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A mais nova invenção do legislador da CLT.

A possibilidade de tempo à disposição do empregador sem o pagamento de salário

26/10/2007 às 00:00
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A Lei Complementar n° 123, de 14 de dezembro de 2006, ao instituir o Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte, acresceu o parágrafo terceiro ao artigo 58 da CLT:

§ 3º Poderão ser fixados, para as microempresas e empresas de pequeno porte, por meio de acordo ou convenção coletiva, em caso de transporte fornecido pelo empregador, em local de difícil acesso ou não servido por transporte público, o tempo médio despendido pelo empregado, bem como a forma e a natureza da remuneração."

Como se observa, o artigo está a tratar das chamadas horas itinerantes ou horas in itinere, conhecidas estas como o tempo que o empregado gasta para o deslocamento a local de trabalho de difícil acesso, se em transporte fornecido pelo empregador.

Antes da aprovação de referido parágrafo, o instituto era regulado exclusivamente pelo parágrafo segundo do artigo 58 da CLT, segundo o qual:

"§ 2° O tempo despendido pelo empregado até o local de trabalho e para o seu retorno por qualquer meio de transporte, não será computado na jornada de trabalho, salvo quando, tratando-se de local de difícil acesso ou não servido por transporte público, o empregador fornecer a condução".

Comparando-se os dois dispositivos, verifica-se uma atenuação do princípio da primazia da realidade quando se tratar de microempresas ou empresas de pequeno porte. Com efeito, por meio de acordo ou convenção coletiva, não será mais o tempo efetivo de deslocamento para o local de difícil acesso que integrará a jornada do trabalhador, mas sim o tempo médio obtido por processo autocompositivo de vontades.

Considerado um dos mais importantes princípios informadores do Direito do Trabalho, o princípio da primazia da realidade, "chamado ainda de princípio do contrato realidade" (Delgado, 2004, p. 208), orienta que "no caso de discordância entre o que ocorre de fato e o que está nos documentos trabalhistas, haverá a prevalência do sucedido no plano dos fatos" (Neto, 2004, p. 103). Em razão de tal princípio "a relação objetiva evidenciada pelos fatos define a verdadeira relação jurídica estipulada pelos contratantes, ainda que sob capa simulada, não correspondente à realidade" (Süssekind, 1993, p. 129). Rodriguez (apud SÜSSEKIND, 1993, p. 129) diz que: "isto significa que, em matéria trabalhista, importa o que ocorre na prática mais do que o que as partes pactuaram, em forma mais ou menos solene ou expressa, ou o que se insere em documentos, formulários e instrumentos de contrato".

A fixação, por meio de acordo ou convenção coletiva, de tempo médio relativo a deslocamento, relega a segundo plano a realidade efetivamente verificada. Além do mais, o produto negocial será muitas vezes resultado da medição de forças própria de muitos acordos ou convenções, pois é comum a renúncia ou flexibilização de determinada cláusula para que se obtenha incremento de outra considerada mais vantajosa.

Considere-se, a título exemplificativo, um empregado que, para se deslocar ao local de trabalho de difícil acesso, necessita de sessenta minutos por trajeto. A convenção coletiva de trabalho de sua categoria, em razão do autorizativo do parágrafo 3º do artigo 58 da CLT, fixa como de cinqüenta minutos referido tempo, por considerá-lo médio. Nota-se aí um prejuízo de vinte minutos diários ao obreiro (dois trajetos de dez minutos).

Mas a situação pode se afigurar ainda mais preocupante.

Considere-se que a mesma convenção coletiva de trabalho em determinado momento tenha embate sério no que concerne à renovação da cláusula referente ao reajuste salarial. O sindicato obreiro busca em determinado ano reajuste superior àquele que quer conceder a classe patronal. Para evitar que o embate resulte em dissídio coletivo a classe patronal faz a seguinte proposta: aceita o pedido de reajuste salarial desde que haja redução da média prevista no parágrafo terceiro do artigo 58 da CLT, fixando-a em quarenta e cinco minutos. Acaso aceita a proposta patronal, o prejuízo ao trabalhador que já era de vinte minutos diários passa a ser de trinta minutos diários.

