Capa da publicação Os debates na aprovação da Lei 14.626/23 (prioridades em ônibus)
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Análise legislativa do Projeto de Lei n° 1855/2020, recentemente convertido na Lei 14.626, de julho de 2023

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26/01/2024 às 18:36

Resumo:


  • O Projeto de Lei n° 1855/2020 visa alterar as leis para garantir atendimento prioritário a pessoas com transtorno do espectro autista, com mobilidade reduzida e a doadores de sangue, além de reservar assentos em transportes públicos para esses grupos.

  • Após debates e emendas, o projeto foi aprovado e sancionado sem vetos pelo vice-presidente da República, refletindo um processo legislativo democrático e a expansão do rol de beneficiários para além dos doadores de sangue e medula óssea.

  • O projeto foi analisado sob a perspectiva da teoria da legislação de Manuel Atienza, destacando-se a racionalidade comunicativa, jurídico-formal, pragmática, teleológica e ética na construção e aplicação das normas.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

3. A INTERPRETAÇÃO DO PROJETO DE LEI 1855/2020. A LUZ DA TEORIA DE MANUEL ATIENZA.

Na concepção do Jurista e filósofo Manuel Atienza, o processo de construção das leis (processo legislativo) deve ser orientado por uma série de interações que ocorrem dentro da perspectiva de edição, sistema jurídico, redação, levando em conta os destinatários, os fins e os valores delimitadores da norma.

Nesse sentido, o autor propõe cinco modelos, caracterizados pela definição de diferentes níveis de racionalidade2, a partir dos quais a lei poderá ser contemplada. Segundo o Atienza, os modelos podem ser definidos como:

“- Uma racionalidade comunicativa ou linguística (R1), em que o emissor (editor) deve ser capaz de transmitir uma mensagem (a lei) fluentemente ao receptor (o destinatário);

- Uma racionalidade jurídico-formal (R2), pois a nova lei deve se inserir harmoniosamente em um sistema jurídico.

- Uma racionalidade pragmática (R3), pois a conduta dos destinatários teria que se adequar ao que está prescrito na lei;

- Uma racionalidade teleológica (R4), pois a lei teria de atingir os fins sociais pretendidos;

- Uma racionalidade ética (R5), pois as condutas prescritas e as finalidades das leis pressupõem valores que deveriam ser suscetíveis de justificação ética.

Foram três os propósitos motivadores da análise realizada pelo autor, com a divisão entre os cinco modelos e os diferentes níveis de racionalidade. O primeiro foi a busca por unidade no que tange ao amplo conhecimento que envolve o estudo legislativo, vez que as diferentes formas de racionalidade são definidas pelos mesmos elementos. Segundo objetivo era estabelecer um estatuto epistemológico dos estudos sobre a legislação, buscando demonstrar as técnicas que poderiam ser utilizadas para evitar a presença de irracionalidade na referida prática. Por fim, o terceiro objeto estava relacionado a necessidade de se evitar um uso da técnica de legislação de forma ideológica, vez que, na sua concepção, a técnica legislativa surge de uma necessidade de resposta à crise do Estado de Bem-Estar Social. Reitera que as leis possuem natural tendência de serem confusas ou imprecisas, e que a racionalidade pragmática e teleológica é elemento subordinador da racionalidade linguística.

Dessa forma, nos termos da obra “Argumentação Legislativa”, inicia-se o exame dos cinco modelos de racionalidade propostos por Manuel Atienza, com base no projeto de lei ora discorrido.

3.1. RACIONALIDADE COMUNICATIVA (LINGUÍSTICA)

Inicialmente, em relação ao modelo de racionalidade linguístico (R1), o emissor (editor) deve ser capaz de transmitir fluentemente, de forma que a lei se torne clara ao receptor da mensagem jurídica. Nesse sentido a finalidade desse aspecto de racionalidade deve estar sempre ligado à finalidade de conferir maior clareza e precisão, através do conjunto de enunciados e de canais para sua transmissão, com especial destaque para o valor da “comunicação”.

Analisando o nível de racionalidade comunicativa, o Projeto de Lei n° 1855/2020 atende seus requisitos uma vez que não revela imprecisões e a sua redação final está ausente de elementos que possam caracterizar alguma obscuridade ou dificulte a compreensão daquilo que é proposto. Ademais, embora tenha sofrido alterações que adicionaram novos dispositivos em relação à proposta originária, o texto é conciso e de fácil compreensão.

