa de mera exemplificação, um caso dentro do âmbito de atuação do E. TJSP:
CONDOMÍNIO ATÍPICO. Associação de moradores. Taxa de manutenção e despesas. Cobrança de quem não é associado. Impossibilidade. Manifesta Afronta ao art. 5º, XXXV, da CF. Precedentes do STJ e STF. Improcedência. Sentença mantida. Recurso desprovido.
TJ-SP - Apelação APL 90000807920128260100 SP 9000080-79.2012.8.26.0100 (TJ-SP) Data de publicação: 27/11/2014
CONDOMÍNIO ATÍPICO. Associação de moradores. Taxa de manutenção e despesas. Cobrança de quem não é associado. Impossibilidade. Manifesta Afronta ao art. 5º, XXXV , DA CF . Sentença de improcedência reformada por maioria de votos. Embargos infringentes acolhidos
TJ-SP - Embargos Infringentes EI 00024702420098260152 SP 0002470-24.2009.8.26.0152 (TJ-SP) Data de publicação: 05/02/2015
Adjetivando a inconstitucionalidade como manifesta – ou seja, tratando-a como um abuso evidente –, merece ênfase o seguinte aresto do E. TJSP:
ASSOCIAÇÃO DE MORADORES. CONDOMÍNIO ATÍPICO. COTAS RESULTANTES DE DESPESAS EM PROL DA SEGURANÇA E CONSERVAÇÃO DE ÁREA COMUM COBRANÇA DE QUEM NÃO É ASSOCIADO IMPOSSIBILIDADE MANIFESTA AFRONTA AO ART. 5º , XXXV , DA CF PRECEDENTES DO STJ E STF - SENTENÇA REFORMADA- PROVIDA A APELAÇÃO.
TJ-SP - AC 190424520118260068 SP 0019042-45.2011.8.26.0068, publicação: 24/10/2013
Com todo o respeito, nada parece desgastar mais a imagem do Poder Judiciário do que o fato de um jurisdicionado conseguir o reconhecimento de um direito, enquanto outro, em condições análogas, não obtém a mesma decisão. Evidentemente, deve-se sempre preservar o poder do juiz de julgar com independência, dentro de seu livre convencimento motivado e pelas balizas da persuasão racional[6].
O moderno direito processual, com suas transnational procedural rules, tem sido objeto de estudo por renomados processualistas italianos, como Michele Taruffo e Élio Fazzalari, este último com sua concepção de módulo processual, por exemplo. Essas teorias apontam que as motivações das decisões não devem mais ser orientadas apenas ao convencimento das partes (fenômeno endoprocessual), mas sim à convicção da sociedade de que a justiça foi feita no caso concreto (fenômeno exoprocessual).
No entanto, quando ocorrem dispersões misteriosas em torno de temas repetitivos, com recusa de análise em embargos de declaração, há consequências severas. Além de expor o trabalho e a qualidade dos serviços dos profissionais contratados, gera desconfiança nos clientes. A pergunta é inevitável: "Doutor, todos que ingressaram com a ação ganharam, mas o senhor perdeu?".
Em comarcas do interior, essa situação pode ser fatal para a reputação do advogado, mesmo que ele não tenha cometido qualquer erro. Muitas vezes, ele pode simplesmente não contar com a simpatia do escrivão, que, por exemplo, lança uma sentença pronta, não revisada, e recusa esclarecimentos adicionais.
Há, assim, reclamações generalizadas nos corredores dos fóruns. Não se trata de uma crítica aos magistrados, que hoje estão assoberbados por uma carga desumana de trabalho, tampouco aos serventuários que se desdobram para atender à demanda. Contudo, e os demais? Sabemos que nem todos os seres humanos são perfeitos, zelosos ou, pior, honestos e probos.
Daí a importância de se obter esclarecimentos em recursos de embargos de declaração, que, muitas vezes, não têm sido examinados. Talvez esse cenário tenha motivado, com razão, o Ministro Luiz Fux a destacar que o país vive, atualmente, um estado de coisas inconstitucional no que tange à falta de motivação das decisões judiciais (Informativo STF 470).
