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Trabalho escravo: o que é?

18/10/2007 às 00:00
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Muito já se escreveu sobre a escravidão ao longo dos tempos, desde a antigüidade mais remota até os dias de hoje. Fora algumas posturas rosseaunianas e hobbesianas, da inclinação ao bem ou mal a que todo homem propende, pouco tem sido dito sobre as reais intenções dos escravagistas e o que é, de fato, a escravidão. Não se trata de extrair a mais universal e abstrata razão disso tudo, coisa impossível para um trabalho desse porte. Teríamos de escalar a montanha hegeliana para compreender a dialética de dominação e condescendência para a qual o próprio escravo contribui; saber das razões freudianas mais profundas, de masoquismo, repressão e/ou recalque causado pela cultura ou, tal como Marx, captar o direcionamento de forças produtivas dentro dos sistemas econômicos após uma igualmente complicada, divisão de classes. A começar por Aristóteles, símbolo ocidental do conhecimento humano, temos farto material em defesa da escravidão. O que teria levado pessoa tão esclarecida a defender tão degradante e desprezível condição do homem? O que é escravidão? Quando ela foi, de fato, abolida? Onde se pretendia chegar com a reificação do Outro? É com base nestas questões que pretendemos fazer algumas considerações rasas. Tenho certeza de que muitos, como eu, ficam surpresos ao conhecer as justificativas de grandes pensadores sobre o trabalho escravo. Ainda que isso cause certa resistência dos leitores, ao invés de apenas atacar tais teorias com falsos estandartes esquerdistas, faremos como Benjamin Constant [01]:

"Evitarei, é claro, juntar-me aos detratores de um grande homem. Quando o acaso me faz aparentemente concordar com eles em um único ponto, desconfio de mim mesmo; e, para consolar-me de parecer por um instante, de sua opinião, sobre uma única e parcial questão, preciso desautorizar e descolorir quanto posso a esses supostos auxiliares."

Começando pela Grécia, onde os mais ricos estudos sobre a condição da escravidão foram escritos, falaremos um pouco sobre Aristóteles. Partindo das observações de Hannah Arendt e de suas distinções entre labor, trabalho e ação [02], temos que aquele entendia a liberdade como o estado prévio de independência das necessidades da vida e das relações dela decorrentes. Os homens livres se dedicavam ao belo; aos prazeres do corpo; aos assuntos da polis e a investigação e contemplação do mundo. Ou seja, aquilo que não era necessário ou útil; aos belos feitos produzidos pela excelência (areté) e à contemplação do universo [03].

A contra-pêlo do raciocínio contemporâneo, de que a vida política é uma das atividades mais banais e de pouca dedicação, concluímos que a atividade do déspota e do político não passa senão de uma modalidade de trabalho escravo, por se tratar de uma necessidade iminente dos Estados [04] e dos seus cidadãos, do corpo político. Em seus escritos de Política [05], Aristóteles afirma ainda que nenhum homem vive inteiramente isolado de outros homens:

(...) pois cada um destes, isoladamente, não é capaz de bastar-se a si mesmo e está [em relação à cidade] na mesma situação que uma parte em relação ao todo; o homem que é incapaz de viver em comunidade, ou que disso não tem necessidade porque basta-se a si próprio, não faz parte de uma cidade e deve ser, portanto, um bruto ou um deus.

Isso quer dizer que, além de estar submetido às necessidades físicas comuns a todos, uma vez privado do discurso (lexis), o homem permanece no cárcere da própria consciência, não atingindo nunca aquilo que não é simplesmente necessário ou útil, como é o caso do belo e da contemplação filosófica. Essa colocação estende-se também à família em relação às interações sociais como um todo, seja na polis grega ou no mundo vivido habermasiano regido pela Teoria da Ação Comunicativa.

