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Técnica do direito processual civil na ação cautelar de arrolamento

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21/11/2007 às 00:00
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Questões específicas36

Primeiramente, não falaremos sobre a distinção entre arresto e seqüestro, pois já abordados em seminários pretéritos.

A dúvida que paira, no entanto, é sobre a diferenciação entre arrolamento de bens e essas duas outras medidas de constrição cautelar patrimonial.

Semelhanças essas cautelares têm de sobra, como frisou Humberto Theodoro Jr.37 ao conceituar arrolamento de bens:

"O Código atual, esposando o modelo português, transformou o arrolamento em medida protetiva dos próprios bens arrolados, a exemplo do que se passa com o arresto e o seqüestro".

Interessa, ao contrário, destacar os pontos de choque entre elas.

Um argumento mais pobre e que, no entanto, não pode ser desprezado pelo intérprete é a previsão legal do instituto. Dificilmente o legislador iria prever o mesmo instituto valendo-se de outro rótulo, rubrica ou nome jurídico. O primado da lei, fonte originária de interpretação do Direito, com efeito, obriga o juiz a respeitar o comando normativo típico, sem que possa, ao seu alvedrio, escolher os tipos que se amoldam ao caso concreto, pois o conflito entre as normas quase sempre é aparente, não real. Com isso, em princípio o juiz fica vinculado à especialidade da norma, podendo, todavia, socorrer-se das normas subsidiárias das cautelares de arresto e seqüestro quando não conflite com a cautelar de arrolamento de bens. Essa é a idéia central.

Aliás, certa semelhança já foi apontada pela doutrina quando se discorreu sobre o instituto38.

O procedimento do arrolamento de bens se difere do procedimento do arresto e do seqüestro, que fique bem claro.

Pesa, ao contrário, a favor da fungibilidade do instituto, os arts. 813, IV, e 822, IV, através da interpretação analógica "nos demais casos expressos em lei". Pela redação vaga do Código, poderíamos dizer que as disposições referentes ao arrolamento de bens é o resultado da extensão das cautelares de arresto e seqüestro? Teria o CPC se equivocado a respeito, reproduzindo norma jurídica já prevista nos incisos citados? Há, enfim, conflito entre essas normas em face do art. 855 e ss. do CPC?

À concessão do arresto exige a lei a prova literal da dívida líquida e certa ou a prova documental ou justificação de algum dos casos que menciona (art. 813 do CPC), equiparando-se à prova literal da dívida líquida e certa a sentença, líquida ou ilíquida, pendente de recurso, condenando o devedor ao pagamento de dinheiro ou de prestação que em dinheiro possa converter-se, segundo o art. 814 do CPC39.

O art. 856, caput, do CPC, se contenta que o requerente do arrolamento de bens demonstre – fundado na "fumaça do bom direito" e no "perigo da demora" – o mero interesse na conservação dos bens, não exigindo a liquidez do direito invocado (liquidez do direito material que alega possuir em face do requerido). O que importa para o requerente, portanto, é a conservação destes bens, ainda que não prove o direito líquido e certo que tem sobre eles. Importa, outrossim, para o requerente do arrolamento, a necessidade de se acautelar eventual dilapidação que estes bens podem representar se o provável devedor consumar negócio jurídico destes com terceiros. O mesmo vale para o seqüestro, que invoca para si normas gerais do arresto naquilo em que o Código não disse. Deveras, o § 1º do art. 856 diz que o interesse do requerente pode resultar de direito já constituído ou que deva ser declarado em ação própria. Daí o contentamento, menos rigoroso à concessão do arrolamento, de que não haja, ao contrário do arresto/seqüestro, prova literal da dívida líquida e certa, prova documental ou justificação de algum dos casos mencionados no art. 813, e, não só, que haja anterior peleja judicial entre o requerente e requerido sobre os bens indicados na petição inicial da cautelar de arrolamento.

Não só isso. O § 2º do mencionado art. 856 do Código restringe o interesse dos credores em ajuizar a cautelar de arrolamento nos casos em que tenha lugar a arrecadação de herança, hipótese que a doutrina, como se viu, indica tratar-se de herança jacente40. Mais dilatado, a concessão do arresto/seqüestro não sofre essa limitação circunstancial da lei.

A "fumaça do bom direito" à concessão do arrolamento cautelar, segundo Paulo Afonso Garrido de Paula, já citado por nós, pode recair em arrolamento preparatório de uma ação de reconhecimento de uma sociedade de fato, do qual poderá redundar em meação patrimonial41. Note-se que, diferentemente do arresto, não há nos autos e nem se exige a prova literal da dívida líquida e certa, vez que a sociedade de fato em si deve, antes, ser demonstrada, contentando-se ao arrolamento dos bens a plausibilidade do direito alegado e sua possível deterioração diante do perigo da demora, que pode ser de certa ou de difícil reparação ao direito do requerente.