Quanto aos destinatários da norma, o art. 1° e 3º do PL apresenta um conjunto de entes privados e públicos, além das pessoas beneficiárias (doadores de sangue, doadores de medula óssea, pessoas com mobilidade reduzida, pessoas com transtorno de espectro autista), que deverão cumprir e adaptar sua dinâmica de atuação para se adequarem ao ato normativo.

“Art. 1º Esta Lei altera a Lei nº 10.048, de 8 de novembro de 2000, e a Lei nº 10.205, de 21 de março de 2001, para prever atendimento prioritário em diversos estabelecimentos a pessoas com transtorno do espectro autista ou com mobilidade reduzida e a doadores de sangue, bem como reserva de assento em veículos de empresas públicas de transporte e de concessionárias de transporte coletivo nos dois primeiros casos. “

Não obstante, conforme art. 2° do referido, a nova redação da lei nº 10.048, de 8 de novembro de 2000, especificamente em seu art. 3°, torna-se clara a destinação do dispositivo às concessionárias de transporte coletivo e as empresas públicas de transporte. Importante frisar que embora o projeto de lei 1855/2020 tenha sido claro, as leis nas quais pretende realizar alteração já apresentavam rol destacado e objetivo de destinatários da norma, rol que pode ser ampliado em havendo sanção presidencial.

“Art. 2º A Lei nº 10.048, de 8 de novembro de 2000, passa a vigorar com as seguintes alterações, numerando-se o parágrafo único do art. 1º como § 1º:

(...)

Art. 3º As empresas públicas de transporte e as concessionárias de transporte coletivo reservarão assentos, devidamente identificados, às pessoas com deficiência, às pessoas com transtorno do espectro autista, às pessoas idosas, às gestantes, às lactantes, às pessoas com criança de colo e às pessoas com mobilidade reduzida. (NR)”

3.2. RACIONALIDADE JURÍDICO FORMAL

Em síntese, a racionalidade jurídico-formal (R2) é caracterizada pela busca da sistematicidade e da coerência no ordenamento jurídico, com o objetivo de estabelecer um sistema de leis que funcione como um mecanismo de previsibilidade e segurança para a conduta humana. Por meio desse enfoque, o Direito pode cumprir sua função primordial na sociedade e promover uma ordem justa e estável para todos os seus membros.

A busca por essa racionalidade jurídico-formal pode ser vista como uma preocupação em tornar o Direito um instrumento mais acessível e compreensível para todos os seus destinatários. Quando o sistema normativo é claro e consistente, tanto os cidadãos quanto os operadores do Direito podem tomar decisões mais informadas e previsíveis, contribuindo para a solução de conflitos e para a construção de uma sociedade justa e equitativa.

O ordenamento jurídico deve ser organizado de forma lógica e coerente, a fim de fornecer respostas claras e previsíveis para as situações que se enquadrem em suas normas. Almeja a construção de um sistema de normas que funcione como um mecanismo para prever a conduta humana e suas consequências, resultando em um sistema de segurança.

O PL 10.048 realizou a análise do conjunto normativo brasileiro que tratava do atendimento prioritário de certas pessoas, bem como da ausência de norma que adicionasse os doadores de sangue e medula, autistas e pessoas com dificuldade de locomoção a esse grupo, propondo a alteração das Leis n° 10.048, de 8 de novembro de 2000, e n° 10.205, de março de 2001. Importante destacar que, em se tratando da busca por segurança jurídica, a lei foi eficiente ao corrigir contradição por omissão, que deixava de contemplar diversos casos de pessoas com dificuldade de locomoção, tema desenvolvido na proposta de Substitutivo apresentado pela Comissão de Seguridade Social e Família.

Dessa forma, a proposta está inserida no contexto de racionalidade jurídico-formal, por ser capaz de ser inserida de forma harmoniosa no sistema jurídico brasileiro.

3.3. RACIONALIDADE PRAGMÁTICA

Essa abordagem enfatiza a importância do contexto e dos resultados práticos na interpretação e aplicação do Direito. Segundo Atienza, a compreensão do significado das normas jurídicas deve considerar o objetivo prático que se pretende alcançar com sua aplicação, bem como as consequências sociais e as necessidades específicas de cada caso.

Cabe destacar que a racionalidade pragmática não implica em arbitrariedade ou subjetivismo, mas sim em uma análise criteriosa das consequências das decisões jurídicas e do contexto em que se inserem. Permite uma interpretação mais sensível à realidade dos casos, reafirmando o caráter de busca da justiça pelo Direito.

Nas palavras de Atienza “a conduta dos destinatários teria que se adequar ao que está prescrito na lei”, garantindo a manutenção da ordem e a eficácia da proposta.

