3. O Ministério Público no Processo Penal
3.1 O Ministério Público como fiscal da lei
No art. 257 do Código de Processo Penal brasileiro, está insculpida a norma que delineia a função exercida pelo Ministério Público no processo penal. Ali está escrito:
O Ministério Público promoverá e fiscalizará a execução da lei.
Assim, dividimos a atuação do Parquet sob dois aspectos: promovendo a execução da lei e fiscalizando esta mesma execução.
Sob o segundo aspecto, atua o Ministério Público em nome da coletividade, representando um interesse que não é próprio, mas de um ente maior que o legitimou para essa fiscalização. Deve velar pelo estrito cumprimento daquilo que está explicito em nosso ordenamento jurídico e constituem garantias do cidadão a observância dos cânones fundamentais do Estado Democrático de Direito (princípio da legalidade, princípio do devido processo legal, princípio da inafastabilidade da jurisdição, princípio da ampla defesa e do contraditório, dentre outros), todos inseridos naquilo que constitui a própria formação e estrutura do Estado, a Constituição Federal.
(MARQUES, 1958: 234)"O papel do promotor quando funciona como custus legis é apenas de fiscalização, nesse sentido, deve requerer diligências para o esclarecimento da verdade e promover a estrita aplicação das normas de direito, velando para que não ocorram irregularidades ou para que sejam sanadas as que já se verificaram; no tocante ao mérito, é claro que lhe cabe opinar sobre as pretensões de cada uma das partes".
Exercendo a função de fiscal da lei, o Ministério Público explicita o mandamento constitucional que lhe incumbe da defesa da ordem jurídica. Sua finalidade é fundamentalmente social, auxiliando na busca da verdade material.
Tendo como prisma a teoria formulada por Oskar von Bulow, e aceita entre nós, de que o processo possui a natureza de relação jurídica trilateral, em que figuram como sujeitos o juiz (no ápice piramidal), autor e réu (nas bases), é necessário buscar a posição do Parquet, atuando como custus legis, diante deste sistema. Pela concepção processual de relação jurídica, os sujeitos processuais possuem direitos e obrigações recíprocas; diante desta premissa, afasta-se a possibilidade de o Ministério Público, atuando como fiscal da lei no processo, ser emoldurado naquela relação. Por quê? Exercendo a atividade fiscalizatória, o Parquet se situa no processo como órgão que está, simultaneamente, acima e ao lado das partes, guardando uma certa distância, tendo como escopo a preservação do ordenamento jurídico. Sua relação é com a lei, e não com as partes. Não deve obediência nem ao juiz, nem ao autor, nem ao réu. Deve obediência só, e somente só, à lei.
(PORTO, 1998: 137)"Na condição de fiscal da lei, o Ministério Público tutela interesse público, porém, não através do direito de ação, mas exercendo função processual anômala, cuja finalidade é assegurar a correta aplicação da lei justamente por intermédio da relação jurídica processual. Daí não integrar a angularização desta, pois sua posição diferenciada representa o superar da formação clássica de relação jurídica processual, na medida em que não é sujeito desta. Em verdade, não é parte, nem juiz. Não é parte porque não pede nem contra si é pedida a atuação jurisdicional; e não é juiz pela simples razão de não ser investido de jurisdicão, muito embora com atuação imparcial".
Esta é a posição do Ministério Público quando atua no processo como fiscal da lei.
3.2 O Ministério Público como parte
Para a formulação da relação processual é necessário estabelecer-se as partes no processo. As partes são sujeitos da lide, aquelas que pedem e as em face de quem se pede a tutela jurisdicional. A característica da parte no processo é a sua parcialidade, claro que não pode se valer de meios escusos para fazer valer o seu pretenso direito em juízo. A parcialidade deriva da própria etimologia do verbete "parte". Diante disso, discute-se a natureza do Ministério Público quando age no processo promovendo a ação penal pública. O cerne da controvérsia é se o Parquet é parte com as mesmas características da parte comum.
Alguns autores negam a qualidade de parte ao Ministério Público no processo penal.
(MAYER, 1967: 233)"O Ministério Público não é parte, embora desempenhe um papel de parte, uma função igual à dessa; mas o processo penal não deixa, por isso, de ser processo de parte; de parte única; não existe uma parte contrária ao acusado. Não há confundir a parte com quem lhe exerce papel apenas por questão de método, isto é, para que o processo seja contraditório".
