Gosto de Machado de Assis. Sei o quanto é banal dizê-lo – toda a gente gosta, ou pelo menos diz que gosta. Se me perguntarem por quê, assim, de repente, nem sei dizer. Acho que por tudo – estilo, clareza, a forma tão simples de exercer essa incrível arte de combinar as palavras... Mas sobretudo pelo irônico, como Eça, ou profundo conhecedor da alma humana, como Dostoievsky.
Aprendi a gostar dele de menina, lendo velhos livros na biblioteca da escola. Primeiro, estórias açucaradas e românticas, como "Helena", nome que anos depois daria à minha primeira filha, "A Mão e a Luva", "Yayá Garcia". Após, romances mais densos, como "Dom Casmurro", "Quincas Borba", "Memorial de Ayres", "Memórias Póstumas de Brás Cubas". Intrigava-me o conflito interior de Bentinho, os famosos olhos de ressaca de Capitu.
Mais tarde, descobri-lhe os contos, as crônicas e, por fim, os poemas. Estava fisgada para sempre. Sei de gente que não escreve nada sem antes ler um texto, um parágrafo que seja, de Machado. Dizem que é para apurar o estilo.
Outro dia, folheando "Papéis Avulsos", deparei-me com estória tão interessante e moderna que resolvi recontá-la, ainda que correndo o risco de ser apenas a pálida imagem da original. Trata-se da suposta conferência proferida pelo Cônego Vargas, relatando à comunidade científica a sua fantástica experiência, que resultou na imposição de um regime social às aranhas.
O orador, que era naturalista, diz ter iniciado a sua pesquisa com o estudo da linguagem das aranhas – sim, elas têm uma, para espanto de todos os que as vêem somente como insetos silenciosos e ordeiros. No entanto, na medida em que as foi estudando, foram aparecendo mais e mais aranhas, que passaram a se reunir em torno do pesquisador não só pelo conhecimento que ele demonstrava possuir da sua linguagem, como do temor reverencial que lhes inspirava. Ciente da sua imensa responsabilidade, não se contentou em reuní-las: "era preciso dar-lhes um governo idôneo".
Escolheu a república, à maneira da antiga Veneza, cidade na qual, entre os diferentes modos eleitorais, figurava o do saco e das bolas: "metiam-se as bolas com os nomes dos candidatos no saco, e extraia-se anualmente um certo número, ficando os eleitos desde logo aptos para as carreiras públicas".
O modelo escolhido deveu-se a uma constatação prática: para um povo tecelão como o das aranhas, o saco eleitoral seria instrumento conhecido e adaptável. Chamaram o regime de Sereníssima República.
Compreendida por todos a grandeza do ato eleitoral, puseram-se primeiramente a fabricar o saco, que foi uma obra nacional. Para a sua confecção, foram aclamadas dez damas principais, que receberam o título de mães da República, além de outros privilégios e foros.
Mas se a princípio a eleição se fez com regularidade, logo depois se declarou que havia sido viciada, por terem entrado no saco duas bolas com o nome do mesmo candidato. Deliberou-se, então, diminuir o seu tamanho, com o que se coibiria a fraude. De outra vez, deixou-se de inscrever nas bolas o nome de um dos candidatos, o que motivou a revogação da lei anterior e a restauração das medidas do saco. Dois partidos foram criados: o curvilíneo e o retilíneo, de acordo com a forma com que seus membros fiavam, aparecendo posteriormente o reto-curvilíneo e o anti-reto-curvilíneo. E conforme iam ocorrendo as malícias na interpretação da lei e as falcatruas, modificava-se o tamanho, a forma e a tessitura do saco eleitoral.
Foi Erasmus, um dos mais circunspectos cidadãos da República, o encarregado de comunicar às dez damas incumbidas de urdir a bolsa eleitoral a última resolução legislativa.
Como a perfeição não era daquele mundo (e nem deste), ele conta-lhes a fábula de Penélope, que fazia e desfazia a famosa teia, à espera do esposo Ulisses:
"Vós sois a Penélope da nossa república, disse ele ao terminar; tendes a mesma castidade, paciência e talentos. Refazei o saco, amigas, refazei o saco, até que Ulisses, cansado de dar às pernas, venha tomar entre nós o lugar que lhe cabe. Ulisses é a sapiência".
Segundo o narrador, tudo isso se passou nos idos de 1876. Ao que se sabe, 130 anos depois desse inacreditável experimento, as aranhas da Sereníssima República continuam a fiar como Penélope.