Este artigo aborda a questão da falta de razoabilidade na eliminação de candidatos em concursos públicos, especificamente quando os candidatos que apesar de irem muito bem nas questões de conhecimentos específicos, não atingem a pontuação mínima nas questões de conhecimentos gerais (ex: português, informática e raciocínio lógico), em que pese o exercício do cargo não exigir tais habilidades.
O exemplo usado é o concurso público para técnico de enfermagem, onde um candidato pode ser eliminado devido a seu desempenho em matérias não relacionadas à sua futura função. O artigo argumenta que essa prática viola os princípios constitucionais da eficiência e do acesso ao cargo público, bem como os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.
Com efeito, nos termos do art. 37 da Constituição Federal de 1988,1 o concurso público é o principal meio de acesso aos cargos públicos no Brasil, e seu objetivo é selecionar os candidatos mais bem qualificados para servir à sociedade.
No entanto, muitas vezes, a rigidez na avaliação das habilidades dos candidatos em matérias de conhecimentos gerais que sequer estão afetas às atividades fins do cargo público pode levar à eliminação injusta de pessoas que, caso aprovados, seriam excelentes servidores públicos. Este artigo busca analisar essa questão à luz dos princípios constitucionais e do ordenamento jurídico brasileiro como um todo.
Princípio da Eficiência e Acesso ao Cargo Público
O Princípio da Eficiência, consagrado no artigo 37 da CF/88, representa um dos pilares fundamentais da administração pública brasileira. Ele estabelece que a atuação estatal deve ser pautada pela busca incessante pela excelência na prestação de serviços públicos. Nesse contexto, a seleção de servidores por meio de concursos públicos é um mecanismo essencial para atingir tal objetivo, uma vez que permite a escolha dos profissionais mais qualificados e preparados para desempenhar as funções públicas com maior acurácia.
Porém, quando se elimina um candidato que demonstra ter amplo domínio das matérias específicas relacionadas ao cargo, mas falha em atingir o mínimo em conhecimentos gerais, está-se prejudicando a eficiência da administração pública. Afinal, a excelência no serviço público é alcançada não apenas pela conformidade estrita com requisitos formais, mas principalmente pela capacidade do candidato de desempenhar com competência as atividades relacionadas à função pública que ocupará.
Além disso, o Princípio do Acesso ao Cargo Público, também estipulado no artigo 37 da Constituição, assegura que os cargos públicos sejam acessíveis a todos os brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei. Isso será melhor destrinchado a seguir.
A eliminação de candidatos altamente capacitados nas áreas específicas em detrimento de outros que apenas atingiram o mínimo em conhecimentos gerais compromete o acesso igualitário aos cargos públicos, ferindo assim esse princípio.
Natureza e Complexidade do Cargo
A premissa constitucional acerca da natureza e complexidade do cargo ou emprego público é de extrema importância para a adequada avaliação dos candidatos em concursos públicos. Também prevista no artigo 37 da CF/88, implica que a seleção deve estar diretamente relacionada às habilidades e conhecimentos necessários para o eficaz desempenho das funções do cargo vago.
No caso do exemplo mencionado, o cargo de técnico de enfermagem exige, primordialmente, conhecimentos específicos em saúde, anatomia, fisiologia, farmacologia, entre outros temas diretamente relacionados à assistência prática da enfermagem.
Assim, a eliminação de candidato que acerta, por exemplo, cerca de 85% das questões de conhecimentos específicos, mas não alcança o mínimo das questões de português, informática ou raciocínio lógico, é providência que fere de morte a natureza e a complexidade do cargo sob exame.
Embora a capacidade de comunicação em português, o uso de tecnologias informáticas, e habilidades lógicas possam ter alguma relevância, elas são apenas ferramentas periféricas em comparação com o conhecimento especializado necessário para o exercício do cargo público.
É que “os requisitos legalmente previstos para o desempenho de uma função pública devem ser compatíveis com a natureza e atribuições do cargo”.2 Dessa forma, a imposição de critérios rígidos em matérias de conhecimentos gerais que não estão diretamente ligadas às demandas do cargo desconsidera a essência do Princípio da Natureza e Complexidade do Cargo, desviando a seleção dos candidatos daquilo que é realmente relevante para o exercício da função pública.
Razoabilidade, proporcionalidade e Interesse Público
No âmbito do princípio da razoabilidade, oriundo do sistema jurídico anglo-saxão, analisa-se a congruência entre os métodos empregados e os objetivos perseguidos, bem como da legitimidade dos propósitos subjacentes a determinado ato estatal.