No ambiente familiar, impera ainda o laço sanguíneo, a hierarquização dos indivíduos através de leis naturais como o grau de experiência paterna em relação ao filho ou como a superioridade física (força) do homem em relação à mulher [06]:

A polis diferenciava-se da família pelo fato de somente conhecer iguais, ao passo que a família era o centro da mais severa desigualdade. Ser livre significava ao mesmo tempo não estar sujeito às necessidades da vida, nem ao comando de outro e também não comandar [07].

Contudo, o trabalho e o labor não podem ser considerados as razões da escravidão. Com a queda das cidades-Estado, a contemplação passa a significar não só a vida política, mas o engajamento em todas as atividades do mundo. Guiada pelo mistério da Encarnação, os pensadores cristãos, como Santo Tomás de Aquino, enxergaram a quietude da alma como necessária à salvação. Essa necessidade cristã tem conexão direta como ressentimento de "ter um corpo" dos filósofos gregos. Segundo Platão, o corpo só atingiria o estado da beleza se estivesse plenamente quieto. Justamente por ficar em perfeito repouso, só o corpo do filósofo habitava a polis. Foi este ressentimento e essa aversão ao movimento grego, aliado à preocupação com a salvação cristã que deram aos modernos, inclusive no Brasil escravagista, a significação do trabalho como indigno e humilhante [08]. Nem sempre o trabalho teve essa conotação. Antes do desequilíbrio causado por Sócrates, entre a dualidade humana das paixões corpóreas e o intelecto, operada na reinterpretação do preceito délfico do "Conhece-te a ti mesmo", a atividade física presente no trabalho era igualmente considerada como desenvolvimento do indivíduo. Era parte da educação, da Paidéia [09].

A finalidade da ginástica, pela qual devem reger em detalhe os exercícios e esforços físicos, não é alcançar a força física de um atleta, mas desenvolver a coragem do guerreiro.

Maquiavel havia entendido bem o valor dessa virtude ao descrever a evolução do condottiere, da sua humilde posição, para um alto posto. Deixar a família, onde a única preocupação era defender a vida e a sobrevivência, para dedicar-se à coisa pública, significava arriscar a própria vida. A preocupação excessiva com a mortalidade ao invés da eternidade era uma característica que condicionava o homem à servilidade e à escravidão. Para Platão, a razão natural disso era a preferência pela condição de escravo do que a de morto: a vida ao invés da eternidade [10]. Prova disso é que os trabalhadores livres, submetidos à uma rotina inúmeras vezes mais penosa que a de alguns escravos, ainda consideravam-se mais afortunados que estes. Diferentemente do que ocorria nas Américas coloniais, o que determinava a condição de escravo não era sua cor ou incapacidade de resistência à modernas armas, mas ao caráter fraco [11], incapaz de se rebelar contra o determinismo.

O fato de hoje carregarmos os horrores da escravidão dos africanos nos tende a projetar sobre a escravatura grega uma visão legitimamente repulsiva, no entanto, por razões falaciosas. A ascensão das teorias econômicas e da Lei dos Grande Números nos fazem pensar que a idéia de mão-de-obra barata e eficiência correspondem aos motivos dos antigos. O caso do escravagismo grego é, claramente, uma tentativa de libertação do ser humano das meras necessidades corporais. As opiniões platônicas de que os filósofos eram quem deveriam governar eram, implicitamente, confirmadas pelo respeito, admiração e poder que causavam nos outros indivíduos, ainda que tal glória não fosse possível sem a sua sucumbência à força daqueles. Além do mais, muitos escravos eram tratados como membros da família e as punições corporais a que eram submetidos tinham, na maioria das vezes, caráter pedagógico-paternal. Não raro os castigos aplicados aos filhos legítimos e membros da família eram mais intensos do que o que aqueles que estes recebiam. Causa maior espanto ainda os fatos de Aristóteles ter alforriado, em seu leito de morte, todos os seus escravos e o de sempre ressaltar que escravos dedicados a ocupações livres deveriam ser tratados com mais "dignidade".

