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Direitos humanos e ideologia policial

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24/10/2007 às 00:00
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O texto aponta alguns possíveis equívocos na apresentação da polícia como inimiga dos direitos humanos, quando, em verdade, deve ela ser erigida à condição de sua principal defensora.

SUMÁRIO: Introdução; 1. Polícia "Militar-Militarista" e Abertura Democrática; 2. Governo de Leonel Brizola no Rio de Janeiro; 3. Governo de Franco Montoro em São Paulo; Conclusão; Referências.

RESUMO: Analisa as dificuldades de efetiva implantação dos direitos humanos ante a ideologia policial brasileira. Principia discorrendo sobre a formação militar de parte da polícia brasileira e sua história vinculada ao aparelho repressor político. Tenta desvendar as razões que levam a sociedade brasileira a adotar um discurso que motiva a atuação agressiva das forças policiais. Constata que, com o aumento da criminalidade, a população, a mídia e os governos cada vez mais pregam o endurecimento da atuação policial, discurso que acaba por vitimar inocentes e aprova atuações ilegais por parte da polícia. Discorre sobre as tentativas dos Governos de Leonel Brizola, no Rio de Janeiro, e de Franco Montoro, no Estado de São Paulo, de exercer maior controle sobre a atuação policial, descrevendo os avanços que daí advieram, bem como as dificuldades de relacionamento de tais governos com a polícia. Demonstra que os governos sofreram dura campanha por parte da mídia e da polícia fato que os levou a não terem continuidade. Aponta alguns possíveis equívocos cometidos nesses governos como a colocação da polícia como inimiga dos direitos humanos quando, em verdade, deve ela ser erigida à condição de principal defensora desses direitos.

PALAVRAS-CHAVE: Direitos Humanos; Ideologia Policial; Militarismo; Atuação Policial; Violência.

ABSTRACT: This paper sets out to analyze the difficulties on the effective implementation of human rights in face of Brazilian Police ideology. It begins discussing the military formation of part of the Brazilian police force and its history connected to the political repressive apparatus. It tries to unveil the reasons why Brazilian society has adopted a speech motivating the aggressiveness of the police force. It verifies that, with the increase in criminality, the population, media and governments are demanding the stiffening of the police performance. This demand generates innocent victims and approves illegal acts by the police. It reasons about the attempts of Leonel Brizola’s Government in Rio de Janeiro, and of Franco Montoro’s, in the State of São Paulo, in exerting greater control of the police actions, describing the advances it generated, as well as the relationship difficulties these governments had with the police force. It demonstrates that the governments suffered a severe campaign by the media and by the police, and that this fact contributed for the non-continuity of their mandates. It presents some possible mistakes committed in these governments, such as the police being placed as an enemy of the human rights, when in reality it should be given the condition of main defender of these rights.

KEY WORDS: Human Rights; Police Ideology; Militarism; Police Performance; Violence.


INTRODUÇÃO

Nem o mais pessimista observador pode deixar de reconhecer os avanços verificáveis na sociedade brasileira após o término do regime militarista (1964-1985). Em especial, a nova Constituição Federal, promulgada em 1988, representa o ponto de partida para uma série de mudanças institucionais experimentadas em quase todas as áreas.

Alguns fatos demarcam especialmente referidos progressos, como o pacífico processo de impeachment sofrido pelo ex-presidente Fernando Collor de Mello, deposto em 1993 por meios legais, o que se realizou com amplo apoio popular, dentro de uma exemplar conduta cívica por parte dos poderes políticos, inclusive do próprio cassado, que jamais ousou trilhar caminhos golpistas, como certamente haveria de ocorrer em outras épocas.

No estudo do direito, avanços são observáveis pela crescente valorização que se dá, atualmente, ao ensino do direito constitucional, em detrimento à antiga visão civilista que alentava os operadores jurídicos até a década de 80, situação perfeitamente justificável numa Nação em que a Constituição tinha importância secundária, já que o poder não emanava da vontade popular.

A década de 90 sedimentou várias conquistas legais que já se encontravam estampadas na Constituição como, por exemplo, o advento do Código de Defesa do Consumir, o Estatuto da Criança e do Adolescente, a criação dos Juizados Especiais e muitas outras leis infraconstitucionais que pretendiam e pretendem tornar palpáveis as conquistas obtidas no campo constitucional.

