RESUMO: O presente artigo aborda o tema das famílias multiparentais conforme definido por Berenice Dias em 2016. Essas famílias consistem em pais e mães que, por meio de laços de afeto e convivência, acolhem crianças e adolescentes que foram abandonados ou rejeitados por seus pais biológicos, ou até mesmo mantendo os laços com estes e também com os socioafetivos, integrando-os em uma nova família, chamada de pluriparental ou multiparental. Nessa configuração, os novos pais socioafetivos têm os mesmos direitos legais relacionados a questões de alimentos e herança, em caso de separação ou falecimento dos pais afetivos. E embora seja um tema recente no âmbito jurídico brasileiro, tem havido um aumento significativo do interesse de estudiosos do Direito em estudá-lo teoricamente e metodologicamente. Além disso, busca-se examinar as possíveis vantagens sucessórias do pai biológico em comparação com o pai ou mãe socioafetivo, explorando diferentes abordagens teóricas.
Palavras-chave: Afetividade, Ascendentes, Direito Familiar, Multiparentalidade, Sucessão, Vantagens.
INTRODUÇÃO:
Quando se analisa a vertente social do conceito de família, por meio da visão de vários estudiosos, entre eles a jurista Maria Berenice Dias (2016), pode-se reconhecer a família como uma instituição originada do casamento, que consiste em um conjunto de pessoas legalmente ligadas a um casal matrimonial. Essa concepção remete à ideia da família patriarcal, onde o pai é a figura central, acompanhado pela esposa e rodeado por filhos, genros, noras e netos.
A partir do século XX, ocorreram várias mudanças no contexto familiar, com o divórcio se destacando como um fator importante impulsionador dessas transformações. O casamento, anteriormente considerado um sacramento patriarcal, enfraqueceu devido à crescente liberdade e independência das mulheres, que passaram a contribuir como provedoras juntamente com os maridos. Com o divórcio, muitos pais e mães encontram novos parceiros ou estabelecem uniões estáveis, formando famílias novas com ou sem filhos, conhecidas como famílias multiparentais ou famílias-mosaico.
A afetividade e convivência diária entre o padrasto ou madrasta e o filho do companheiro, fruto de relações anteriores, dá origem ao vínculo de socioafetividade, sem excluir o convívio com o genitor biológico. Assumindo o papel de pai e mãe, o padrasto e a madrasta possibilitam o desenvolvimento da paternidade e maternidade socioafetiva, permitindo que os enteados possam incluir os sobrenomes da família do padrasto ou madrasta em seu registro de nascimento, caso haja acordo entre as partes.
Os efeitos legais do reconhecimento da multiparentalidade incluem o estabelecimento de vínculos de parentesco com dois pais e uma mãe, ou duas mães e um pai, resultando em seis avós, além do direito a alimentos e direitos sucessórios. Dessa forma, através das vias jurídicas, o pai socioafetivo e a mãe socioafetiva assumem a mesma obrigação de prover alimentos que os pais e mães biológicos, e ambos são devedores e credores, respeitando suas possibilidades e necessidades.
A jurisprudência reconhece a família multiparental de forma equiparada à família biológica, sem fazer qualquer diferenciação, preservando o registro com o pai registral e a confirmação da paternidade biológica. Essas alterações surgiram de forma conjunta, visando encontrar soluções mais apropriadas para questões complexas no âmbito do Direito de Família, com o objetivo de atender às necessidades dos filhos e fomentar a comunicação entre os cônjuges ou companheiros (DINIZ, 2007, p. 22).
02 - A BIOLOGIA DA MULTIPARENTALIDADE
Além de criar, manter conexões emocionais não é exclusivo dos seres humanos. A união entre os seres vivos, impulsionada pelo instinto de perpetuação da espécie ou pelo desejo de evitar a solidão, sempre existiu. Segundo Dias (2016, p. 46), "A felicidade das pessoas parece depender de ter alguém para amar." Essa busca por companhia é um fenômeno natural, onde os indivíduos são atraídos um pelo outro através de processos bioquímicos.