O Superior Tribunal de Justiça já se manifestou sobre o arrolamento de bens e o arresto, denotando, segundo o acórdão em tela, que se trata de medidas cautelares distintas:

Processual civil. Instituição financeira sob Regime de Administração

Especial Temporária - RAET. Medidas cautelares de arresto e arrolamento de bens. Ex-administrador. Legitimidade do Ministério Público. Preliminar de eventual omissão ultrapassada. Reexame do conjunto probatório. Prequestionamento - O Ministério Público tem o dever de adotar providências adequadas à efetivação da responsabilidade dos ex-administradores das empresas envolvidas em prejuízo a terceiros, como também, não apenas possui legitimidade para requerer o arresto dos bens dos ex-administradores na hipótese do inquérito concluir pela existência de prejuízos, mas é obrigado a tanto, sob pena de responsabilização, por força do art. 45 da Lei n.º 6.024/74. À luz do princípio da indivisibilidade do Ministério Público e, considerando que o Ministério Público do Rio de Janeiro, ao assumir o pólo ativo das medidas cautelares de arrolamento de bens e de arresto, ratificou a inicial proposta pelo Ministério Público de Minas Gerais, além de ter sido prolatada sentença pela Justiça estadual fluminense, afasta-se a preliminar de ilegitimidade ativa do Ministério Público do Rio de Janeiro - Ultrapassada a preliminar de violação ao art. 535, inc. II, do CPC, por haver momento oportuno - final do processo na fase de execução - para se discutir a matéria em relação à qual é alegada omissão - Inviável a abertura do debate na via especial quando para tanto se faz necessário o revolvimento do substrato fático-probatório do processo, como também ante a ausência de prequestionamento da matéria jurídica versada no dispositivo tido como violado. Recurso especial não conhecido (REsp 480310/RJ – Recurso Especial 2002/0143558-2, rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, 25/09/2006, DJ 16.10.2006, p. 363).

Fica aí nossa ponderação a respeito, certamente acrescentada – talvez desmentida! – pela argúcia dos colegas e dos professores quando houver a exposição oral, aberto o debate.

Vamos aos outros sub-tópicos.


Natureza jurídica do arrolamento de bens

Já nos posicionamos, com arrimo na doutrina citada, e, certamente, com a lei, que se trata de medida cautelar propriamente dita, pura ou genuína.

Antes, temos que fazer, necessariamente, a menção à fungibilidade pugnada por muitos doutrinadores. Pelo tomo de quem fala, temos, ainda que discordando ou concordando em parte, reproduzir algumas passagens sobre a temática.

Instituído pelo CPC instrumentos que antecipam a tutela com efeitos iguais e ao mesmo tempo mais profundos do que as cautelares típicas ou mesmo atípicas, é preciso não desprezar, por completo, esse posicionamento, que se funda na fungibilidade integral ou completa entre a medida cautelar e antecipação da tutela, tanto de ida, quanto de volta, de vice-versa ou de versa-vice42.

Defendendo a fungibilidade integral ou completa, eis o levante do professor da USP43, Cândido Rangel Dinamarco44:

"Nesse contexto, é verdadeiramente correta, útil e oportuna a inovação trazida pela segunda Reforma, ditando a fungibilidade entre medidas cautelares e antecipatórias. É correta no plano conceitual, porque não há razão para distinguir tão rigidamente umas de outras. É útil na prática, porque permite superar erros ou divergências quanto à correta qualificação de uma demanda ou de uma medida em uma dessas categorias, ou na outra, o que vem sendo causa de dificuldades e constrangimentos para partes, advogados, juízes. E, metodologicamente, a regra explícita da fungibilidade tem o mérito de sugerir a visão unitária do grande gênero medidas urgentes, que é caminho aberto para o enriquecimento da teoria das medidas antecipatórias, à luz das inúmeras regras explícitas endereçadas pelo Código de Processo Civil às cautelares (e esse é o tema central do presente estudo).

Mas a redação do novo § 7º do art. 273 não é suficientemente clara, porque dá a impressão de que somente autorizaria o juiz a receber como cautelar uma demanda proposta com o título de antecipação, e não o contrário. Essa impressão é falsa, porque é inerente a toda fungibilidade a possibilidade de intercâmbio recíproco, em todos os sentidos imagináveis. Não há fungibilidade em mão única de direção.

Já é geralmente aceito, diante disso, que o novo dispositivo autoriza o juiz, amplamente, a receber qualquer pedido de tutela urgente, enquadrando-o na categoria que entender adequada, ainda que o demandante haja errado ao qualificar o que é cautelar como antecipação, ou o que é antecipação, como cautelar.

Estou medularmente convicto de que a sustação de protesto é tutela antecipada e não medida cautelar, porque consiste em oferecer ao sujeito, em caráter provisório, precisamente o mesmo resultado prático que ele espera obter, em caráter definitivo, ao fim do processo principal – ou seja, a não-realização do protesto. Não se trata de aparelhar o processo, mas de amparar diretamente, desde logo, uma das partes. Antes da nova Reforma, quem pedisse uma sustação de protesto a título de antecipação corria o sério risco de não obter a medida liminar e ainda lhe ser indeferida a própria petição inicial. Quem disse que sustação de protesto é antecipação de tutela? E onde já se viu uma antecipação de tutela em caráter preparatório? – certamente lhe responderia um juiz menos preparado e mais propenso ao formalismo e à burocracia inconsistente. Hoje o novo § 7º do art. 273 impede que mesmo um juiz mais formalista possa agir dessa maneira".