A Constituição brasileira, analisada em seu aspecto formal, pode ser elevada à melhor categoria das constituições existentes, tendo sido acompanhada, em sua construção, por juristas do melhor jaez. Entretanto, trata-se de um diploma legal que é, ao mesmo tempo, "de todos e de ninguém"; é "de todos" porque no texto constitucional a totalidade das categorias sociais puderam influir durante a Assembléia Constituinte; mas, concomitantemente, é "de ninguém" porque nenhuma categoria social pôde fazê-la ao seu exato molde.

Por isso, tantas vezes ouvem-se críticas ao texto constitucional, algumas asseverando ser a Constituição excessivamente prolixa, outras que vêem-na incompleta. A esquerda vê pouca ousadia do texto constitucional; os liberais reclamam da excessiva regulamentação contida em seu texto.

Realidade insofismável, porém, é que a Constituição de 1988 estampou com rara felicidade uma série de direitos fundamentais, positivando-os, e tornando-os invocáveis por qualquer cidadão. O texto constitucional trouxe para o ordenamento legal brasileiro os mais modernos direitos, garantindo-os por mecanismos previstos na própria Constituição: a cláusula pétrea, o mandado de segurança, a ação popular etc.

Entretanto, não obstante a grandeza e a relativa rapidez desses avanços, há um segmento que não pode ser motivo de orgulho para nenhum brasileiro: a segurança pública.

Vê-se, em proporções cada vez maiores, a desesperada luta da sociedade visando assegurar a integridade física dos seus cidadãos, o direito à propriedade, o direito de viver em paz, sem que o Estado consiga aplacar a avalanche de violência que, diariamente, é apresentada sem constrangimentos pela mídia.

Nesse contexto, vozes clamam pelo endurecimento da ação policial, acreditando faltar ao Estado Democrático maior veemência em sua atuação repressiva. Estes clamores servem para aguçar os antigos vícios da polícia brasileira, acostumada a tratar o público como potencial inimigo, e não como "cliente" de sua atividade.

Com isso, restam desrespeitados direitos humanos de inúmeros cidadãos, especialmente das classes economicamente desfavorecidas. Os mortos produzidos pela violência policial não têm voz; o lamento dos familiares que sofrem a injustiça do julgamento sumário produzido pela equivocada atuação policial é visto antes como um lamento de bandidos, não tendo espaço destacado no rol de preocupações da sociedade brasileira.


1 POLÍCIA "MILITAR-MILITARISTA" E ABERTURA DEMOCRÁTICA

Tão importante quanto o estudo dos direitos humanos positivados pela Constituição é a questão de se estudar como tais direitos poderão ser garantidos no plano fático. Neste ponto, é essencial que se discuta e que sejam apresentadas soluções relacionadas à atuação policial.

Muito embora a atividade policial, pelo próprio escopo de sua existência, devesse se limitar à prevenção contra atos criminosos, à investigação desses atos, ao cumprimento estrito das ordem emanadas do Poder Judiciário, na prática, o que se observa é que a polícia termina por produzir ela própria julgamentos sumários, desprovidos de qualquer garantia constitucional, tomando a face de um Poder Judiciário primitivo.

O histórico da polícia brasileira, fortificado pela pífia atuação do Poder Judiciário, contribuem para a existência de uma polícia sem limites, fato aceito e visto sem sobressaltos pela maioria da população.

A alteração desse quadro não é simples, já que o Estado não pode prescindir da atividade repressiva, mas não conta com estrutura adequada para fazer reformulações no formato dessa atuação com a rapidez que se faria necessária.

Historicamente, a polícia brasileira organiza-se nos mesmos padrões militares, com rígida ordem hierárquica e espírito de corporação. A organização militar imposta à polícia decorre de governos autoritários, significando que a polícia não é apenas militar em sua forma organizacional, mas também pela ideologia militarista, aplicada danosamente à sua atuação diária. Trata-se de um sistema que contém uma ideologia idêntica ao sistema governamental antigo, autoritário, sustentado pelas forças armadas das quais a polícia fazia parte, atuando de forma conjunta na repressão. (MARCINEIRO; PACHECO, 2005, p. 58)

Criticando este quadro visto como inerente à nossa polícia militar, Amaral preleciona (2006, on-line):

A formação do militar, que é essencialmente profissional da guerra, não deve ser confundida com a do policial, mesmo porque o mais cruel dos bandidos não é o inimigo mortal a ser eliminado (senão a ser preso) como é fato normal e decisivo nas guerras. A essência da guerra é a eliminação do inimigo, a essência da missão policial é preservar a ordem pública e prender o criminoso, nada mais que isso...