De acordo com Morgan (1877), diferentes segmentos da família humana passaram por estágios distintos de desenvolvimento. Alguns estiveram em um estado primitivo e selvagem, outros em um estágio intermediário de barbárie, enquanto alguns alcançaram a civilização. Portanto, a narrativa histórica sugere que a humanidade teve um início na base da evolução social e progrediu de forma ascendente, desde a selvageria até a civilização, graças ao acúmulo de conhecimento, experimentação, invenções e descobertas ao longo do tempo, para se chegar à família contemporânea. A família atual, por sua vez, é um grupo espontâneo de pessoas que se forma na sociedade e se organiza legalmente. Esse agrupamento é essencial para a vida em pares, onde as relações são influenciadas por fatores biológicos e psicológicos, levando os seres vivos a formarem laços afetivos.
De acordo com a autora Berenice Dias (2016, p. 47), a família é uma construção cultural, com uma organização psíquica em que cada membro ocupa um lugar na hierarquia e desempenha um papel específico, como pai, mãe, filhos, entre outros, mesmo que não haja um vínculo biológico absoluto entre eles. Nesse contexto, é essencial investigar e valorizar a estrutura familiar em sua característica mais significativa, reconhecendo-a como um LAR, um Lugar de Afeto e Respeito. Além disso, Berenice Dias (2016, p. 48) é categórica ao falar que:
Em uma sociedade conservadora, para merecer aceitação social e reconhecimento jurídico, o núcleo familiar dispunha de perfil hierarquizado e patriarcal. Necessitava ser chancelado pelo que se convencionou chamar de matrimônio. A família tinha formação extensiva, verdadeira comunidade rural, integrada por todos os parentes, formando unidade de produção, com amplo incentivo à procriação. Tratava-se de uma entidade patrimonializada, cujos membros representavam força de trabalho. O crescimento da família ensejava melhores condições de sobrevivência a todos.
O Código Civil Brasileiro de 1916, que foi considerado uma importante conquista para a época, não conseguiu acompanhar devidamente o rápido desenvolvimento e as mudanças comportamentais da sociedade, especialmente com relação à estrutura da família patriarcal do século XX, onde a vontade do homem era dominante e inquestionável. Nesse quesito, o código mostrou-se incapaz de lidar com essas transformações. Nessa época, o homem era visto como provedor, marido e pai, e sua vontade era imposta legalmente aos dependentes.
Entretanto, as rápidas mudanças sociais tornaram essa abordagem obsoleta e incapaz de lidar com as novas realidades familiares. O Direito, portanto, tem o papel de equilibrar as relações sociais, acompanhando a evolução da sociedade em vez de resistir a ela. Os juristas frequentemente se deparam com questões concretas, contemporâneas e delicadas relacionadas a esse contexto. O direito de família abrange um conjunto de regras que regulam não apenas o casamento, mas também a união estável e diversas relações pessoais e patrimoniais entre cônjuges, pais, filhos e outros membros familiares (Dias, 2016, p. 50).
Estas regras englobam princípios que validam o matrimônio, estabelecendo sua legitimidade e as resultantes disso. Entre essas consequências, notam-se as afinidades pessoais e financeiras presentes na instituição conjugal, bem como a possibilidade de dissolução do casamento, o reconhecimento da união estável e outras formas de organização familiar. Adicionalmente, abarcam as relações emocionais entre pais e filhos, os laços de parentesco e os princípios relativos à tutela e curatela (Dias, 2016, p. 50).