De acordo com a explanação de Helenilson Cunha Pontes, no contexto do princípio da proporcionalidade, não se requer apenas que a ação do Estado e a decisão jurídica sejam razoáveis, mas sim que se constituam como os meios mais adequados para otimizar as aspirações consagradas na Constituição.3
Exige-se, assim, que os atos administrativos sejam proporcionais, justos e equilibrados. No contexto dos concursos públicos, isso significa que a eliminação de candidatos deve ser justificada e adequada à natureza das funções a serem desempenhadas e aos requisitos efetivamente necessários para a realização dessas funções.
O interesse público em selecionar os candidatos mais qualificados para os cargos públicos é inegável. A sociedade espera que os servidores públicos atuem com eficiência e competência para garantir a entrega de serviços públicos de qualidade. Portanto, eliminar um candidato que demonstrou amplo conhecimento nas matérias específicas em detrimento de outro que apenas atingiu o mínimo em conhecimentos gerais vai contra esse interesse público.
Além disso, a promoção da igualdade e da justiça na seleção de candidatos é um componente crucial do Princípio da Razoabilidade. Eliminar injustamente um candidato altamente qualificado nos conhecimentos específicos que o cargo exige representa uma violação dessa premissa, que visa garantir que os candidatos selecionados ao cargo público tenham conhecimento suficiente da área em que vai diretamente atuar.
Juridicidade e Princípios Constitucionais
O problema que se põe, portanto, é, apenas, o de saber-se se o edital, que é considerado a lei do concurso, está de acordo com o ordenamento jurídico brasileiro, ao dispor que o candidato que não acerte o mínimo das questões de conhecimentos gerais será eliminado do certame.
A resposta é seguramente negativa, pois, a expressão legalidade, que engloba a "lei do concurso" e que durante a primeira fase do Estado de Direito dominava a avaliação da validez dos atos administrativos, perdeu, desde os anos iniciais da década de 50 do século XX, a sua primazia. Hoje, o sentido de Estado Democrático de Direito não se rege mais pela simples legalidade, que assumiu a feição de legalismo. O Estado contemporâneo submete-se à juridicidade, que abrange, além das regras positivas, os princípios jurídicos da justiça, da razoabilidade e da proporcionalidade. Desse modo, os conceitos abertos ou indeterminados não fornecem mais base jurídica suficiente para afastar a incidência de direitos subjetivos fundamentais.4
A Lei nº 9.784/1999, que disciplina o processo administrativo federal, estabelece diretrizes claras para a atuação da administração pública. Entre essas diretrizes, a proteção dos direitos dos administrados e o cumprimento dos fins da Administração são fundamentais.
Isso implica que os atos administrativos devem estar em conformidade com os princípios constitucionais, incluindo a legalidade, a finalidade, a motivação, a razoabilidade, a proporcionalidade, a moralidade, a ampla defesa, o contraditório, a segurança jurídica, o interesse público e a eficiência.
É certo que
"De igual modo, o CNJ, no Procedimento de Controle Administrativo 0010056-92.2018.2.00.0000, analisando a mesma fórmula de correção, entendeu que: '(...) Calha ressaltar que a Lei n. 9.784/99 foi expressa ao estabelecer que a atuação administrativa visa 'em especial, à proteção dos direitos dos administrados e ao melhor cumprimento dos fins da Administração' (art. 1º), devendo a Administração Pública obedecer 'aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência' (art. 2º)'".5
A eliminação de candidatos em concursos públicos na situação aqui estudada contraria diretamente os princípios da razoabilidade, interesse público e eficiência estabelecidos na Lei nº 9.784/1999.
Isso porque, ao adotar critérios desproporcionais e injustos na avaliação dos candidatos, a administração pública não está cumprindo adequadamente seus fins, que incluem a seleção dos melhores profissionais para servir à sociedade.
Hierarquia da Constituição Federal em detrimento do edital
Em última análise, é de se ressaltar que a Constituição Federal é norma de hierarquia superior ao edital, que é mero ato administrativo (ainda que considerado pelos tribunais como lei do concurso).
Assim, ainda que o edital do concurso contenha cláusula dispondo que o candidato deve acertar o mínimo de questões de conhecimentos gerais, o caso concreto deve ser analisado individualmente, prestigiando-se àqueles que, apesar de não terem atingido o número mínimo de acerto nesse tipo de conhecimento, atingiram 75% ou mais, de conhecimentos específicos.
Não é razoável à luz do ordenamento jurídico pátrio eliminar um candidato que vai trabalhar como técnico de enfermagem (que é o nosso exemplo) simplesmente porque no concurso público ele acertou apenas quatro de dez questões de português, quando deveria ter acertado cinco, mas, em conhecimentos específicos, alcançou pontuação superior a 75% da prova.
A finalidade do concurso não é eliminar por eliminar. Ao revés, é selecionar quem melhor está preparado para o desempenho das funções específicas do cargo público pretendido.
