Não é novidade para ninguém que o mercado imobiliário é um dos setores mais importantes do país, não só pela sua repercussão econômica, com a geração de riquezas e empregos, como também pela sua efetiva função social, na medida que interfere em um dos seus principais problemas, que é a habitação.
Historicamente, observa-se que, quanto mais se garante o cumprimento dos contratos para aquisição de imóveis, mais forte o setor se mantém, o que gera, por sua vez, crescimento econômico e desenvolvimento social para o país.
Nesse contexto, surgiram legislações ao longo do tempo tendo como objetivo a estabilização e maior segurança jurídica dos negócios imobiliários para proteção desse mercado através do cumprimento dos pactos firmados, tais como as legislações atinentes à incorporação imobiliária, loteamentos e alienação fiduciária.
Enquanto os adquirentes buscam receber os imóveis, as construtoras desejam entregar os empreendimentos e receber os valores pactuados. Todavia, a quebra de qualquer dessas obrigações assumidas repercute não só para as partes envolvidas, mas principalmente para uma coletividade que necessita que as obras continuem e que as construtoras se mantenham firmes no cumprimento das obrigações.
O que se viu na última década foi uma verdadeira “montanha russa” de situações, pois, após o país passar por uma fase de expressiva valorização no setor imobiliário e, por sua vez, crescimento dos investimentos na construção civil, também teve esse setor completamente atingido por problemas políticos e econômicos, que afetaram diretamente adquirentes e construtoras.
Tais problemas desencadearam uma “avalanche” de pedidos de desfazimento de contratos por parte dos adquirentes, desencadeando diversas discussões se essas rescisões contratuais deveriam ocorrer e qual a forma como deveriam ser feitas, seja quanto aos montantes a serem devolvidos, prazos para devolução, incidência de encargos e tantos outros aspectos.
Sem fazer juízo de valor quanto aos direitos de parte a parte, o que se viu foram demasiados excessos, haja vista que, como o judiciário tende a proteger o adquirente, na condição de hipossuficientes, inclusive pela aplicação do código de defesa do consumidor, as construtoras passaram a suportar um grande peso que impactou diretamente nas suas atividades e, por sua vez, dificultou o cumprimento de suas obrigações.
Na medida em que os adquirentes buscavam rescindir os contratos, as construtoras passaram a ter uma demanda inesperada de devolução de valores, que não foi suprida com novas vendas, afinal, as condições de mercado não favoreciam novas vendas, implicando na falta de dinheiro para continuidade de obras. Por isso, o que se viu foi uma elevada demanda no judiciário com pleitos para recebimento dos valores pagos e indenizações por atrasos de obras, como nunca visto.
Não havendo uma uniformização nas relações, combinado ao fato de que o Brasil é um país de extensão continental, com diversas realidades econômicas e mercadológicas, resultou-se na aplicação de diversos métodos e formas para aplicação das multas e indenizações. Percebemos um maior equilíbrio apenas quando da uniformização de entendimento pelo STJ, mas que, ainda assim, não tratavam de modo macro com a visão social, política econômica e com as consequências para a sociedade dos julgados, afinal não é função do judiciário regulamentar, tendo apenas se posicionado de acordo com as demandas apresentadas.
Enquanto isso, ante a insegurança jurídica nas relações imobiliárias e, muitas vezes, com chance inerente de prejuízo para as construtoras, se viu uma redução de novos empreendimentos e uma sequência de construtoras buscando recuperação judicial, por vezes acarretando a própria falência.
O pior disso tudo é que, em decorrência da inviabilização das construtoras por ausência de segurança jurídica nas relações, além das próprias construtoras, os adquirentes de imóveis foram conjuntamente vítimas da crise não recebendo muitas vezes os imóveis ou restituições de valores, além do impacto social causado já que se deixou de gerar riquezas e empregos, tornando um caminho em que a sociedade como um todo perdeu.
Como uma espécie de “salvamento” do setor, alterou-se a Lei 4.591/64 (lei de incorporação imobiliária) e a Lei 6.766/79 (lei de loteamentos), através da Lei 13.786/18, popularmente chamada de “Lei dos Distratos”. A nova legislação pretendeu estabilizar tais relações e promover maior segurança jurídica aos negócios imobiliários, pelo que, dentre outras disposições, estipulou limites a serem adotados nos contratos e que são, presumidamente legais, para as multas na hipótese de rescisão por culpa dos adquirentes.
Após a entrada em vigor da Lei 13.786/18, no caso das incorporações imobiliárias pôde-se, de forma legal, aplicar uma multa sobre os valores pagos de até 50%, quando houver patrimônio de afetação, e de até 25% quando não houver, enquanto na compra e venda de lote em loteamento definiu-se um percentual de até 10% do valor atualizado do contrato.
Pois bem, mesmo não se tendo ainda um cenário econômico estabilizado ao ponto de permitir plena segurança para realização de novos investimentos, após a vigência da Lei 13.786/18, o que se viu foi uma retomada de novos empreendimentos e redução de desfazimentos. Não se pode afirmar que foi o único fator, mas, sem dúvidas, os empreendedores passaram a confiar que os negócios seriam cumpridos com maior higidez, consequentemente valorizou-se o pacta sunt servanda, que trouxe consigo uma nova onda positiva para o setor.