03 – MULTIPARENTALIDADE E AFETIVIDADE
A sociedade atual, no século XXI, é caracterizada pela diversidade, complexidade e individualidade. Por isso, fica claro que a formação de uma família não depende necessariamente da presença de um homem e uma mulher como pais, mas sim de pessoas que compartilham suas vidas de forma íntima, unidas por um vínculo afetivo. E sobre essa nova sociedade, Sérgio Resende de Barros (2002, p. 09), fala que:
O afeto é que conjuga. Apesar da ideologia da família parental de origem patriarcal pensar o contrário, o fato é que não é requisito indispensável para haver família que haja homem e mulher, nem pai e mãe. Há famílias só de homens ou só de mulheres, como também sem pai ou mãe. Ideologicamente, a atual Constituição brasileira, mesmo superando o patriarcalismo, ainda exige o parentalismo: o biparentalismo ou o monoparentalismo. Porém, no mundo dos fatos, uma entidade familiar forma-se por um afeto tal – tão forte e estreito, tão nítido e persistente – que hoje independe do sexo e até das relações sexuais, ainda que na origem histórica tenha sido assim. Ao mundo atual, tão absurdo é negar que, mortos os pais, continua existindo entre os irmãos o afeto que define a família, quão absurdo seria exigir a prática de relações sexuais como condição sine qua non para existir família, Portanto, é preciso corrigir ou, dizendo com eufemismo, atualizar o texto da Constituição brasileira vigente [...].
Atualmente, a importância dos laços afetivos é crucial na formação da identidade familiar. O principal objetivo é estabelecer uma família que busca a felicidade, o apoio mútuo e a segurança de todos os seus integrantes. Essas conexões emocionais podem ser identificadas em diversas relações, tais como casamento, união estável, parentesco, e também nas instituições jurídicas regulamentadas pelos artigos 1.511 a 1.783 do Livro IV do Código Civil (GAGLIANO e FILHO, 2012). Ainda de acordo com Gagliano e Filho (2012), o artigo 1.634 do Código Civil estabelece as responsabilidades dos pais em relação aos filhos.
Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores:
I - dirigir-lhes a criação e educação,
II – tê-los em sua companhia e guarda;
III -conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem;
IV- nomear lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou sobrevivo não puder exercer o poder familiar;
V – representá-los, até aos 16 (dezesseis) anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo lhes o consentimento;
VI - reclamá-los de quem ilegalmente os detenha; e
VII- exigir que lhes prestem obediência, respeito e Em os serviços próprios de sua idade e condição.
A importância do afeto na formação de uma família não está mais restrita ao momento do casamento, sendo essencial durante toda a relação. Essa visão é respaldada pela Declaração Universal dos Direitos Humanos que, em seu artigo XVI, parágrafo 3, enfatiza que a família é o núcleo natural e fundamental da sociedade, merecendo proteção tanto do Estado quanto da sociedade. Historicamente, a preservação do bem-estar da família tem sido considerada uma das principais missões do Estado.
A família é considerada uma instituição que possui um caráter público e, ao mesmo tempo, está intimamente ligada a relações privadas. É reconhecida a relevância do indivíduo como membro essencial do grupo familiar, bem como seu papel como influenciador no contexto social. O direito das famílias desempenha um papel fundamental na definição da esfera privada, que engloba as expectativas e pode ser alvo de várias análises e avaliações críticas, especialmente quando aplicado a todos os cidadãos.
04 – O DIREITO SUCESSÓRIO E A MULTIPARENTALIDADE
As normas que regem a transmissão da herança de uma pessoa falecida para seus herdeiros são conhecidas como direito sucessório. Esse ramo jurídico é de suma importância para assegurar a organização e divisão dos bens deixados pelo falecido ou falecida, protegendo assim os interesses dos familiares e herdeiros legais.
Já a multiparentalidade diz respeito à situação em que uma pessoa possui vínculos parentais com mais de um pai ou mãe, ou seja, é reconhecida como filha por mais de uma pessoa. Esse cenário pode ocorrer por meio de adoção, reprodução assistida, famílias reconstituídas ou outras circunstâncias específicas. Recentemente, tem havido discussões e mudanças legais relacionadas à multiparentalidade, com o objetivo de reconhecer e garantir os direitos e responsabilidades de todos os envolvidos, bem como promover o bem-estar da criança que está no centro da questão.
