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A denominada prevaricação imprópria.

Ofensiva aos fins da pena e um caso de inconstitucionalidade necessária

Leia nesta página:

Como já é de conhecimento da comunidade jurídica brasileira, especialmente daquela que lida diuturnamente com o Direito Penal, a Lei nº 11.466, de 2007 inseriu no Código Penal Brasileiro o art. 319-A, que regula, segundo parte da doutrina, a chamada "prevaricação imprópria".

A inserção do dispositivo na Lei Substantiva Penal demonstra a intenção do legislador em enrijecer a repressão sobre condutas criminosas praticadas - de forma inadmissível e absurda – com a franca utilização de aparelhos celulares por apenados que controlam a atividade criminosa diretamente de dentro de presídios de nosso país.

Como ponto de partida, então, passamos a analisar o tipo penal concretizado pelo legislador na Lei 11.466/2007:

Prevaricação

Art. 319-A. Deixar o Diretor de Penitenciária e/ou agente público, de cumprir seu dever de vedar ao preso o acesso a aparelho telefônico, de rádio ou similar, que permita a comunicação com outros presos ou com o ambiente externo

Pena: detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano

Este é o tipo penal vigente hoje no Brasil, que regula a conduta do Diretor de Penitenciária e/ou agente público que permitir ao preso o acesso a aparelho telefônico, rádio ou similar, que permita a comunicação de reclusos entre si ou com o ambiente externo.

Analisando a pena cominada ao tipo penal, em nosso entendimento, não há outra conclusão senão a de que o art. 319-A do Código Penal é inconstitucional.

E dizemos o porquê.

O art. 319-A veio em resposta aos verdadeiros atos de terrorismo ocorridos em nosso país, especialmente nos Estados do Rio de Janeiro e São Paulo, quais sejam, os ataques sistematizados e comandados pela facção criminosa conhecida como PCC. Naquele episódio, estarrecidos, assistimos pela televisão presos comandando, com sol à pino, explosões a ônibus, assaltos, utilizando-se de celulares que livremente lhe estavam à disposição dentro dos presídios em que cumpriam pena.

Esqueçamos os prejuízos patrimoniais e pensemos nas vidas que foram ceifadas durante aquela verdadeira onda de terror.

O fato é que o crime organizado mostrou todo o seu poder naquelas circunstâncias e, ainda hoje, segue comandando o tráfico, o seqüestro, a extorsão, e outros tantos delitos diretamente de dentro das cadeias brasileiras.

Nesse contexto, percebe-se o quão grave é a conduta daquele que permite que celulares ingressem em nossos estabelecimentos prisionais. Assim, a intervenção do Estado para coibir este tipo de conduta deveria ter sido incisiva, fazendo com que aqueles que permitem que aparelhos celulares ou qualquer similar entrem nas casas prisionais fossem punidos de forma rigorosa.

Pois bem. O que fez o legislador brasileiro? Cominou pena de – pasmem – 03 meses a 1 ano de reclusão!

E justamente neste ponto é que se concretiza uma verdadeira ofensa aos princípios da pena e também à Constituição Federal do Brasil.

Quanto à finalidade das penas, há as teorias absolutas, que têm como base teórica a tese da retribuição, considerando a pena um fim em si mesma, bem como as teorias relativas, que sustentam a tese da prevenção. [01]

O Código Penal, em seu artigo 59, afirma que "o juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime". Sem grifos no original.

Do texto do art. 59 do CP, extrai-se que as penas devem garantir a reprovação e a prevenção do delito, o que demonstra que o Brasil adotou a teoria mista ou unificadora da pena. [02]

Dentro do aspecto prevenção, vale lembrar que o tipo penal, especialmente quando estipula uma pena, concretiza a denominada prevenção geral intimidatória, fundada na teoria da coação psicológica, segundo a qual a pena previne a prática de delitos porque intimida ou coage psicologicamente seus destinatários. [03]

Entretanto, há que se fazer uma afirmação categórica: a pena cominada pelo legislador ao delito do art. 319-A do CP não reprova e não previne que agentes permitam que celulares ingressem nos presídios brasileiros.

Isto por uma causa muito simples: a pena prevista possui tripla falibilidade: (1) – a pena máxima não excede a 02 anos, ou seja, cabe transação penal, nos termos do art. 76 da Lei 9.099/95; (2) a pena mínima é inferior a um ano, é dizer, se por acaso, uma vez cometido o crime do art. 319-A do CP, o agente já tiver utilizado a transação, poderá ele agora (diante da impossibilidade de transacionar novamente no período de 05 anos, nos termos do art. 76, § 2.º, II da lei 9.099/95), valer-se da suspensão condicional do processo; (3) se mesmo assim, não puder ele nem transacionar e nem se valer do sursis processual, a depender do local onde cometeu o delito, a pena fatalmente poderá prescrever – em 02 anos, nos termos do art. 109, VI do CP (basta mencionar a lamentável situação dos Juizados Especiais Criminais do Estado de São Paulo, assoberbados com um acúmulo invencível de processos).

