3 GOVERNO DE FRANCO MONTORO EM SÃO PAULO
De forma muito semelhante ao que ocorreu no Rio de Janeiro, o Estado de São Paulo elegeu para o mandato de 1983-1986 um candidato com histórico oposicionista ao regime autoritário, então em vias de extinção.
Com uma linha de atuação um pouco mais moderada do que a adotada por Leonel Brizola, Franco Montoro procurou controlar o caráter agressivo da polícia paulista e, por conseqüência, da mesma forma como ocorreu no Rio de Janeiro, sofreu fortes reações por parte da mídia, polícia e população. Integrando as fileiras do PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro), Franco Montoro tinha como parte de sua plataforma governamental o controle policial:
Franco Montoro tomou a sério a tarefa de estabelecer um governo democrático e um estado de direito que, para ele, incluía controlar a polícia. Seu plano de governo, resumido em um documento chamado Proposta Montoro, incluía uma parte sobre a reforma da polícia. No que dizia respeito à polícia civil (Proposta 1982: 33), o documento reconheceu sua "estrutura interna autoritária e ineficiente, vulnerável a episódios de corrupção e abusos do poder," que traria "mais medo do que tranqüilidade aos cidadãos. Propunha, entre outras coisas, a reforma da Corregedoria da Polícia Civil para assegurar "o controle eficiente das ocorrências de corrupção e violência" e a reforma da cúpula da hierarquia policial ao adotar a eleição de alguns diretores por chefes de polícia. (CALDEIRA, 2000, p. 164)
Assim como ocorrera no simultâneo governo carioca, Montoro percebeu a gravidade que representava a submissão da polícia militar às forças armadas, tendo trabalhado para posicionar o comando da polícia sob os balizamentos impostos pelo governo estadual.
De plano, Montoro nomeia pessoas ligadas à resistência ao regime autoritário para exercerem os cargos de cúpula da polícia e da Secretaria de Segurança Pública. Entretanto, as pressões e reações contrárias às escolhas foram tão grandes que Montoro viu-se obrigado a trocar de secretários três vezes no período de apenas um ano.
Diversas medidas foram tomadas visando uma maior contenção da polícia nas manifestações populares, sempre vistas pela polícia como atentatórias à ordem pública e, por vezes, reprimidas com violência. Incutiu-se maior idéia de organização em detrimento da ideologia da repressão.
Relata Teresa Pires do Rio Caldeira (2000, p. 167) que o novo Governo esforçou-se por construir um melhor controle dos dados acerca da atuação policial, especialmente das mortes ocasionadas a civis em confrontos com a polícia, os quais eram muitas vezes mascarados ou não catalogados com a necessária precisão. Os resultados da atuação governamental fizeram-se sentir:
O número de policiais punidos aumentou e o número de pessoas mortas pela polícia diminuiu, apesar do nível ainda alto. Em 1986, houve uma diminuição de 32% nas mortes de civis. Muylaert, secretário em 1986, diz que apesar de os números "não serem gloriosos", indicavam os resultados dos controles impostos à polícia militar. (CALDEIRA, 2000, p. 167)
Bastante simbólica foi a questão da ROTA (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar). Divisão da Polícia Militar, criada durante o regime ditatorial visando prioritariamente ao combate dos movimentos esquerdistas que se opunham ao regime autoritário, a ROTA era conhecida pela violência com que costumeiramente conduzia suas operações. Após o fim do regime militar, a ROTA foi direcionada para o combate da criminalidade, fato que ocasionaria, como é óbvio, uma transferência da visão militarista para o policiamento urbano.