Ainda dentro do arcabouço flexibilizatório de direitos trabalhistas aplicável às microempresas e empresas de pequeno porte, o pacote do parágrafo terceiro do artigo 58 também autoriza a possibilidade de definição, através de acordo ou convenção coletiva, em caso de transporte fornecido pelo empregador, em local de difícil acesso ou não servido por transporte público, da natureza da remuneração desse tempo à disposição do empregador, inserto na jornada de trabalho. Isso pode significar para o trabalhador um decréscimo substancial do seu quantitativo remuneratório. É que, dado o autorizativo do parágrafo terceiro em análise, parece viável a atribuição, por acordo ou convenção coletiva, de cunho indenizatório à remuneração relativa ao tempo em que o empregado está no transporte patronal, em direção e no retorno do dito local de difícil acesso. Os prejuízos ao obreiro daí advindos são grandes, porque se a paga do tempo é de cunho indenizatório, se mostram impossível integrações em verbas como 13º salário, férias, FGTS e aviso prévio indenizado, só para arrolar algumas.

Se faz necessário quantificar o prejuízo, para melhor compreensão.

Considerem-se dois trabalhadores que auferem, como salário, R$ 400,00 mensais cada um. Ambos trabalhadores necessitam deslocar-se para uma mesma região de difícil acesso, através de transporte fornecido por seus respectivos empregadores. Levam o mesmo tempo médio de deslocamento, estabelecido em convenção coletiva, como de uma hora por trajeto não servido por transporte público (casa-trabalho e vice-versa). Na convenção coletiva de trabalho aplicável a um deles está estabelecido que a remuneração dessa hora é indenizatória. Na convenção coletiva aplicável ao outro trabalhador a remuneração tem natureza salarial. Utilizando-se o divisor 220 relativamente a ambos obtém-se R$ 1,81 por hora de trabalho. Assim, o trabalhador que tem a remuneração das horas itinerantes como indenizatória, ganhará a quantia mensal de R$ 79,64 sob tal título (R$ 1,81 x 2 horas = R$ 3,62 x 22 dias = R$ 79,64) considerados 22 dias de trabalho por mês. Entretanto, o empregado que percebe tal verba como salário, terá as integrações em FGTS (R$ 6,37 mensais), em 13º salário (R$ 79,64 anuais) e em férias com 1/3 (R$ 106,18 anuais). Em cinco anos de trabalho, o último trabalhador, consideradas apenas essas integrações, perceberá R$ 1311,30 a mais, quantia significativa em razão do salário considerado.

Vargas, (2002, p. 63) denuncia que:

O sistema protetivo, montado já há mais de cinqüenta anos em nosso país e reforçado pela Constituição Federal de 1988, vem sendo objeto de paulatina desconstrução, através de sucessivas alterações propostas pelo Governo Federal, sempre no sentido desregulatório e flexibilizante. Podemos citar exemplos: demissão temporária, regime de trabalho em tempo parcial, fim da política salarial, restrição do poder normativo da Justiça do Trabalho. Muitas dessas alterações têm sido feitas por ação direta do Executivo, através de medidas provisórias.

Alguns reflexos da flexibilização do direito do trabalho são arrolados por Olea (apud SOUZA, 2001, p. 14):

[...] multiplicação de contratos atípicos; maior incidência dos contratos de tempo parcial; debilitação do princípio da estabilidade; maior utilização dos contratos por prazo determinado; ressurgimento do trabalho a domicílio; decadência do módulo hebdomadário; difusão da subcontratação; expansão da multiplicidade de empregos; incorporação das mulheres no mercado de trabalho; elastecimento da economia submersa; ambivalência da convenção coletiva, com admissibilidade dos efeitos in melius e in pejus; utilização do contrato de aprendizagem como medida de fomento ao emprego; revisão da seguridade social, com vistas à contenção das despesas respectivas.