Após uma leitura breve destas razões, é de se perguntar: a pena cominada pelo legislador é suficiente para reprovar e prevenir o crime de prevaricação imprópria?

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Sabe-se que no Brasil, a pena possui tripla finalidade: retribuição, prevenção e ressocialização. Não tratando agora da ressocialização, que é assunto afeto à execução da pena, será que cominar pena de no mínimo de 03 meses e no máximo de um ano ao agente que permite que um aparelho de celular ingresse em um estabelecimento prisional e, com isso, possibilita que roubos, seqüestros, tráfico de drogas e atos de terrorismo sejam consumados, retribui de forma correta a conduta praticada pelo agente? Será que essa pena, que permite inúmeros benefícios, previne que este delito seja praticado?

Em nosso entendimento, com todas as letras, não. Pelo contrário: é uma carta branca e um aviso aos agentes relapsos e mal intencionados (perdoem-nos aqueles que não o são!) de que ocorrerá no máximo a imposição de uma prestação de serviços à comunidade ou, como no jargão popular, de que no máximo "vai dar uma cesta básica". Em última análise: fazer vistas grossas à entrada de celulares em presídios, recebendo dinheiro para tanto, é um bom negócio no Brasil. E o que é mais triste: tudo sedimentado pela desastrosa utilização do princípio da legalidade.

O erro crasso do legislador foi considerar a prevaricação imprópria como delito de menor potencial ofensivo, nivelando um crime de conseqüências sociais danosas a delitos que realmente são menos ofensivos à sociedade. A atitude do legislador foi totalmente negligente com relação ao alerta feito por Beccaria: " (...) si una pena igual está establecida para dos delitos que ofenden desigualmente a la sociedad, los hombres no econtrarán un más fuerte obstáculo para cometer el mayor delicto, si encuentran unido a él um benefício mayor (...). [04]

Outrossim, ao nosso ver, a pena cominada no art. 319-A do CP fere de morte o princípio da proporcionalidade, princípio implícito constante na Constituição Federal de 1988.

Toda vez que ouvimos falar no princípio da proporcionalidade, em matéria penal especialmente, vem-nos à mente a idéia de "proibição de excesso". Ocorre que o inverso da proibição de excesso é a "proibição da insuficiência da intervenção estatal". A pena não pode ser mais gravosa do que o devido, mas também não pode ser aquém do montante necessário à retribuição e à prevenção ao crime. Não há dúvidas que ao prever um irrisório apenamento a uma conduta extremamente grave, o Estado interveio de forma flagrantemente insuficiente em matéria penal, o que demonstra que o meio utilizado (cominação de pena de 03 meses a 01 ano) não se mostrou como medida adequada a atingir o fim (prevenção do crime) desejado. Feriu-se, portanto, o princípio da proporcionalidade.

Neste caso, é de se notar, cria-se uma situação muito peculiar. Hodiernamente, se sustenta que determinado preceito penal é inconstitucional porque geralmente representa um prejuízo para a condição do réu. Exemplo disso, a antiga vedação de progressão de regime do art. 2.º, § 1.º da Lei 8.072/90.

No caso da prevaricação imprópria, o art. 319-A é inconstitucional porque fere a garantia de que é titular a sociedade de que o Estado, quando se manifestar em matéria penal, o fará de forma a concretizar uma justa retribuição e uma eficiente prevenção ao crime. É a inconstitucionalidade penal contra a sociedade. E aqui, um verdadeiro paradoxo: é inconstitucional porque viola garantias da sociedade, mas o panorama atual dos tipos penais existentes no ordenamento brasileiro demonstra que se cuida de uma inconstitucionalidade necessária, sob pena de que a conduta seja considerada atípica.

Em conclusão, para nós, o art. 319-A, para além de ferir os princípios da prevenção e da retribuição da pena, fere de morte o princípio constitucional da proporcionalidade, constituindo mais uma prova contundente de que, em verdade, a lei não está dissociada da realidade social - pois não passa de mero produto da atividade intelectual -, mas sim, o legislador, incompreensivelmente apartado dos anseios daqueles que lhe conferiram um mandato para o exercício de uma representação democraticamente legítima.


Notas

01 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: Parte Geral. 7.ª ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2006. p. 524.

02 Ob.cit. p. 526.

03 PRADO, Luiz Régis. Curso de Direito Penal Brasileiro, volume 1: Parte Geral – arts.1.º ao 120. 5.ª ed. rev. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. p. 556.

04 BECCARIA, Cesare. De los delitos y las penas; IHERING, R. Von. La lucha por el derecho; WOLF, E. Ron von Ihering: Biografia. Buenos Aires: Libreria El Foro, 2004. p. 90.

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Sobre o autor
Thiago Solon Gonçalves Albeche

Delegado de Polícia no Rio Grande do Sul.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALBECHE, Thiago Solon Gonçalves. A denominada prevaricação imprópria.: Ofensiva aos fins da pena e um caso de inconstitucionalidade necessária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1589, 7 nov. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10624. Acesso em: 2 nov. 2024.

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