Com as revoluções que propiciaram a modernidade, o trabalho e o capital ganharam maior relevância. Fruto do desmoronamento da fronteira entre as esferas pública e privada, não só os feitos da vida ativa mas também os resultantes do labor, como os serviços prestados pela mão ou pela cabeça. Embora entre um e outro não haja uma distinção estrutural, o trabalho intelectual galgou uma posição de destaque na sociedade. Apesar de menos produtivo que o trabalho manual, já que nenhum vestígio deixa a não ser semcombinado com alguma espécie de trabalho manual, tal prestígio se deve a resquícios políticos que ainda ressurgem numa sociedade embebida na massificação, na equalização resultante da divisão internacional do trabalho [12]. Através dela, as atividades menos complexas antes destinadas aos jovens, tornaram-se ocupações vitalícias, acompanhadas de uma paulatina especialização, o que acabou por abolir a necessidade de trabalho qualificado, independente e livre:

Diante do trabalho mecânico, especializado pela divisão do trabalho, não só a máquina toma o lugar do homem mas também, como está implícito no texto de Hegel, o homem toma o lugar da máquina no trabalho que lhe sobra, de modo a se inserir numa necessidade total: contrária da liberdade [13].

Seria interessante ver a reação dos antigos diante da atual conceituação de "trabalho escravo" que os modernos vêm formulando. Todos seus institutos jurídicos, suas categorias sociais e políticas que, veladamente, tentam diferenciar subespécies de trabalho escravo.

A ascensão da esfera social e a eliminação do lado privado e íntimo de todo indivíduo viabilizou o fenômeno da sociedade de massas, consagrando todos os seres humanos, escravos. Talvez seja essa a maior herança da Escola de Frankfurt ao desvendar os mistérios da indústria cultural que transforma as aspirações e sonhos humanos em necessidades mercadológicas. Se a escravidão ruiu com as senzalas, as casas-grande continuam de pé por todos os lados: no seriado americano; na lata de refrigerante; nas grifes e ritmos da moda; nos altares das igrejas etc. Mais que nunca estamos submetidos às necessidades, e pior: na eterna ilusão de fragorosa liberdade. Portanto, as normas trabalhistas são meros reflexos imperfeitos de velhos caprichos e vontades de senhores no mais perverso grau, onde não há chibatas ou troncos, mas canetas e empresas.


Referências bibliográficas

CONSTANT, Benjamin. Da Liberdade dos Antigos Comparada a dos Modernos. CONSTANT, B. Da liberdade dos antigos comparada à dos homens (Discurso pronunciado no Real Ateneu de Paris em 1819). Tradução de Zélia Leonel. Apontamentos. nº. 22, Universidade Estadual de Maringá, 1994.

ARENDT, Hannah. A condição Humana. Tradução de Roberto Raposo, posfácio de Celso Lafer. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitáira, 2005

Aristóteles. Política. Livro I. Capítulo II. Disponível em: <http://www.unicamp.br/~jmarques/cursos/1998-hg-022/politica.doc>, acesso em 16 de novembro de 2006.

JAEGER, Werner. Paidéia – a formação do homem grego. Tradução de Arthur M. Pereira. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

Os pré-socráticos: fragmentos, doxografia, comentários. Seleção de textos e supervisão do Prof. José Cavalcante de Souza. Tradução de Anna Lia Amaral de Almeida Prado et al. Coleção Os pensadores. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978

GLOTZ, Gustavo. História Econômica da Grécia. Tradução de Vitorino Magalhães Gobino. Lisboa – Portugal: Edições Cosmo, 1973.

SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Hegel. Edições Loyola. São Paulo. Brasil, 1996.

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Notas

01 CONSTANT, Benjamin. Da Liberdade dos Antigos Comparada a dos Modernos. CONSTANT, B. Da liberdade dos antigos comparada à dos homens (Discurso pronunciado no Real Ateneu de Paris em 1819). Tradução de Zélia Leonel. Apontamentos. nº. 22, Universidade Estadual de Maringá, 1994. pp. 13-29.