Nesse sentido, importante destaque para o dispositivo do PL que adequa a conduta dos doadores de sangue e medula (destinatários), condicionando o atendimento prioritário à apresentação de comprovante de doação, que perderá sua validade após decorrido 120 dias desde a doação.

Embora seja dotada de uma redação curta, a norma preenche os requisitos estabelecidos pelo autor para que esteja inserida dentro da esfera racional pragmática.

3.4. RACIONALIDADE TELEOLÓGICA

Consiste em numa abordagem que se concentra nos propósitos e objetivos do Direito, ou seja, na racionalidade teleológica (R4), a lei deveria ser capaz de atingir os fins sociais pretendidos.

No contexto do Projeto de Lei n° 1855/2020, essa análise pode parecer inicialmente prejudicada em face de ainda não estar vigente. Entretanto, em se tratando de projeto de lei, atingir os “fins sociais pretendidos” deve estar diretamente relacionado à sua capacidade (ou potencialidade) efetiva para resolver a demanda que motivou sua propositura.

As normas jurídicas não são meramente estruturas abstratas, mas instrumentos destinados a atingir determinados resultados na sociedade. A compreensão do sentido das normas requer uma análise cuidadosa de seus objetivos, bem como das consequências que podem ser alcançadas ao aplicá-las em situações concretas.

Assim sendo, a partir da análise da redação do dispositivo encaminhado ao Presidente, e sancionado pelo vice, parece ser qualificada para resolver, parcialmente, as demandas da população detentora de dificuldades locomotivas e pessoas com transtorno do espectro autista, traduzido na garantia de que poderão ter atendimento prioritário, evitando filas e, evitando situações constrangedora e, no caso do primeiro grupo, diminuindo o período em que se portava em pé em diversas situações.

No que ao objetivo inicial arguido pelo Senador Irajá, a princípio também parece ser capaz de incentivar o número de doadores de sangue e medula. Entretanto, não se pode garantir que isso ocorra, a capacidade de se atingir os fins sociais pretendidos deverá ser reanalisada a partir do momento em que entrar em vigor, sobretudo através da produção de comparativos com base nos dados a serem futuramente fornecidos pelo Ministério da Saúde e Instituto Nacional do Câncer (INCA).

3.5. RACIONALIDADE ÉTICA

No último nível, a racionalidade ética (R5) é caracterizada pela centralidade da ética e dos valores morais no processo de interpretação e aplicação legislativa. Dessa maneira, o Direito não deve ser separado das questões éticas e morais, ademais, a justiça está diretamente relacionada a esses elementos.

Portanto, enfatiza a imprescindibilidade de análise não apenas o texto escrito ou as formalidades da prática legislativa e do Direito, mas da conexão entre o direito presente na lei e a vida das pessoas.

Logo, ressalta-se que o processo de construção do texto final passou por diversos debates quanto à possibilidade de se corromper a moralidade e ética que decorrem do ato voluntário de doação.

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Em seu parecer, durante o período de tramitação do PL na Câmara dos Deputados, o Deputado Federal Luiz Lima questionou a forma como se pretendia estimar a doação de sangue. Na sua concepção, embora considere a necessidade de incentivo, entende que a lei violaria o caráter solidário da doação de sangue, proibindo a sua remuneração e comercialização. Dessa forma, sustenta que embora a medida proposta não se configure como uma remuneração, subverte a motivação do ato de doação, ao criar uma “moeda de troca”. Não obstante, questionou o caráter moral por trás da criação de uma proposta que gerava um privilégio para pessoas jovens e saudáveis, vejamos:

“Por definição, doadores de sangue são pessoas jovens e saudáveis; o atendimento prioritário, nesse caso, não seria uma necessidade, e sim um privilégio em troca de uma ação que deveria ser desinteressada. Um privilégio que, diga-se, por mais que nos agradasse pensar o contrário, seria suficiente para estimular muitas pessoas a simular a condição de doadores, mediante a contrafação de certificados de doação.”

Sobre esse tema, reitero o argumento sustentado pelo Senador Lucas Barreto, por compreender que o fato de utilizar esse ato normativo como forma de incentivo ao cadastro e doação de sangue não configura compensação capaz de corromper o caráter moral e ético da doação voluntária. Além, conforme expôs o Senador, o PL não determina recompensa financeira à doação ou estimula a comercialização de sangue, estando em conformidade com os princípios constitucionais e o nível de racionalidade ética (R5), de Manuel Atienza.