Esses princípios são válidos tanto para os pais biológicos como para os pais socioafetivos. Em caso de morte, o filho tem direito à herança, concorrendo com os irmãos. Se o filho socioafetivo falecer primeiro, a divisão dos bens dependerá das diferentes configurações familiares, podendo existir duas mães e um pai, dois pais e uma mãe ou diversos avós. Isso ocorre porque é crucial ressaltar e aprofundar a compreensão de alguns desses conceitos que atualmente guiam o Direito de Família nos casos de multiparentalidade.
Até o final do século XX, pouco se discutia sobre a sucessão legítima dos ascendentes no Brasil. No entanto, a instabilidade nas interações sociais exigiu uma adaptação do Direito para abranger os novos arranjos familiares que surgem na sociedade a cada dia. Nesse contexto, o Código Civil apresenta lacunas em relação à possibilidade de uma criança possuir mais de um vínculo paterno e/ou materno (GAGLIANO e FILHO, 2012, p. 25).
A dinâmica constante do campo jurídico relativo ao direito de família, que impacta a todos, de forma direta e indireta, ressalta a relevância do estudo da doutrina e da jurisprudência para adequar as transformações sociais às disposições legais, harmonizando o que está prescrito com a realidade ética. Esse trabalho é uma significativa contribuição para o âmbito do Direito Sucessório, fornecendo orientações acerca da divisão de bens entre os ascendentes nos casos de multiparentalidade, fundamentado em exemplos concretos e interpretações jurisprudenciais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A justiça tem legitimado os direitos e obrigações das famílias multiparentais, e não exigir tais deveres seria incentivar a irresponsabilidade por parte dos que têm funções parentais (DIAS & OPPERMAN, 2018a). Neste artigo, examinou-se a relevância do Direito Sucessório para as famílias em geral, com um enfoque específico nas famílias multiparentais, abordando tanto a perspectiva biológica quanto o vínculo afetivo entre pais e filhos. No âmbito jurídico, analisou-se as características do Direito Sucessório, compreendendo os desafios que ele apresenta, tanto em questões biológicas quanto afetivas, onde ainda há preferência por famílias tradicionais.
Consequentemente, o vínculo biológico não é mais o único, uma vez que coexiste agora com o vínculo afetivo, tornando a socioafetividade uma questão não apenas social, mas também jurídica. O reconhecimento do vínculo socioafetivo no registro de nascimento acarreta uma série de efeitos jurídicos para a criança, incluindo direitos a alimentos, sucessão, definição da guarda e das visitas, estabelecimento do poder familiar e responsabilidade civil.
As pesquisas no campo do Direito das Famílias têm recebido grande atenção devido à sua natureza inovadora e à abundância de informações disponíveis para os estudiosos interessados na área. No entanto, é crucial compreender que as perspectivas e práticas dos profissionais envolvidos nesse tema podem variar consideravelmente de acordo com fatores como localização geográfica, condições econômicas e características psicográficas do grupo estudado.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DIAS. Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias [livro eletrônico] / Maria Berenice Dias – 4ª ed. São Paulo; Editora dos Tribunais, 2016.
DIAS, Maria Berenice. Manual das Sucessões. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2011. p. 51.
DIAS, M. B.; OPPERMANN, M. C. Multiparentalidade: uma realidade que a Justiça começou a admitir. In: Maria Berenice Dias. Disponível em: <http://www.mariaberenice.com.br/>. Acesso em: 26/07/2023.
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. 22 ed. São Paulo, Saraiva, 2007. p. 22.
GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil, volume 1: parte geral / Pablo Stolze Gagliano, Rodolfo Pamplona Filho. — 14. ed. rev., atual e ampl. — São Paulo: Saraiva, 2012.
MORGAN, Lewis Henry. A sociedade antiga. 1877.
BARROS, Sérgio Resende de. A ideologia do afeto. Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre: Síntese e IBDFAM, v. 4, n. 14, p. 5-10, jul./set. 2002.