O presente texto abordará uma pequena parte da Reforma Tributária proposta pela PEC 45 de 2019, aquela diretamente atrelada ao IPVA de competência dos Estados e Distrito Federal e a possibilidade de incidência sobre veículos automotores do segmento aéreo e aquático.
INTRODUÇÃO, HISTÓRICO E ORIGEM DO IPVA
Ao abordar um tema que envolve tributação, é sempre importante ter em mente as disposições da Constituição da República Federativa do Brasil – CRFB/88 e do Código Tributário Nacional – CTN, em razão do princípio da estrita legalidade que rege o sistema tributário constitucional.
No que se refere ao Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores – IPVA, a Constituição da República Federativa do Brasil – CRFB/88 não traz a definição e regras pré-definidas de tal tributo, como faz em vários outros, somente autoriza os entes competentes a instituí-lo, formando uma verdadeira lacuna constitucional:
Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:
[...]
III - propriedade de veículos automotores.
[...]
§ 6º O imposto previsto no inciso III:
I - terá alíquotas mínimas fixadas pelo Senado Federal;
II - poderá ter alíquotas diferenciadas em função do tipo e utilização.
Assim, sem um regramento amplo e nem mesmo a definição do critério material, foi proporcionada uma situação de descontrole, onde as interpretações são variadas, em especial, sobre a definição do conceito de “veículo automotor”.
O termo é comum, todavia, ao analisá-lo com mais calma e prudência, se verifica que poderá ser objeto de discussões acaloradas, afinal, qual sua abrangência?
Tal lacuna poderia ser sanada por meio de uma lei infraconstitucional nacional, como manda o atual sistema tributário, que normais gerais tributárias devem ser veiculadas por meio de lei complementar, todavia, o imposto foi originado após a publicação do Código Tributário Nacional da década de 60 e antes da Constituição Cidadã de 1988, onde não havia necessidade de respeito a tal regramento. Cada Estado detinha sua lei que trazia as diretrizes para aquele ente.
A origem histórica do IPVA é a Taxa Rodoviária Única – TRU, e como o próprio nome induz, a tributação é incidente aos veículos automotores rodoviários, ou seja, aqueles de transitam em rodovias, entendidas como terrestres, e somente essas.
Então aqueles que possuem humildes motocicletas e carros pagam, e os luxuosos aviões e embarcações no geral, não necessitam pagar IPVA/tributo sobre o patrimônio? Em análise inicial, sim!
COMO É TRATADO O IPVA ATUALMENTE, O CONCEITO DE VEÍCULO AUTOMOTOR
Conforme entendimento do doutrinador jurídico Yoshiaki Ichihara, à época da Constituição Cidadã, o veículo automotor é “qualquer veículo com propulsão por meio de motor, com fabricação e circulação autorizada e destinada ao transporte de mercadorias, pessoas ou bens” 1.
Assim, verifica-se que não há qualquer limitação à veículos utilizados no ar ou na água.
A lei do Tribunal Marítimo define que embarcação mercante é “tôda construção utilizada como meio de transporte por água”, equiparadas também aquelas de “transporte não remunerado e nas atividades religiosas, cientificas, beneficentes, recreativas e desportivas”, etc. (Art. 11, da Lei n. 2.180 de 1954).
Já o Código Brasileiro de Aeronáutica define aeronave com o “todo aparelho manobrável em vôo, que possa sustentar-se e circular no espaço aéreo, mediante reações aerodinâmicas, apto a transportar pessoas ou coisas” (Art. 106, da Lei 7.565 de 1986)
Em meio as discussões e interpretações diversas sobre a possibilidade e até mesmo a constitucionalidade da cobrança somente de veículos automotores terrestres, ao passo que a Constituição se refere a veículos automotores de forma genérica, o Supremo Tribunal Federal – STF foi acionado.
Importa frisar, desde já, que o conceito de veículo automotor não abarca, atualmente, as aeronaves e embarcações, conforme ficou definido no RE 379.572/RJ de 20082 julgado na Suprema Corte, não se sujeitando então, ao IPVA.
Tal processo traz fundamentação que se baseia na jurisprudência já fixada em 2002, ao RE 134.509/AM e RE 255.111/SP, os quais se basearam no parecer do antigo Procurador da República sobre a evolução da antiga TRU – Taxa Rodoviária Única, atrelada somente aos veículos terrestres. Ou seja, uma interpretação baseada no contexto histórico, que venho a discordar veementemente.
Sacha Calmon discorda de tal entendimento da Corte:
Parece-nos que o fato jurígeno descrito na Constituição é suficientemente amplo para abarcar todos os veículos automotores, incluindo aviões particulares e os barcos de recreio, inclusive jet-skis, mas excluindo os de uso restrito à exploração “intramuros” de fazendas e minas.
Discordamos, pois, nesse ponto específico, do posicionamento adotado pelo STF ao apreciar o RE nº 134.509/AM e o RE nº 255.111/SP, a saber, o de que o campo de incidência do IPVA não inclui embarcações e aeronaves.
