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Responsabilidade por danos causados por animais no novo Código Civil

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30/10/2007 às 00:00
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5. FATO DO ANIMAL NOS CÓDIGOS CIVIS ESTRANGEIROS

Segundo FACIO (1981, p. 585-587), existem basicamente duas espécies de sistemas, no que tange a responsabilidade civil pelo fato das coisas: a) um primeiro, típico de sistemas nos quais os conceitos de responsabilidade pelo fato das coisas não sofreu e evolução, segundo os quais os danos ocasionados por fato da coisa (e, portanto, fato do animal) são tratados pelas regras de direito comum, não recebendo uma atenção específica; b) uma segunda espécie de sistemas, onde se adota uma doutrina específica pelo "fato da coisa" que se funda sobre princípios próprios, derivados fundamentalmente da doutrina e jurisprudência francesas. A este última grupo filia-se nosso sistema legal e a maioria das legislações, onde também podem ser observadas subdivisões:

Exceto o direito inglês e o Código Civil austríaco de 1811, as legislações européias admitem teoria geral da responsabilidade especial pelos danos causados pelos animais. O que há de diferente é a solução adotada. Uns recorrem ao risco: o Código Civil alemão, a doutrina italiana e a doutrina francesa em alguns escritores, fundam a responsabilidade no risco, assunto que merece trato especial; outros optam pela responsabilidade por culpa presumida, e tal é o sistema suíço, bem assim o português e o brasileiro. [o autor referia-se ao antigo Código Civil brasileiro; hoje, pode-se dizer que nosso Código aproximou-se da teoria do risco]. (MIRANDA, 1966, p. 310)

O Código Civil francês representa o ponto inicial de todas as legislações. Consta do art. 1.385: "O proprietário de um animal, ou aquele que dele se serve, é responsável pelo dano que ele cause, esteja o animal sob sua guarda, tenha-se extraviado ou escapado." 7 (FRANÇA, 2007, versão nossa). Vê-se que o artigo em questão (já comentado no item anterior), aparentemente, criaria uma responsabilidade bastante ampla sobre o proprietário. Nele encontra-se implícita a noção de guarda ("ou aquele que dele se serve").

Já o Código Civil Português menciona o fato do animal em dois artigos distintos, abraçando claramente "presunção de culpa":

Art. 493. Quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar, e bem assim quem tiver assumido o encargo da vigilância de quaisquer animais, responde pelos danos que a coisa ou os animais causarem, salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua. [...].

Art. 502. Quem no seu próprio interesse utilizar quaisquer animais responde pelos danos que eles causarem, desde que os danos resultem do perigo especial que envolve a sua utilização. (PORTUGAL, 2007)

O Código Civil Espanhol adotou redação que se aproxima em muito da brasileira, estipulando que apenas a força maior ou culpa exclusiva da vítima servem para exonerar o possuidor do animal:

Art. 1905. O possuidor de um animal, o quem se serve dele, é responsável pelos prejuízos que causar, ainda que se lhe escape ou extravie. Só cessará esta responsabilidade no caso do dano decorrer de força maior ou de culpa de quem o tiver sofrido. 8 (ESPANHA, 2007, versão nossa)

O Código Civil italiano não se desviou do Código francês:

Art. 2051. Dano Causado por animais. O proprietário de um animal ou quem dele se serve pelo tempo em que o utiliza, é responsável pelos danos causados pelo animal, ainda que estivesse sob sua custódia, ainda que extraviado ou fugido, salvo se provar o caso fortuito. 9(ITÁLIA, 2007, versão nossa)

Vê-se que o Código italiano não contém previsão acerca da culpa exclusiva da vítima, o que não significa dizer que, nesta hipótese, também responderá o proprietário. Em algumas situações, poderá a vítima fazer prova da excludente, com base na teoria geral da responsabilidade civil.

Comentando o art. 2052. do Código Civil italiano, Adriano de Cupis (1966, p. 139) assevera:

O perigo de dano que pode ser causado por um animal é muito considerável; e a tal perigo pode também dar-se que corresponda uma situação de particular vantagem para o proprietário ou quem por outro título se serve do animal, dados os serviços que os animais podem eventualmente desempenhar. Por isso, também aqui o legislador se contentou em inverter o ônus da prova da culpa, impondo ao proprietário do animal, ou a quem lhe servir, a prova do "caso fortuito."(tradução nossa) 10

Ao contrário do atual Código Civil brasileiro, o Código Civil argentino regula a mesma matéria com maior minudência, em oito artigos, sendo que, naquele que inaugura o capítulo, consta a regra geral: "Art. 1.124. O proprietário de um animal, doméstico ou feroz, é responsável pelo dano que causar. A mesma responsabilidade pesa sobre a pessoa a qual se tenha mandado o animal para servir-se dele, salvo seu recurso contra o proprietário." 11 (ARGENTINA, 2007, versão nossa) Nesta primeira regra, estabelece-se que o proprietário é sempre responsável pelos danos causados pelo animal, o que seria um caso de responsabilidade objetiva pura. Entretanto, os demais artigos deixam claro que não é assim, havendo menção à exclusão de responsabilidade quando o animal é provocado por outro (art. 1.130) 12, se o animal tiver escapado sem culpa do responsável (art. 1.127) 13, força maior ou culpa da vítima (art. 1.128) 14 ou se o animal causador do dano foi provocado por terceira pessoa (art. 1.125) 15.