4. CONCLUSÃO

O Projeto de lei n° 1855/2020, ao ter cumprido o trâmite legislativo, passando pelas duas casas do Congresso Nacional, decorreu debate que durou cerca de 3 anos até a versão final encaminhada ao Presidente da República. As alterações realizadas desde o modelo inicial apresentado pelo Senador Irajá ampliaram o rol de pessoas abarcadas pelo projeto, passando de doadores de sangue e medula, para também aqueles que possuem dificuldade de locomoção e autistas.

Dessa forma, não somente a redação do PL foi lapidado, mas seu objeto foi expandido para que compreendesse casos que a lei n° 10.048, de 8 de novembro de 2000 havia se omitido. Essa alteração possui potencial de gerar uma maior efetividade e concretização dos direitos fundamentais desses grupos, além de ser medida que incentiva a doação de sangue e medula, e possibilita o desenvolvimento de um banco de sangue e cadastro de doadores superior aos parâmetros estabelecidos pela Organização Mundial da Saúde.

A pluralidade incluída no PL evidencia a relevância de estabelecer normas por meio de um processo democrático e amplamente discutido no Congresso. O legislativo, sendo o órgão cuja principal função é a de criar leis, desempenha um papel fundamental nessa construção, tendo cumprido sua função de forma eficiente, ponderando as alternativas apresentadas, desenvolvendo raciocínio legislativo satisfatório e tendo apresentado justificativas relevantemente suficientes, que embasaram sua formulação até o encaminhamento para sanção do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Por fim, destaca-se que recente sancionamento sem vetos proferido pelo Vice-Presidente da República parece indicar um acerto na produção legislativa brasileira, entretanto, como analisado no presente artigo, embora não seja dotada de irracionalidades aparentes, é de suma importância a manutenção do acompanhamento da nova lei, sobretudo no que tange à sua recepção pelos destinatários e aplicação na vida cotidiana.


5. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

ATIENZA, Manuel. “Argumentação Legislativa”. São Paulo: Editora Contracorrente, 2022. (Capítulo II – A racionalidade legislativa)

BERALDO, Nicole. Jovens entre 18 e 29 anos são os maiores doadores de sangue do país. Disponível em: <Jovens entre 18 e 29 anos são os maiores doadores de sangue no país — Ministério da Saúde (www.gov.br)>

BRASIL. LEI No 10.048, DE 8 DE NOVEMBRO DE 2000. Dá prioridade de atendimento às pessoas que especifica, e dá outras providências. Diário Oficial da União, 2000.

BRASIL. 2001. LEI No 10.205, DE 21 DE MARÇO DE 2001. Regulamenta o § 4º do art. 199 da Constituição Federal, relativo à coleta, processamento, estocagem, distribuição e aplicação do sangue, seus componentes e derivados, estabelece o ordenamento institucional indispensável à execução adequada dessas atividades, e dá outras providências. Diário Oficial da União, 2000.

MORAIS, Carlos Blanco de. Manual de legística: critérios científicos e técnicos para legislar melhor. Portugal: Verbo, 2007. p. 40

NASCIMENTO, Simões Roberta. Teoria da Legislação e Argumentação Legislativa: A Contribuição de Manuel Atienza. Teoria Jurídica Contemporânea, v. 3, n. 2, 2018. PPGD/UFRJ – ISSN 2526-0464, p. 157-198

NASCIMENTO, Roberta Simões. “Quem redige as leis? O desenho institucional da redação legislativa na experiência internacional e no Brasil”. In: PEREIRA, Gabrielle Tatith (Org.). Poder Legislativo: Defesa institucional, representação judicial e assessoramento jurídico. Brasília: Senado Federal, 2019, pp. 17-44

Senado Federal. Atividade Legislativa. Projetos de Lei e Outras Proposições. Projeto de Lei n. 1855/2020. Disponível em: <www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/141540>. Acesso em: 15 de jul. 2023.


Notas

1 SIMÕES NASCIMENTO, Roberta. Teoria da Legislação e Argumentação Legislativa: A Contribuição de Manuel Atienza. Teoria Jurídica Contemporânea, v. 3, n. 2, 2018. PPGD/UFRJ – ISSN 2526-0464, p. 157-198

2 ATIENZA, Manuel. Argumentação Legislativa. São Paulo: Editora Contracorrente, 2022. (Capítulo II – A racionalidade legislativa)

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Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RIBEIRO, Lucas Moreira. Análise legislativa do Projeto de Lei n° 1855/2020, recentemente convertido na Lei 14.626, de julho de 2023. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7513, 26 jan. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/105221. Acesso em: 22 dez. 2024.

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