Partiu-se de uma interpretação histórica: tendo em vista que o imposto estadual é sucessor da antiga Taxa Rodoviária Única e que esta exação não abrangia ditas materialidades, também ele não deveria abranger.
Arguiu-se, outrossim, uma razão meramente pragmática, relativamente à operacionalidade da distribuição do produto arrecadado com o IPVA entre os Estados e Municípios, pois embarcações e aeronaves a eles não se vinculam por nenhum ato registral. 3
A decisão cria uma vinculação objetiva com a antiga TRU, como se somente houvesse modificado seu nome, ignorando a ordem constitucional para possibilitar a cobrança de “veículos automotores”, em sua plena conceituação, violando por consequência, o princípio da legalidade, igualdade, isonomia, capacidade contributiva, entre outros, pois impõe a tributação sobre somente a classe baixa ou média, deixando de fora, aquelas pessoas com poder aquisitivo realmente abundante.
O argumento de defesa a tese da taxação única dos veículos terrestres, pois a arrecadação deste tributo serve a conservação somente de rodovias não merece prosperar, pois como um tributo da espécie dos impostos, não detém vinculação específica a qualquer área ou destinação.
Assim, a Reforma Tributária poderá derrubar o entendimento equivocado do STF sobre o IPVA, tributo que não se trata de mera atualização da TRU, mas é tributo novo e inovador, sem previsão prévia.
COMO FICARÁ O IPVA COM A REFORMA? A COBRANÇA DE AVIÕES, JATOS, LANCHAS, IATES, ETC.
A atual Reforma Tributária veiculada por meio da PEC 45/2019 – Proposta de Emenda Constitucional n. 45 de 2019 prevê em seu âmago, a simplificação do sistema tributário nacional por meio da atualização dos tributos sobre consumo, fundindo alguns dos já existentes para criar o sistema IVA-Dual, todavia, aproveitando a oportunidade, traz outras modificações relevantes, a exemplo do IPVA.
Como visto, o Poder Judiciário necessitou interferir na conceituação do objeto tributável, em razão da omissão do legislador, e ao fim, a tributação recaiu somente para os veículos terrestres, deixando de fora aquelas pessoas com alto poder aquisitivo, que para adquirir uma embarcação e aeronave necessitam de milhões/bilhões.
A Proposta de Emenda Constitucional n. 45 – PEC 45 de 2019 modifica tal entendimento, passando a constar diretamente na Constituição Federal, a possibilidade de tributação progressiva sobre veículos automotores terrestres, aquáticos e aéreos:
Art. 155 [...]
§ 6º [...]
II – poderá ter alíquotas diferenciadas em função do tipo, do valor, da utilização e do impacto ambiental;
III – incidirá sobre a propriedade de veículos automotores terrestres, aquáticos e aéreos, excetuadas:
a) aeronaves agrícolas e de operador certificado para prestar serviços aéreos a terceiros;
b) embarcações de pessoa jurídica que detenha outorga para prestar serviços de transporte aquaviário ou de pessoa física ou jurídica que pratique pesca industrial, artesanal, científica ou de subsistência;
c) plataformas suscetíveis de se locomoverem na água por meios próprios; e
d) tratores e máquinas agrícolas.” (NR)
Destaca-se que o legislador deixa claro seu entendimento e conceito de veículos automotores, podendo ser terrestres, aquáticos e aéreos, mas todos dentro do conceito basilar, ao contrário de correntes doutrinárias e o entendimento do Supremo, que realizam a distinção de conceitos, atrelando o termo somente com os veículos rodoviários.
Hoje, em proporção, o Brasil é um dos países com maior quantidade de donos de aviões particulares no mundo, e conforme pesquisa da empresa estadunidense Wealth-X, em 2021, o Brasil subiu ao pódio como o segundo lugar no mundo, somente atrás dos Estados Unidos4.
Além do aumento de arrecadação, entendo que a proposta visa primordialmente a função social do tributo, com maior isonomia no sistema tributário, e em prestígio a isso, o tributo será progressivo, com valores menores ou maiores a depender do tipo, do valor, da utilização e do impacto ambiental do veículo automotor, conforme a lei de cada Estado.
E como é possível verificar, se aprovada, não será toda a propriedade de veículos automotores que ocasionará a incidência do tributo, pois existem várias exceções, com o foco de proteger determinados segmentos econômicos e profissionais.
Um desses é o segmento agrícola, onde tanto as aeronaves quanto os veículos automotores terrestres conhecidos como tratores e máquinas agrícolas, não sofrerão com a tributação do imposto reformulado na proposta de reforma.
Esses são alguns apontamentos sobre a parte da Reforma que trata do IPVA aos veículos automotores.
ICHIHARA, Yoshiaki. Direito Tributário na nova Constituição. São Paulo: Atlas. 1989, p. 144.
STF, RE n° 379.572/RJ, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 01.02.2008. https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=506713
CALMON, Sacha. Curso de Direito Tributário Brasileiro, 17. ed. Forense, 2020. p. 593.