Nesse lamentável contexto, em contribuição ao progresso que se deseja imprimir à implantação efetiva do respeito aos direitos humanos corporificados no texto constitucional, vale o trabalho de se identificar e analisar as poucas tentativas de se modificar a ideologia policial, tentando se constatar os erros praticados e os pontos fracos dessas atuações.

O ano de 1982 foi um ano marcante para o processo de abertura democrática que já ensaiava os primeiros passos. Naquele ano, foram realizadas eleições diretas para os governos estaduais, fato que não ocorria desde 1966. Também foram eleitos pelo voto direto prefeitos, vereadores, deputados estaduais e federais.

O país vivia um período de abertura ainda não sedimentado (a primeira eleição direta para a Presidência da República somente ocorreria seis anos depois). Com a análise dos dados históricos referentes aos governos do Rio de Janeiro e de São Paulo eleitos pelo voto direto, poderão ser visualizadas as imensas dificuldades de se implantar uma doutrina de respeito, por parte do Estado, aos direitos humanos, ante a visão militarista adotada pela polícia, no mesmo sentido que as forças armadas têm do inimigo numa guerra entre nações: a de que existe um inimigo a ser exterminado a qualquer custo. Em verdade, o "bandido" seria esse inimigo enquanto que as mortes ocasionadas a civis durante essas atuações seriam "acidentes de trabalho", conforme concluiu o governo de São Paulo à época do massacre de presos do carandirú, em 1992.

Há duas décadas, a polarização entre esquerda e direita era muito mais clara, fato que criava certamente visões preconceituosas de ambos os lados. Direitos humanos eram assunto típico de "esquerdistas"; repressão, instrumento típico de "conservadores:"

Polícia, então, foi uma atividade caracterizada pelos segmentos progressistas da sociedade, de forma equivocadamente conceitual, como necessariamente afeta à repressão anti-democrática, à truculência, ao conservadorismo. "Direitos Humanos" como militância, na outra ponta, passaram a ser vistos como ideologicamente filiados à esquerda, durante toda a vigência da Guerra Fria (estranhamente, nos países do "socialismo real", eram vistos como uma arma retórica e organizacional do capitalismo). No Brasil, em momento posterior da história, a partir da rearticulação democrática, agregou-se a seus ativistas a pecha de "defensores de bandidos" e da impunidade. (BALESTRERI, 2006, on-line)

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Nas eleições de 1983, no Rio de Janeiro, foi eleito governador Leonel Brizola, visível opositor do regime militarista; em São Paulo, elegeu-se Franco Montoro e em Minas Gerais Tancredo Neves que, três anos após seria eleito, indiretamente, Presidente da República, cargo no qual nunca chegaria a ser empossado.

As eleições desses três Governadores, em Estados importantes da Federação, deixaram claro que o regime autoritário não poderia durar; grande expectativa criou-se em torno da sua atuação, em especial pelas promessas de inovação e mudança que lhes serviram como plataforma de campanha.


2 GOVERNO DE LEONEL BRIZOLA NO RIO DE JANEIRO

Leonel Brizola foi eleito no Rio de Janeiro, saindo-se, na campanha eleitoral, de um início pouco promissor para uma vitória incontestável. Por sua central participação no governo deposto pelo golpe militar de 1964, Brizola era visto com desconfiança pelos setores conservadores. Socialista, fundara o Partido Democrático Trabalhista (PDT) que pretendia ser herdeiro da excelente imagem populista deixada por Getúlio Vargas.

Brizola não tinha como promessa de campanha o endurecimento da ação policial; todo o seu governo foi centrado em iniciativas educacionais, especialmente nos CIEP, os Centros Integrados de Educação Popular, comprometendo consideravelmente o orçamento do Estado nesse projeto. (HOLLANDA, 2005, p. 19)

Tal visão de governo estava em sintonia com o pensamento socialista que prefere ver o delinqüente como uma conseqüência da sociedade injusta. De plano, Brizola determinou que fossem adotados melhores critérios para a atuação policial, visando, antes de tudo, reduzir a letalidade das operações policiais. (HOLLANDA, 2005, p. 21)

A tradicional hegemonia do Exército sobre a Polícia Militar foi quebrada, subordinando-se a polícia militar diretamente ao governo estadual. Era necessário esse desatrelamento das forças armadas, já que durante o período da repressão a polícia servia como entidade de repressão e manutenção do status vigente, numa função de defensora do Estado concomitante à de defensora da segurança pública. Historicamente, a polícia foi utilizada para assegurar interesses de Estado, especialmente os de repressão política. Para alterar essa situação, a polícia deveria estar subordinada apenas ao governo estadual, eleito pelo voto popular.

