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Seqüestro interparental

31/10/2007 às 00:00
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Todd tem três anos de idade. Nasceu na Inglaterra. O pai é irlandês e a mãe, brasileira. Não se recorda do pai, porque o casal, que conviveu maritalmente durante quase dois anos, se separou quatro meses depois do seu nascimento. A mãe disse ao companheiro que viria ao Brasil para apresentar a criança à família, mas não deu mais notícias. Richard, o pai, está inconformado. Quer ver o filho, tê-lo de volta. Quer, ao menos, não ser privado do seu convívio. Os parentes brasileiros se recusam a dizer-lhe onde mãe e filho se encontram.

Outro caso. Na cômoda do quarto de Sofia há uma foto em que está abraçada a uma bonita criança, com grandes olhos amendoados. Todas as vezes que olha para o retrato, Sofia não contém as lágrimas nos olhos. Há quatro anos não vê a filha, levada para o Japão pelo pai. Ele não permite que a mãe veja a criança, nem com ela tenha qualquer contato. Sofia ainda não perdeu as esperanças de reencontrar a filha, embora saiba o quanto isso será difícil: - Sei, por pessoas conhecidas, que ele falou para Margareth que eu havia morrido em um desastre de automóvel. Minha filha não me reconhecerá, após tantos anos.

Situações como as de Richard e Sofia, aqui fictícios, estão se tornando cada vez mais comuns, em um mundo onde as pessoas e coisas circulam com mais facilidade. Mas, como proteger os filhos, quando os próprios pais ou parentes próximos são os autores da sua subtração ao convívio do outro? Essa situação, dramática mesmo para famílias brasileiras, alcança proporções mais difíceis de solucionar quando os pais moram em países diferentes, com outra cultura, outros hábitos. Como preservar o interesse das crianças, em face desse conflito?

Em abril de 2000 (Decreto 3.413) o Brasil formalmente ratificou a Convenção da Haia que trata do seqüestro internacional de crianças, de 1980. Desde então, inseriu-se no cenário dos países que, adotando a Convenção, se comprometeram a dar tratamento prioritário a esses casos.

Ficou estabelecido pelos Estados-membros, após longas discussões, que a melhor solução para o conflito seria o retorno da criança ao local da sua última residência, para que o juiz daquele país decida sobre a quem atribuir a sua guarda. Não se trata, como erroneamente se supõe, de devolvê-la ao outro genitor, mas de encaminhá-la à autoridade competente, pois é ali que a criança tinha a sua vida, o seu círculo de amizades, a escola, a vizinhança. O juiz ou a autoridade local dispõem, sem dúvida, de melhores meios para colher provas e avaliar qual dos pais deve exercer o direito de guarda.

A demora no retorno acaba por beneficiar o autor da subtração, pois dificulta ou torna irreversível a reconstrução dos laços familiares rompidos com o afastamento. O tempo, como se sabe, consolida a adaptação da criança ao novo meio, que nem sempre lhe é favorável.

Para honrar esse compromisso assumido pelo Estado brasileiro, a Secretaria Especial de Direitos Humanos, órgão encarregado do cumprimento da Convenção de 1980, tem realizado trabalho elogiável, com resultados positivos, principalmente na tentativa de encontrar uma solução amistosa entre as partes. A Advocacia da União tem também empenhado grandes esforços, quando a conciliação é inviável e se torna necessária a intervenção judicial.

No entanto, apesar de todo o trabalho, o cumprimento da Convenção ainda se mostrava incipiente. Ressentia-se a comunidade internacional de maior articulação com os órgãos de execução da Convenção no Brasil, especialmente o Poder Judiciário. O desconhecimento da própria Convenção era, não raro, causa de muitos embaraços e demoras no seu cumprimento. Foi ciente desse quadro que a Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministra Ellen Gracie Northfleet constituiu em agosto de 2006, com o apoio da sua Assessoria de Assuntos Internacionais, um Grupo de Trabalho Permanente, com o objetivo de estudar formas de se aprimorar, no território brasileiro, a aplicação da Convenção da Haia de 1980.

O Grupo é composto apenas por representantes dos órgãos públicos envolvidos na sua execução. Tem trabalhado na divulgação deste importante documento entre os operadores jurídicos, com o objetivo de fomentar estudos e pesquisas, fornecendo elementos para auxiliar a interpretação e aplicação da Convenção. Os trabalhos do grupo estão publicados no sítio eletrônico do STF (www.stf.gov.br) e já contribuíram para solucionar vários casos difíceis, delicados e envolvidos em emoção, como os vividos por Richard e Sofia.

O fato de um pai ou uma mãe saírem do país onde se estabeleceu a união e fugirem para outro local, com os filhos, sem o assentimento do outro, é revelador de situação-limite, um conflito potencial ou já instaurado. Esse é o drama humano que as autoridades devem enxergar, além do processo. Porque os filhos não são propriedade dos pais – são titulares dos seus próprios direitos. A ambos incumbe zelar pelo seu crescimento sadio. Mas ambos têm o direito de tê-los em sua companhia.

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Sobre a autora
Mônica Sifuentes

Desembargadora Federal do TRF 1ª Região. Mestre em Direito Econômico e Doutora em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SIFUENTES, Mônica. Seqüestro interparental. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1582, 31 out. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10595. Acesso em: 28 mar. 2024.

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