Ainda durante a campanha para o Governo, surgiu a notícia de que Montoro tinha pretensões de extinguir a ROTA. Os protestos vieram de todos os lados: primeiramente da própria polícia que orgulhava-se da "excelente reputação" desfrutada pela ROTA perante a população. Em segundo plano, a verdade é que o povo temia e admirava a ROTA, aprovando sua atuação truculenta. Caldeira menciona entrevista concedida ao Jornal Folha de São Paulo, em 10 de outubro de 1982, pelo comandante da ROTA. Niomar Cirne Bezerra: "A Rota é adorada na periferia e odiada pelos intelectuais da classe média que vivem no centro da cidade". (CALDEIRA, 2000, p. 169)
Em pesquisa publicada pela Folha de São Paulo em dezembro de 1982 revelou-se que 85,1% das pessoas entrevistadas eram contra a extinção da ROTA. (CALDEIRA, 2000, p. 169-170). Comumente, a população clama por uma polícia "mais dura" e desaprova as orientações governamentais visando assegurar os direitos humanos; estes seriam os "direitos dos bandidos." Entretanto, o governo Montoro parecia ter a visão de que, inevitavelmente, se a ROTA atuasse, mataria, o que revelou-se verdadeiro. Ante as pressões populares, da polícia e da mídia, a ROTA permaneceu atuando, ainda que sob maiores limitações impostas pelo governo Montoro.
Aspecto de suma importância – nem sempre percebido – é que os Secretários de Segurança Pública na época de Montoro mostraram-se mais cuidadosos no uso da linguagem de combate à criminalidade. Normalmente, o uso de uma linguagem dura por parte do comando da polícia ou do governo em vigor, é interpretado pela polícia como autorização para matar. O discurso bastante atraente em matéria eleitoral de "tolerância zero" acaba soando para a polícia como um sinal para agir com truculência; bastante recomendável é que o político contenha suas palavras, percebendo a gravidade dos efeitos práticos que podem decorrer de frases irresponsáveis.
Assim como ocorrera no Rio de Janeiro, a oposição ao governo Montoro passou a confrontar "segurança pública e direitos humanos" como se respeitar os direitos humanos significasse o enfraquecimento da atuação policial. Essas passaram a ser as principais críticas ao modelo seguido pelo governo Franco Montoro, tanto que a principal preocupação da população passou a ser a segurança pública (CALDEIRA, 2000, p. 171), tornando-se este o tema principal dos debates para eleição do sucessor de Montoro. Com isso, da mesma forma como ocorreu no Rio de Janeiro (que elegeu o candidato que prometia maior recrudescimento da atuação policial), elegeu-se Orestes Quércia (1987-1990), com o discurso de endurecimento da polícia, sendo sucedido pelo seu Secretário de Segurança Pública Luís Antonio Fleury (1991-1994).
A imprensa, livre da censura do regime militar, sentiu-se livre para apoiar e incentivar o combate à filosofia de respeito aos direitos humanos, passando a apoiar de forma categórica ações violentas com o velho discurso "bandido bom é bandido morto". Os resultados são relatados por Teresa Pires do Rio Caldeira (2000, p. 174-181), como o aumento do número de civis mortos em confrontos policiais e, como auge dessa ideologia, o massacre na casa de detenção de São Paulo, onde, em 2 de outubro de 1992, 111 presos foram mortos pela polícia em condições que indicaram evidentes abusos da atuação policial.
CONCLUSÃO
Não obstante as diferenças de condições vividas pelos governos de Brizola e Montoro no período de 1983-1986, as atuações administrativas, no que concernia à segurança pública, assemelharam-se em grande parte, tanto quanto aos resultados positivos, quanto às conseqüências nefastas na opinião popular.
Ainda hoje, a questão dos direitos humanos é vista muito mais como um confronto à atuação policial rígida, ao mesmo tempo que "atuação policial dura" é encarada como "atuação policial eficiente", isso no imaginário popular, reforçado pela atuação da mídia.
Montoro e Brizola enfrentaram reações internas da própria polícia que viu-se desvalorizada, relegada a segundo plano, na condição de inimiga dos princípios democráticos e do pensamento esposado pelos governos democráticos que começavam sua dura caminhada, num terreno ainda marcado pela ditadura militar.
Em verdade, assim como se é possível reconhecer os claríssimos progressos decorrentes das novas visões de governo representadas por Montoro e Brizola, talvez, alguns anos após, críticas racionais possam ser tecidas em relação às opções perfilhadas na administração, já menos providas dos vícios que a contemporaneidade dos fatos acaba por criar.