Sintomática providência foi a revogação do sistema de "promoção por bravura" que, na prática, servia para fomentar com maior rudeza o pensamento de que "o bom policial é aquele que mata o bandido". Tais mortes, pretensamente contadas como sendo "mortes de bandidos" serviam positivamente como méritos a serem considerados para promoção em carreira dos policiais militares (HOLLANDA, 2005, p. 82). Difícil dizer quantas mortes foram causadas em razão desse desumano e equivocado sistema de avaliação policial...

Pretendendo modificar tal postura, segundo Cristina Buarque de Holanda (2005, p. 83), o quadro de diretrizes repassadas pelo novo governo estadual aos policiais em suas atuações passou a ser o seguinte:

I) o uso da força deve ser sempre o último recurso, depois de esgotados todos os outros meios não-violentos disponíveis;

II) a força somente deve ser usada quando for uma necessidade fundamental, e apenas com objetivos legítimos.

III) o uso da força, quando estritamente necessário como último recurso, deve ser proporcional à situação e aos objetivos legais que se procura alcançar;

IV) o uso ilegal da força não se pode justificar por circunstâncias especiais, excepcionais ou emergências;

V) o uso de quaisquer armas, principalmente as armas de fogo, deve ser considerado uma medida extrema, limitada por dispositivos legais, e deve ser feito com moderação;

VI) deve-se sempre procurar preservar a vida humana e a integridade física, dos policiais, das vítimas, de terceiros e dos suspeitos ou criminosos; e

VII) no caso de ser necessário o uso da força, em situação extrema, e esgotados todos os recursos não-violentos, deve ser assegurada a assistência médica, o mais rapidamente possível, a qualquer pessoa ferida ou atingida – incluindo os suspeitos ou criminosos envolvidos.

Constata-se que tais orientações eram, especialmente àquela época, inovadoras, representando uma nova postura ética para a atuação policial.

A polícia passa então a ver como sua função primordial "prevenir conflitos" ao invés de "combater bandidos"; os atos de violência passam a ser contidos e desincentivados. A nova polícia era, ou pretendia ser, em suma, preventiva, eficaz, comunitária, legal e socializada. (HOLLANDA, 2005, p. 88)

Porém, a principal inovação trazida pelo governo de Brizola foi a instituição do Conselho de Justiça, Segurança Pública e Direitos Humanos (C.J.S.P.D.H.). Criado por decreto em abril de 1983, o Conselho tinha por missão encaminhar demandas, sugestões, denúncias e reflexões sobre assuntos ligados à segurança pública. (HOLLANDA, 2005, p. 89)

Referido Conselho tinha por missão resguardar os direitos inerentes ao ser humano; não tinha, obviamente, missão legalista-formal, mas especialmente trazer à realidade os direitos já estampados na lei.

Muito embora a quantidade de denúncias encaminhadas ao Conselho tenha sido pouco superior a mil (HOLLANDA, 2005, p. 93), quantidade certamente simbólica diante da enorme gama de abusos que o senso comum apresenta, a verdade é que o órgão representou clara sinalização para a atuação policial, evidenciando a obstinação governamental em garantir os direitos do cidadão e conter os extrapolamentos. Ainda mais enriquece a iniciativa o seu pioneirismo.

Entretanto, tais medidas restritivas da atuação policial, o desvio do foco da "repressão" para a "contenção" não agradou nem à polícia, nem à mídia, nem à população em geral.

De plano, a relação do governo com a mídia, já desgastada antes mesmo do início da gestão em razão do passado polêmico do governador, deteriorou-se, já que o aumento da violência registrado na época (o que não foi um fenômeno isolado do Rio de Janeiro, fato que indicava não haver relação entre as novas medidas e a degradação da segurança pública) serviu como munição para a mídia iniciar uma campanha quase alarmista, criando-se um clima de histeria geral.

O próprio Brizola reconheceu, em dado momento, que a própria população desejava voltar ao anterior sistema, que englobava práticas condenáveis de combate à violência. (HOLLANDA, 2005, p. 98)

De fato, a polícia fora orientada a "respeitar os barracos", a evitar a subida aos morros visando ao combate direto do crime organizado, atos que quase sempre levavam a resultados pífios, com constantes mortes de inocentes em razão dos combates armados em meio a localidades densamente povoadas.