02 O labor é a atividade biológica do corpo. O trabalho é a atividade do artificialismo humano. A ação (vida ativa) é a interação entre os homens que não são intermediados nem pelas coisas ou pela matéria; é a responsável pela pluralidade humana. Conf. ARENDT, Hannah. A condição Humana. Tradução de Roberto Raposo, posfácio de Celso Lafer. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitáira, 2005.

03Idem, ibidem. pp. 20 e 21.

04 Até nos dias de hoje, tal raciocínio é de fácil constatação para aqueles que têm oportunidade de visitar o Louvre, na França. Lá está exposto o aposento onde o rei fazia suas refeições e tinha sua vida "humana". Nos princípios monarquistas, o governante perde seu caráter de indivíduo para figurar como "Estado". Nenhuma das suas atitudes, vontades ou necessidades pode ser considerada antes das do Estado. Daí a famosa frase de Luís XIV: "O Estado sou Eu."

05Política. Livro I. Capítulo II. Disponível em: <http://www.unicamp.br/~jmarques/cursos/1998-hg-022/politica.doc>, acesso em 16 de novembro de 2006.

06 Voltando à Mitologia, podemos ver na Teogonia de Hesíodo, que o verdadeiro início da discriminação da mulher, após o período da sua exaltação aristocrática de Homero, teve início com o mito de Pandora. Quando Prometeu roubou o fogo dos deuses para dar aos homens, Zeus condena-o a ser acorrentado num rochedo para ter o fígado devorado eternamente por abutres. Para os mortais reserva desgraçada não pior: entrega a Epimeteu (irmão de Prometeu) um ser à imagem das deusas imortais que carrega consigo uma jarra contendo todo o caos possível. Destampada a jarra, todo mal é libertado no mundo, mantendo-se aprisionada somente a esperança. A partir daqui, a descriminação se intensifica: "Raça maldita das mulheres, terrível flagelo instalado no meio dos homens mortais". Conf. Os pré-socráticos: fragmentos, doxografia, comentários. Coleção Os pensadores. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978, pp. XVI e XVII.

07ARENDT, Hannah. op. cit., p. 41

08 Coisa muito diferente do que acontecia na Grécia Homérica.

09 JAEGER, Werner. Paidéia – a formação do homem grego. Tradução de Arthur M. Pereira. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 799.

Também Homero retrata bem essa significação do trabalho entre os nobres, mais especificamente no desafio lançado por Ulisses: "Disputemos qual de nós é capaz de trabalhar mais nos prados, na primavera, durante os dias compridos; empunharei a minha foice bem recurvada e tu a tua, e ceifaremos sem comer até o cair da noite, enquanto houver erva. Se tivermos de conduzir uma possante junta de bois... verás como rasgo a direito os sulcos.". Conf. GLOTZ, Gustavo. História Econômica da Grécia. Tradução de Vitorino Magalhães Gobino. Lisboa – Portugal: Edições Cosmo, 1973, p. 29.

10 ARENDT, Hannah. op. cit., p. 45.

11 Esse termo não deve ter uma conotação maniqueísta visto que os escravos eram quase todos estrangeiros capturados em guerras ou mesmo apresados por conterrâneos que prestavam serviços de transporte marítimos. Dessa forma, não há que se falar em etnia, raça ou cor determinante da escravidão. Conf. GLOTZ, Gustavo. ibidem. pp. 57 a 67.

12 ARENDT, Hannah. op. cit., p.101.

13 SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Hegel. Edições Loyola. São Paulo. Brasil, 1996, p. 377.

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Sobre o autor
Fabricio Santos Damasceno

consultor em estratégia empresarial, bacharelando em Direito pela UFMG

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DAMASCENO, Fabricio Santos. Trabalho escravo: o que é?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1569, 18 out. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10544. Acesso em: 29 mar. 2024.

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