Para alguns, inexiste parte no processo penal, porque o acusado serve apenas como um meio de prova, e o Ministério Público também não é parte porque age em favor do réu, em certas hipóteses. Para Carnevale, no sentido teórico o Ministério Público não é parte porque não tem um interesse unilateral contraposto a outro, mas um superior, que não admite divergência ou extremos contrários. No direito brasileiro, não há como se negar a qualidade de parte ao Ministério Público, já que, é o órgão estatal incumbido da persecução criminal, cabendo-lhe promover a ação penal pública. Assim, é parte porque é ele que vai a juízo pedir que se aplique ao pretenso autor da infração penal a inflição da pena. Resta saber se o Ministério Público tem a mesma qualidade da "parte em sentido amplo".
Preliminarmente, cabe dizer que o Parquet age no processo diferentemente da "parte comum". Esta atua buscando proteger um interesse individual, enquanto o órgão ministerial tem função precípua de perseguir o interesse social, o interesse público. Destarte, exercem interesses completamente antagônicos no processo. Logo, as qualidades não serão as mesmas. Outrossim, o Estado além de exercer o direito de punir, em contraposição garante o direito de liberdade do indivíduo. Diante disso, não pode o Ministério Público, órgão estatal que é, ter os mesmos poderes e faculdades da parte privada.
Diante destes empecilhos, procura-se adjetivar a qualidade de parte exercida pelo Parquet no processo penal. A qualificação dominante na doutrina é a que denomina a função do Ministério Público de "parte instrumental". Vejamos: como titular do direito de punir e também garantidor do direito de liberdade do indivíduo, o Estado não pode em nome próprio pedir a aplicação do direito penal objetivo. Assim, incumbe essa persecução criminal a um órgão seu, dotado de imparcialidade, o Ministério Público. Logo, a parte no processo penal é o Estado, já que, titular do direito de punir. O órgão ministerial funciona apenas como instrumento para que a entidade estatal consiga a aplicação do jus puniendi.
(FENECH, 1952: 178)"A verdadeira parte no processo penal é o Estado, porque tem um interesse em reprimir as infrações, entretanto, não obstante ser o titular do direito de punir, não pode o Estado intervir diretamente no processo como parte e, por isso mesmo, precisa de funcionários que intervenham no exercício da função pública que lhes são atribuída".
Destarte, inobstante as controvérsias doutrinárias, é o Ministério Público, quando promove a ação penal pública, parte no processo penal. Entretanto, "parte instrumental".
3.3 Parte versus imparcialidade
Vestibularmente, vale transcrever aqui o que escreve o insigne Frederico Marques, a respeito do binômio parte-imparcial referente ao Ministério Público. Assim se manifesta o excelso mestre:
(MARQUES, 1958, 51-2)"Fala-se que o Ministério Público deve ser imparcial, órgão do Estado que é, e por isso inconcebível se torna conceituá-lo como parte. Em primeiro lugar não há em que falar em imparcialidade do Ministério Público, porque então, não existiria necessidade de um juízo para decidir sobre a acusação haveria um bis in idem de todo prescindível e inútil. No procedimento acusatório, deve o promotor atuar como parte. O seu papel no processo não é de defensor, nem de juiz, e sim, o de órgão de interesse punitivo do Estado. Em segundo lugar, o que caracteriza o conceito de parte não é a parcialidade ou imparcialidade, e sim a titularidade de direitos próprios em relação ao conteúdo do processo e a contraposição à função de dirimir o conflito de interesses e julgar. Nem se diga que o Ministério Público, como órgão da lei, pode pedir a absolvição do réu ou deixar de recorrer contra uma sentença absolutória. A nosso ver, esse argumento, longe de destruir a qualificação do Ministério Público como parte, mais lhe realça essa qualidade. Assim como no cível pode o autor desistir da demanda, também o pode, no crime, o acusador. Basta dizer que, em se tratando de ação privada criminal, além da renúncia ou desistência propriamente ditas, tem a parte acusadora o direito de tornar perempta a instância com o pedido de absolvição (art. 69, III). Todavia, no processo penal iniciado por ação penal pública, é esta irretratável (art. 42), e, sendo assim, não é cabível renúncia ou transação sobre o jus acusationis, restando ao Ministério Público pedir a absolvição. Ademais, como bem esclarece Massari, o Ministério Público não pode e não deve fazer obra de perseguição contra pessoas que se têm como inocentes; isto, porém, não significa que ele deixe de ser titular de um direito público subjetivo do Estado, qual o direito de punir. Nenhum órgão estatal pode, em qualquer das múltiplas atividades da administração, assumir, por vontade da lei, atitudes vexatórias, e, consequentemente, não é tolerável que a pretensão punitiva do Estado possa ser entendida como um direito de perseguir o inocente".