A mídia e a própria polícia passaram a acusar o governo de ter firmado um "acordo branco" com o narcotráfico. No mesmo sentido, surgiram suspeitas de que o governo estaria acobertando o "jogo do bicho", tradicionalíssimo em todo o Brasil e especialmente organizado no Rio de Janeiro.

Ocorre que, segundo Cristina Buarque de Hollanda (2005, p. 126), o jogo do bicho funcionava como verdadeiro mantenedor da polícia. Por acobertar a contravenção, a polícia costumeiramente constava das folhas de pagamento das quadrilhas, assim como a própria infra-estrutura policial era abastecida, como o mobiliário das delegacias, manutenção de veículos etc. Por ser visto como um crime "menor", a polícia tolerava o jogo do bicho em troca de benefícios escusos.

O governo Brizola, então, como possível estratégia visando minar este sistema de corrupção, passou a orientar a polícia a não reprimir o jogo, sob o argumento de que outros crimes mais graves deveriam ser combatidos pela polícia que não deveria se preocupar com a contravenção mencionada.

Tal postura enfraqueceu sobremaneira o sistema de corrupção implantado, já que o bicheiro sentia-se seguro pelo novo sistema, e não se via mais ameaçado pela repressão policial. Com isso, a polícia perdeu substancialmente seu sustentáculo, sendo certo que, em razão desse fato novo, passou-se a verificar um financiamento ilícito muito mais voltado para o narcotráfico. De certa forma, a ala policial corrompida buscou outras fontes de financiamento. (HOLLANDA, 2005, p. 128)

Surgiram acusações de que o jogo do bicho estaria financiando o próprio governo, fato comentado pela própria polícia.

Independentemente das causas que levaram à mudança de posicionamento policial – influência dos bicheiros ou ideologia voltada para a implantação efetiva dos direitos humanos – a verdade é que tais modificações ocasionaram impacto negativo na imagem do governo. O aumento da violência, amplificado pelo tom histérico adotado nos discursos da mídia, as restrições impostas ao combate direito do narcotráfico, a retirada da principal fonte de financiamento ilegal da atividade da polícia (jogo do bicho) e a ausência de um discurso duro por parte do governo contra o aumento da criminalidade, redundou em indisciplina policial e descontentamento da população.

Cristina Buarque de Hollanda (2005, p. 131-132) relata caso representativo da má compreensão dos novos orientativos por parte da polícia. Noticia que em assalto a uma residência situada em bairro nobre da cidade, a polícia simplesmente deixou de agir, alegando que a necessidade de se respeitar os direitos humanos a impedia de exercer sua atividade repressiva. Foram registrados graves atentados à disciplina policial. A classe, talvez afrontada pela omissão do governo no combate ao jogo do bicho ou talvez insatisfeita com a perda de sua principal fonte de financiamento ilegal, em vários momentos agiu em clara afronta ao governo central como em determinada situação, relatada por Cristina Buarque de Hollanda (2005, p. 133), na qual centenas de policiais saíram, em operação, "estourando" pontos de jogos, extrapolando inclusive as jurisdições regionais, visando "moralizar" a atuação da polícia. Isto se deu em claro desatendimento às diretrizes de atuação governamental.

A polícia sentia-se afrontada e desprestigiada pela ideologia do governo e via-a como protetiva dos criminosos. Ao final do Governo Brizola, a relação com a polícia encontrava-se bastante desgastada.

Nesse universo de pressões advindas da insatisfação policial, aumento da violência e tratamento catastrófico da mídia, Brizola não conseguiu fazer seu sucessor, tendo sido eleito Moreira Franco montado justamente num discurso baseado na "lei e na ordem".

Iniciativas tomadas pelo governo visando ao maior respeito aos direitos humanos, se não foram totalmente olvidadas, foram postas em segundo plano pelo governo que o sucedeu, com o retorno ao velho discurso de que a polícia tinha por missão básica combater frontalmente a criminalidade, mesmo que à custa de severas baixas de ambos os lados e a percepção geral de que a morte de algumas vítimas inocentes era indesejável, mas inevitável.

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Sobre o autor
Paulo Sergio Rosso

procurador do Estado do Paraná, professor de Direito Tributário e Sociologia Jurídica pela UENP/FUNDINOPI e FANORPI, mestrando em Ciência Jurídica

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROSSO, Paulo Sergio. Direitos humanos e ideologia policial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1575, 24 out. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10565. Acesso em: 23 dez. 2024.

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