Sobre a jurisprudência deste Pretório Excelso a respeito da possibilidade de discussão da validade de acórdão por falta de motivação, já se manifestou este Areópago. A esse respeito, vale destacar a notícia divulgada no site do próprio STF:
O Plenário Virtual do Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a existência repercussão geral no tema tratado no Recurso Extraordinário (RE) 719870, em que se discute a validade de acórdão por ausência de fundamentação sobre ponto relevante para a análise de constitucionalidade de norma impugnada por meio de ação direta de inconstitucionalidade estadual.
Fonte na internet: https://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=248385
Ora, quando juízes, por si sós ou por autorização a assessores, estagiários e serventuários, permitem o lançamento de decisões padronizadas que não apreciam fatores diferenciais e recusam sistematicamente embargos de declaração, mesmo quando apontam a falta de apreciação de argumentos viáveis, acabam expondo indevidamente os clientes que invocam teses repetitivas. Isso contraria expressamente o que prevê a legislação (artigos 489, §1º, inciso IV, e 1.022, parágrafo único, inciso II, do CPC) e não é levado em consideração para os efeitos do artigo 24 do Código de Ética da Magistratura Nacional.
É óbvio que a independência judicial – verdadeiro pilar do Estado de Direito, que não pode ser derruído – não se confunde com algum tipo de poder para afastar entendimentos repetitivos. Há uma longa distância entre ambas as coisas. No mínimo, deve-se demonstrar algum fator diferencial. Afinal, como já se disse, não basta à mulher de César ser honesta, ela deve parecer honesta – parêmia sobre probidade amplamente destacada em Tratados de Hermenêutica, como o de Carlos Maximiliano, e frequentemente lembrada pelo Desembargador Álvaro Lazzarini, de quem tive a honra de ser aluno, em suas obras de Direito Administrativo.
Em matérias sensíveis como esta, sem uma justificativa clara para o afastamento de um entendimento repetitivo, um magistrado corre o sério risco de ter sua imparcialidade questionada. Não se pretende gerar qualquer cizânia entre as carreiras jurídicas, mas é um fenômeno do direito que, por mais incômodo que pareça – um verdadeiro elefante na sala, como se diz na linguagem coloquial –, precisa ser debatido com seriedade, pois se trata de uma questão eminentemente técnica.
Não menos importante, alguns municípios, sabe-se lá por qual razão, aduzem que, por colaborarem com associações, e delas exigirem contrapartidas, a legislação municipal autorizaria a cobrança dessas taxas de manutenção. Com todo o respeito, é sabido que não há gradação de importância entre uma lei federal de abrangência nacional, como o Código Civil, e uma lei municipal. O que há são esferas diferenciadas de vigência – uma não é superior à outra, como amplamente reconhecido.
No entanto, para fins de interpretação do Tema Repetitivo 492 do STF ou da Súmula 882 do STJ, a questão reside na similitude fática. Isso porque, ainda que haja embasamento normativo (seja por lei municipal, portaria, circular, decreto etc.), tais normativas não podem ampliar ou ir além da autorização legal, como é amplamente sabido. Além disso, não podem contrariar as garantias fundamentais do direito de propriedade e da liberdade de associação. Dessa forma, esses argumentos não se sustentam.
O dolo das associações e o caráter abusivo e temerário das ações ainda existentes tornam-se evidentes pelo fato de haver repetitivos há anos e, mesmo assim, continuarem sendo ajuizadas novas demandas. Há um claro dolo de aproveitamento, que pode até beirar a esfera penal. Insista-se: muitas vezes, a associação sabe que não tem razão, mas aposta no caos, no medo da insegurança jurídica, na demora da solução processual, no custo da contratação de advogados e assim por diante. Esse é um típico caso da teoria dos grandes números – ou seja, compensa cobrar todos, mesmo sem razão, pois muitos pagarão. Esse verdadeiro estado de coisas inconstitucional precisa ser combatido.
Por isso, os advogados devem ser respeitados em suas manifestações sobre esse tema.
Eis o início da discussão que quero fomentar.