Com a devida venia, as considerações do conspícuo mestre não são cônsones com as normas e princípios vigente em nosso ordenamento jurídico. Senão vejamos:
A) A atividade do Ministério Público no processo não é perseguir o acusado, mas sim, perseguir a aplicação da lei. Assim, como órgão subalterno à lei, pois só a ela deve obediência, é imprescindível que o Parquet atue no processo imparcialmente. Logo, o órgão ministerial público não tem a função de exercer uma atividade em que o desiderato prevalente seja o interesse punitivo do Estado; o seu principal escopo é garantir a preservação da paz social através do exercício da função persecutória, ou seja, pedir ao órgão jurisdicional a aplicação do direito penal objetivo aos infratores.
B) O Ministério Público quando promove a ação penal pública não se torna titular do direito de punir. Este pertence ao Estado e é intransferível; o que o Parquet exerce é a persecução criminal. Destarte, fica afastada, em relação ao Ministério Público, a premissa formulada pelo excelso mestre para se configurar a característica de parte. Qual seja, a titularidade de direitos próprios em relação ao conteúdo do processo e a contraposição à função de dirimir o conflito de interesses e julgar. Logo, como não exerce direito próprio em relação ao conteúdo do processo, o Ministério Público não é parte; ante a conclusão do referido autor.
C) A proposição formulada pelo mestre é contraditória ao que está insculpido no art. 257 do Código de Processo Penal brasileiro:
O Ministério Público promoverá e fiscalizará a execução da lei.
Ora, interpretando-se o dispositivo fica clarividente que as funções são exercidas simultaneamente, e são, indissociáveis. Quando atua promovendo a execução da lei, o Ministério Público também executa a fiscalização da mesma, é só observar a conjunção usada para servir de elo entre as duas funções. Assim, pode-se formular a seguinte assertiva: como fiscal da lei, o órgão ministerial é apenas, e somente, fiscal da lei, entretanto, como parte, é ele, ao mesmo tempo, parte e fiscal da lei. Em outras palavras, quando custus legis (apenas fiscaliza), quando parte (promove a ação penal e também fiscaliza). Logo, deve ser imparcial.
"Embora parte no processo penal, o Ministério Público desempenha função ainda mais nobre pugna pela correta aplicação das leis aos casos concretos. Ao Estado não interessa executar uma sentença penal condenatória injusta. Isto está bem claro em diversos dispositivos legais, deles se podendo extrair os princípios democráticos que inspiram o nosso sistema processual. Realmente, em síntese lapidar, o nosso Código de Processo Penal deixa consagrado, em seu art. 257, que ao Ministério Público compete promover e fiscalizar a execução da lei, coerente com tal postulado, foi outorgada legitimação ativa ao Parquet para propor a ação de habeas corpus (art. 654), bem como opinar livremente pela absolvição (art. 385)".
D) Se aplica aos membros do Ministério Público a exceptio suspicionis. Prescreve o art. 258 do Código de Processo Penal brasileiro:
Os órgãos do Ministério Público não funcionarão nos processos em que o juiz ou qualquer das partes for seu cônjuge, ou parente, consangüíneo ou afim, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau, inclusive, e a eles se estendem, no que lhes for aplicável, as prescrições relativas à suspeição e aos impedimentos dos juízes.
Ora, as exceções de impedimento e suspeição dos juízes servem para garantir a imparcialidade do órgão jurisdicional, e, se elas são aplicáveis aos membros do Ministério Público, devem ser eles imparciais. Qual o porquê de não se aplicar as mesmas disposições às "partes comuns"? Porque elas não devem obediência a imparcialidade, são parciais por natureza; apenas não podem se servir de meios escusos para alcançar seus objetivos.
Dado o que foi exposto, é dever do Ministério Público atuar no processo sob o prisma da imparcialidade, conseqüência essencial para a preservação do Estado democrático de direito e seus princípios consectários.
(CARNEIRO, 1995: 9)"O Ministério Público, como parte na ação penal pública, não está obrigado a promovê-la, única e exclusivamente, para obter a condenação do réu, mas antes sua atuação, nesta qualidade, é a de velar, usando de todos os meios possíveis, pela correta aplicação da lei, tanto processual como material, que no processo se resume na obtenção de uma sentença legal e justa".
Sua luta no processo é para a correta aplicação da lei, e não para perseguir o acusado; e no caminho para alcançar tal escopo, deve o órgão ministerial agir sob o signo da imparcialidade.