Constata-se, pois, que o Código Civil argentino aproxima-se muito mais do revogado Código Civil brasileiro de 1916, e ainda vai mais além, regulamentando, talvez de maneira excessiva, a matéria. Afasta-as claramente da responsabilidade objetiva, adotando a responsabilidade subjetiva, com inversão do ônus da prova.

Enfim, ao que parece, o Código Civil brasileiro foi, comparativamente com os demais, bastante ousado, adotando uma redação enxuta e adotando a responsabilização objetiva, o que está em plena consonância com as tendências do moderno direito civil. Muitos anos atrás, Pontes de Miranda (1966, p. 309-310) previa: "O direito de hoje é mais objetivo, em se tratando de animais, como o do futuro será ainda mais objetivo, mesmo em se tratando de homens."


CONCLUSÃO

Demonstrando louvável preocupação com a grande quantidade de acidentes ocasionados por animais, alguns deles intencionalmente criados para a agressão, o legislador buscou, de alguma forma, tornar mais complicada a defesa processual do proprietário ou detentor do animal, limitando, na redação do art. 936. do novo Código Civil, as possibilidades de exclusão de responsabilidade.

Dando um passo significativo em direção à responsabilidade objetiva (ou, até mesmo, aproximando-se da teoria do risco integral), o novo Código Civil passou a prever apenas duas hipóteses de exclusão da responsabilidade do detentor ou proprietário: culpa exclusiva da vítima ou ocorrência de força maior. Nem mesmo o caso fortuito serviria para excluir a responsabilidade, o que representa um agravamento até mesmo sobre a responsabilidade do Estado, por exemplo, que admite esta forma de exclusão (salvo se se compreender que a expressão "força maior" foi utilizada em sentido lato, abrangendo também o caso fortuito).

Afigura-se acertada a decisão do legislador. O que se tem observado é que, em regra, os acidentes são causados por animais especialmente criados para o confronto, muitas vezes treinados para que suas características genéticas, naturalmente agressivas, sejam reforçadas. Seja por temor de marginais, seja por desvio psicológico, atração natural pela violência ou outras questões, a verdade é que raças de cães cuja criação deveria ser coibida pelo Estado, são extremamente valorizadas. Suas crias são anunciadas em jornais. Esquece-se o Estado de que alguns desses animais funcionam como verdadeiras armas e que as principais vítimas, via de regra, são as crianças (veja-se o caso descrito na introdução).

Por isso, nosso Código mostra-se mais avançado e mais ousado do que os demais, e há que se questionar, inclusive, se não seria o caso de se avançar ainda mais, impondo ao dono ou detentor a responsabilidade mesmo em caso de força maior, o que seria uma adoção da teoria do risco integral. Obviamente, parece justo que permaneça a excludente em razão de culpa exclusiva da vítima, porém, mesmo em casos de força maior, afigurar-se-ia mais correto que o dono fosse responsabilizado também, já que ele optou pela criação do animal perigoso, ocasionador do dano. Obviamente, a questão da ocorrência da força maior, do grau de culpabilidade, da participação da vítima etc., tudo isso seria analisado no momento da fixação do quantum indenizatório.

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Isto significa, portanto, que, em primeiro plano, a prova de alguma excludente não prevista no art. 936. do Código Civil, não redundaria na exclusão da responsabilidade. Entretanto, não se pode dizer que referida prova seja de todo inútil, afinal, tais fatores hão de ser levados em consideração no momento seguinte, qual seja, no instante da fixação da indenização.

À parte das questões jurídicas envolvidas, o que se espera é que a alteração sirva para reprimir, de forma eficaz, os acidentes ocasionados por animais, sendo certo que é o homem, com seu descuido ou seu desamor ao próximo, o verdadeiro agressor.


REFERÊNCIAS

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Sobre o autor
Paulo Sergio Rosso

procurador do Estado do Paraná, professor de Direito Tributário e Sociologia Jurídica pela UENP/FUNDINOPI e FANORPI, mestrando em Ciência Jurídica

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROSSO, Paulo Sergio. Responsabilidade por danos causados por animais no novo Código Civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1581, 30 out. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10570. Acesso em: 25 abr. 2024.

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