Melhor do que ver a polícia como uma inimiga natural à implantação da doutrina dos direitos humanos seria elegê-la como principal veículo de implantação desses direitos. Obviamente, tal caminhar será extremamente gradativo, implicando uma mudança de mentalidade que pode levar gerações, haja vista que o sentimento de que a criminalidade é um "inimigo a ser vencido pela força", seja pela repressão direta ou pela própria prevenção, muitas vezes violenta, faz parte do pensamento das próprias corporações. Mudar a visão do mundo vivenciada pelo policial em suas duras incursões num campo onde apenas a força parece fazer algum sentido, implica atitudes muito mais complexas do que um simples estudo teórico sobre os direitos humanos positivados, ministrado em cursos preparatórios ou de reciclagem.
Fornecer a cartilha contendo a relação de direitos, palestrar sobre a importância de respeito a esses direitos, tudo isso tem inegável valor, mas revela-se claramente insuficiente, e soa ao policial como mero discurso desprovido de qualquer aplicabilidade prática. Sua rotina é bem outra: enfrentar, em condições materiais inferiores, criminosos organizados; sofrer constantemente o risco de perder sua vida ou de ver seus familiares ameaçados, como ocorreu em 2006 com as ações do crime organizado de São Paulo; assistir a impunidade com que são tratados os crimes de corrupção denunciados nas altas esferas: essa é a realidade do policial que, portanto, necessita muito mais do que apenas orientações teóricas.
Cristina Buarque de Hollanda formula crítica à atuação do governo carioca, na estão de Brizola, muito embora reconheça também inúmeros méritos: parece-lhe terem sobrado ao governo indicações negativas para a atividade policial (não matar, não torturar, não invadir barraco etc.), mas faltaram orientações positivas: como deveria agir a polícia diante da nova situação? Qual a nova função da polícia dentro de uma sociedade democrática?
Aparentemente, o simples estudo de cartilhas com conteúdo normativo sobre direitos humanos reconhecidos pela ONU foram insuficientes para demonstrar ao policial em treinamento no que isso deveria influir na sua atividade diária.
Talvez a solução passe por uma revisão da própria compreensão da própria finalidade da estrutura policial, ainda hoje encarada essencialmente como "combatedora dos criminosos", para uma nova visão, baseada na visão da polícia como "prevenidora de conflitos, administradora do convívio social, auxiliar do Poder Judiciário". Um bom governo, realmente democrático, deve se preocupar em esclarecer a opinião pública, desmascarar os falsos e fáceis discursos populistas de combate duro à violência que, invariavelmente, atingem o criminoso, mas também o trabalhador, o povo pobre das periferias, a criança da favela...
Entretanto, o que se nota dos debates políticos atuais é a completa ausência desses temas, havendo claros recursos ao simpático discurso do fortalecimento da polícia e do tratamento rigoroso dos criminosos, como se tais atitudes tivessem alguma serventia no efetivo combate à criminalidade.
Cabe ao administrador público compreender que, ao efetuar reformas, deve fazê-las de forma concomitante e estrategicamente continuada: ao mesmo tempo em que procura incutir no pensamento policial uma nova visão sobre a própria missão institucional, deve ter carisma suficiente para se fazer compreender pela polícia, pela população e pela mídia. Deve saber trabalhar em conjunto com organizações não governamentais, criando um sistema de segurança que abranja também entes da sociedade privada, e não apenas o Estado. Sem o apoio da maioria dos componentes sociais, nenhuma reforma se sustenta.
Ora, essas mudanças implicam, necessariamente, em legitimidade democrática e em autoridade (CALDEIRA, 2000, 206-207), esta última compreendida como a capacidade do governo de se fazer respeitar pacificamente pelo povo, de ser visto como capacitado a fazer cumprir seus desideratos.
REFERÊNCIAS
AMARAL, Luiz Otávio O. Direitos humanos e violência policial. Disponível em: <jus.com.br/artigos/3794> acesso em: 30 jul 2006.
BALESTRERI, Ricardo. Direitos Humanos: coisa de polícia. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/educar/balestreri/php/dh4.html> acesso em: 30 jul 2006.
CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. 2ª Ed. São Paulo: EDUSP, 2000.
HOLLANDA, Cristina Buarque de. Polícia e direitos humanos. Rio de Janeiro: Revan, 2005.
MARCINEIRO, Nazareno. PACHECO, Giovani C. Polícia comunitária. Florianópolis: Insular, 2005.
MEZZAROBA, Orides. MONTEIRO, Cláudia Servilha. Manuel de metodologia da pesquisa no direito. 2ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2005.