Com empreendedores mais confiantes no cumprimento dos contratos, há por consequência o cumprimento de pactos com os adquirentes e, por óbvio, havendo bons resultados nos empreendimentos realizados, vieram novos. Um ciclo virtuoso, que só é possível quando as relações estão estabilizadas e os contratos são cumpridos.
Pode-se destacar também que com a Lei 13.786/18 surgiu uma maior garantia de informação quanto ao negócio no qual os adquirentes estão fazendo parte. Dessa forma, evita-se vácuos quanto às consequências pelos descumprimentos por parte das construtoras e cláusulas obscuras sobre as condições de desfazimento. Assim, chegou-se ao ponto de estabelecer regras específicas sobre o próprio quadro resumo, que anteriormente era livre e opcional, inclusive mediante assinatura dos adquirentes junto a essas cláusulas, obrigando as construtoras a demonstrarem claramente todas as regras a que os adquirentes estavam sendo submetidos.
Quase cinco anos após ao início da vigência da Lei 13.786/18, o que se vê é uma nova tendência de judicialização das discussões sobre a aplicação das multas na hipótese de rescisão por culpa dos adquirentes. Essa tendência vem gerando apreensão ao setor, não só pelo passado recente que demonstrou o quanto tais conflitos podem ser danosos, mas, principalmente, pela incerteza de tempo para estabilização de posicionamentos, o que certamente influenciará na intenção de se realizar novos empreendimentos.
O que se vê nas decisões judiciais é um misto de respeito à nova legislação, notadamente pela sua especialidade, posterioridade e contribuição ao setor, que já foi tão castigado recentemente, mas também de diversas decisões que começam a admitir teses consubstanciadas na sobreposição de aplicabilidade dos artigos 53 do Código de Defesa do Consumidor e 413 do Código Civil Brasileiro, quanto à avaliação sobre abusividade no caso concreto das multas aplicadas.
Como defensor da estabilidade nas relações imobiliárias, sou adepto da tese de que a legislação da incorporação imobiliária e de loteamentos já foram criadas com o intuito de proteger de uma forma específica os próprios adquirentes, bem como os percentuais estabelecidos na lei gozam de presunção de legalidade, pois pré-estabelecidas no âmbito parlamentar, com ampla discussão por diversos setores da sociedade.
Além disso, são devidamente apresentados aos adquirentes no momento de concepção do negócio, respeitado o direito à informação, com demonstração sobre os detalhes da sua realização, notadamente pelas novas regras impostas para elaboração do quadro resumo.
Não se trata de condição surpresa, posto que o adquirente tem convicção das “regras do jogo” e de que está firmando negócio jurídico irrevogável e irretratável, bem como que só deverá assumir tais obrigações se realmente puder cumpri-las. Não se pode presumir que a aplicação do percentual contratualmente estipulado é indevida, quando lastreado também em lei.
Partir da premissa de que qualquer multa deve ser revista pelo judiciário é retroceder para uma verdadeira judicialização das relações civis. Não se trata dos 25%/50% do valor pago ou 10% do contrato, mas sim, admitir que qualquer percentual sempre possa ser reavaliado.
Tais percentuais não foram postos como regras que estabeleçam perda irrazoável de valores pagos, mas com o objetivo de garantir que os negócios jurídicos sejam seguros. Exatamente por isso que a Lei nº 13.786/18 foi criada, para que exista a presunção de que o percentual está correto.
Quando o construtor firma contrato com o adquirente, certamente não está pretendendo receber multas, mas tais multas são necessárias para prevenir desfazimentos contratuais. Uma maior higidez nas normas de desfazimento de contratos imobiliários é necessária para proteger o setor, sendo a busca pela segurança jurídica algo maior nesses casos.
Apesar da minha superficial opinião, também não posso deixar de admitir que a discussão doutrinária precisa evoluir na análise dos fundamentos apresentados para discussão de parte a parte, pois ambos os aspectos precisam ser levados em consideração, gerando eventual alteração das normas, pela via legislativa. Os efeitos dessa nova fase de discussões judiciais não serão benéficos para quaisquer dos lados, e, certamente, afetará novamente um setor que ainda não se recuperou completamente da recente crise.
Independentemente de como e quando o tema terá uma definição, só resta aos players do mercado imobiliário buscar alternativas menos danosas de parte a parte para passar por esse momento e evitar novos passivos. Enquanto os adquirentes devem estar cada vez mais cientes de que estão ingressando em um negócio irrevogável e irretratável, com sérias consequências em caso de inadimplemento, cabe às construtoras envidarem seus maiores esforços para garantir a informação de tais condições, e, até avaliar se não caberia, preventivamente, optar por regras mais específicas para cada fase do contrato, como por exemplo, eventual gradação de percentuais de multas por período de obras.
A demonstração de preocupação com o tema de forma menos extremista entre as partes e a busca por um equilíbrio para a condição de cada um dos envolvidos é indispensável, pois trará maturidade para a relação entre adquirentes e construtoras, evitando muitas disputas judiciais e fortalecendo as normas existentes, sem que haja a necessidade de novas interpretações em cada época de dificuldade financeira que o país precise ultrapassar.