Sob essa ordem de ideias, é preciso saber se a lei que criou o cargo público exige o conhecimento na área abrangida por conhecimentos gerais consignada no edital do certame, como por exemplo, português, informática e raciocínio lógico. O edital é a lei do concurso, mas ele não pode passar por cima da própria lei que criou o cargo objeto da disputa. Sendo, por essência hierarquicamente inferior à lei de criação, a ela ele deve se curvar.6
Conforme entende o STF, “o Legislador não pode escudar-se em uma pretensa discricionariedade para criar barreiras legais arbitrárias e desproporcionais para o acesso às funções públicas, de modo a ensejar a sensível diminuição do número de possíveis competidores e a impossibilidade de escolha, pela Administração, daqueles que são os melhores”.7
Sob esse mesmo enfoque “o Estado de Direito republicano e democrático, impõe à Administração Pública que exerça sua discricionariedade entrincheirada não, apenas, pela sua avaliação unilateral a respeito da conveniência e oportunidade de um ato, mas, sobretudo, pelos direitos fundamentais em um ambiente de perene diálogo com a sociedade”.8
Nesse sentido:
RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. SERVIDOR ESTADUAL. MÉDICO. VENCIMENTO. JORNADA. DIREITO NÃO EXISTENTE. ACÓRDÃO RECORRIDO MANTIDO. RECURSO NÃO PROVIDO. (...)
3. Ainda que assim não fosse, e mesmo que o edital indicasse valores acima dos previstos em lei, não poderia a norma editalícia prevalecer sobre as disposições legais, como quer a recorrente. É que o edital, como ato administrativo normativo que é, deve se sujeitar ao ordenamento jurídico, de onde tira a sua validade. Se a disposição constante do instrumento convocatório contraria a lei, padece de vício de objeto e, portanto, é nula. Em outras palavras, não é lei que se curva ao ato administrativo, mas este é que se submete àquela. Inteligência do art. 2º, parágrafo único, alínea "c" da Lei n. 4.717/1965.
4. Recurso ordinário a que se nega provimento.
(RMS n. 32.322/SC, relator Ministro Sérgio Kukina, Primeira Turma, DJe de 19/8/2013)
Deveras “Editais de concurso não são capazes de derrogar regime jurídico legal.” (RMS 33.896/PI, relator Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Turma, DJe de 8/6/2011). Como bem salienta Aloísio Zimmer Júnior, “O edital é a lei do concurso, quando não contrariar a Constituição Federal nem a lei instituidora do cargo público em disputa.” (Curso de Direito Administrativo, 3ª ed., Método, p.409). No estudo em apreço, a norma editalícia não pode prevalecer sobre a Constituição.
Portanto, a administração pública deve estar em conformidade com os princípios constitucionais, e a falta de razoabilidade na eliminação de candidatos que têm melhor desempenho nas questões de conhecimentos específicos viola o próprio ordenamento jurídico como um todo, prejudicando a qualidade e a eficiência do serviço público pela administração pública.
Notas
-
Brasil. Constituição Federal. Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: I - os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como aos estrangeiros, na forma da lei; II - a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração.
Justicia, a inteligência artificial do Jus Faça uma pergunta sobre este conteúdo: Brasil. Supremo Tribunal Federal. ARE 678112 RG, Relator: LUIZ FUX, Tribunal Pleno, DJe 17-05-2013.
PONTES, Helenilson Cunha. O PRINCíPIO da proporcionalidade e o direito tributário. São Paulo: Dialética. 2000. p. 190-191).
Brasil. Superior Tribunal de Justiça. MS n. 20.001/DF, relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Seção, DJe de 2/9/2019.
Brasil. Superior Tribunal de Justiça. AgInt no RMS n. 67.363/PI, relatora Ministra Assusete Magalhães, Segunda Turma, DJe de 2/5/2023.
Brasil. Supremo Tribunal Federal. RE 898450/SP, Relator: LUIZ FUX, Tribunal Pleno DJe 31-05-2017: “O artigo 37, I, da Constituição da República, ao impor, expressamente, que ‘os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei’, evidencia a frontal inconstitucionalidade de toda e qualquer restrição para o desempenho de uma função pública contida em editais, regulamentos e portarias que não tenham amparo legal. (Precedentes: RE 593198 AgR, Relator Min. Dias Toffoli, Primeira Turma, julgado em 06/08/2013, DJe 01- 10-2013; ARE 715061 AgR, Relator Min. Celso de Mello, Segunda Turma, DJe 19-06-2013; RE 558833 AgR, Relatora Min. Ellen Gracie, Segunda Turma, DJe 25-09-2009; RE 398567 AgR, Relator Min. Eros Grau, Primeira Turma, DJ 24-03-2006; e MS 20.973, Relator Min. Paulo Brossard, Plenário, julgado em 06/12/1989, DJ 24-04-1992).
Op. cit. RE 898450/SP.
Op. cit. RE 898450/SP.