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Verificando-se o rol apresentado pelo autor acima, se afigura verdadeiro que a flexibilização do direito do trabalho possui vantagens. Entretanto, o número de desvantagens é enormemente maior porque, se de um lado a flexibilização possibilita o incremento da ocupação da mão-de-obra em quantidade, o reduz drasticamente no aspecto qualitativo.

E a previsão legislativa do parágrafo 3º do artigo 58 da CLT certamente encontra resistência até mesmo de defensores da flexibilização do direito do trabalho, como Pimentel (apud SOUZA, 2001, p. 15), pois referido autor afirma "que a legislação do trabalho deve ficar limitada à definição da função, local de trabalho, salário, jornada máxima, higiene e segurança e poucos outros". Ora, não restam dúvidas de que o estabelecimento de tempo médio relativo a deslocamento do empregado, mediante convenção coletiva, é alterar para mais ou para menos o lapso efetivamente despendido para o local de difícil acesso ou não servido por transporte público. Em linhas outras, é alterar a jornada de trabalho efetivamente observada que, na hipótese ventilada alhures, poderá ultrapassar bastante a máxima legalmente permitida.

Assim é que, segundo Souza, 2001, a Organização Internacional do Trabalho não ratifica a flexibilização dos direitos trabalhistas, mormente em relação àqueles já consagrados pelos trabalhadores, porque o instituto menospreza o aprimoramento da mão-de-obra, deixando-a marginalizada e insegura, depredando-a ao invés de favorecê-la.

E tudo isso sem considerar que o legislador do parágrafo terceiro do artigo 58 da CLT, ao utilizar-se da expressão acordo ou convenção coletiva, também abre campo fértil a possibilitar a utilização de "acordo individual" para o "arbitramento" pelo empregador do tempo médio despendido pelo empregado no deslocamento ao local de difícil acesso através de transporte fornecido pela empresa.


BIBLIOGRAFIA

BRASIL. Decreto-Lei 5.452, de 1º mai. 1943. Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho. Publicada em 9 mai. 1943. Diário Oficial da União, p. 11.937.

BRASIL. Lei Complementar n. 123, de 14 de dezembro de 2006. Institui o Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte; altera dispositivos das Leis n°s 8212 e 8213, ambas de 24 de julho de 1991, da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, aprovada pelo Decreto-Lei n. 5452, de 1° de maio de 1943, da Lei n° 10189, de 14 de fevereiro de 2001, da Lei Complementar n° 63, de 11 de janeiro de 1990, e revoga as Leis n°s 9317, de 5 de dezembro de 1996, e 9841, de 5 de outubro de 1999. Publicada em 15 dez. 2006. Diário Oficial da União, p. 1.

DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 3. ed. São Paulo: LTr. 2004. 1471 p.

NETO, Francisco Ferreira Jorge; CAVALCANTE, Jouberto de Quadros Pessoa. Manual de Direito do Trabalho. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2004. 1698 p.

SOUZA, Mauro César Martins de. Flexibilização da Jornada em Turnos Ininterruptos de Revezamento Mediante Negociação Coletiva. Revista Justiça do Trabalho. HS, n. 214, ano 18, Out. 2001, pg. 11.

SÜSSEKIND, Arnaldo; MARANHÃO, Délio; VIANNA, Segadas. Instituições de Direito do Trabalho. 14ª ed. São Paulo: LTr. 1993. 1349 p.

VARGAS, Luiz Alberto de; SANTOS, Carlos Augusto Moreira dos. O Software de Controle de Jornada de Trabalho é Seguro e Confiável? Revista Justiça do Trabalho. HS, n. 222, ano 19, Jun. 2002, pg. 58.

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Sobre o autor
Fernando dos Santos Wilges

analista judiciário em Porto Alegre (RS)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

WILGES, Fernando Santos. A mais nova invenção do legislador da CLT.: A possibilidade de tempo à disposição do empregador sem o pagamento de salário. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1577, 26 out. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10576. Acesso em: 20 dez. 2024.

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