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Malgrado posicionamento em contrário fica o registro de um dos melhores processualistas deste País, ao lado, por exemplo, de José Carlos Barbosa Moreira, conquistada durante décadas de muita experiência como promotor de justiça, procurador de justiça, juiz de alçada de tribunal, desembargador, e, atualmente, no exercício da advocacia. Talvez o professor das Arcadas de São Francisco tenha se libertado da qualidade de "funcionário público", vinculado à hierarquia administrativa e, infelizmente, às vezes funcional!

No mesmo sentido, Fredie Didier Jr., Paula Sarno Braga e Rafael Oliveira45, citando Athos Gusmão Carneiro, Teori Albino Zavascki, Luiz Guilherme Marinoni, Cândido Rangel Dinamarco, Humberto Theodoro Jr., Joaquim Felipe Spadoni, Jean Carlos Dias e Luiz Gustavo Tardin, representando, talvez, boa parte dos processualistas da nova geração:

"A Lei Federal n. 10.444/2002 acrescentou o § 7º ao art. 273 do CPC, imprimindo nova revolução na técnica de concessão das chamadas tutelas provisórias de urgência. Consagrou-se a fungibilidade das medidas urgentes (cautelar e antecipada). As medidas cautelares e antecipatórias, com já dito, são técnicas processuais distintas, embora possuam mesma função – abrandar os males do tempo. A doutrina já extremara, com razoável precisão, a distinção entre uma e outra.

‘Este parágrafo, ao aceitar a possibilidade de confusão entre as tutelas cautelar e antecipatória, frisa a diferença entre ambas. Isto, por uma razão de lógica básica: somente coisas distintas podem ser confundidas’.

Sucede que essa distinção, hoje consagrada, perdeu a sua utilidade prática, embora permaneça incólume no plano doutrinário. Acabou a discussão. Todas aquelas situações-limite, nas quais o magistrado hesitava no momento da concessão da medida, por não saber ao certo se exigia a prova inequívoca ou a ‘simples fumaça do bom direito’, estão resolvidas. Aquelas lacônicas decisões que negavam a antecipação da tutela, por tratar-se de provimento cautelar, não mais se justificam.

O legislador, no dispositivo citado, admitiu a fungibilidade de pedidos, ‘no sentido de que nominalmente postulada uma daquelas medidas, ao juiz é lícito conceder a tutela a outro título’. Admite-se, pois, a possibilidade de concessão de provimento cautelar fora do âmbito do processo cautelar.

É possível agora, sem mais qualquer objeção doutrinária, a concessão de provimentos cautelares no bojo de demandas de conhecimento. Não há mais necessidade de instauração de um processo com objetivo exclusivo de obtenção de um provimento acautelatório: a medida cautelar pode ser concedida no processo de conhecimento, incidentalmente, como menciona o texto legal.

A redação do dispositivo é bastante clara:

‘Se o autor, a título de antecipação de tutela, requerer providência de natureza cautelar, poderá o juiz, quando presentes os respectivos pressupostos, deferir a medida cautelar em caráter incidental do processo ajuizado’.

Acolheu-se quase que literalmente a sugestão de Humberto Theodoro Jr.:

‘Não se deve, portanto, indeferir tutela antecipada simplesmente porque a providência preventiva postulada se confundiria com medida cautelar, ou rigorosamente, não se incluiria, de forma direta, no âmbito do mérito da causa. Havendo evidente risco de dano grave e de difícil reparação, que possa, realmente, comprometer a efetividade da futura prestação jurisdicional, não cometerá pecado algum o decisório que admitir, na liminar do art. 273 do CPC, providências preventivas que, com mais rigor, deveriam ser tratadas como cautelares. Mesmo porque as exigências para o deferimento da tutela antecipada são maiores do que as da tutela cautelar’.

Perceba-se que os requisitos para a concessão dessa medida cautelar são os mesmos exigidos para a medida cautelar requerida via processo cautelar (art. 804, CPC) – já que o texto legal refere-se aos ‘respectivos requisitos’. Não está o autor em qualquer situação de ‘desvantagem processual’ ao requerer a providência por esta forma – poderia ser alegada uma maior ‘dificuldade’ na sua obtenção, na medida em que o magistrado talvez exigisse o preenchimento dos requisitos pertinentes à tutela antecipada, sabidamente mais rigorosos. Ao contrário. O legislador permitiu a concessão da medida cautelar no próprio processo de conhecimento, uma vez preenchidos os seus requisitos (perigo da demora e fumaça do bom direito). Com isso, está dispensado o requerente de todos os ônus inerentes a um processo autônomo: petição inicial, custas, réplica, provas, recursos etc. Libera-se o Poder Judiciário das tarefas de processar e decidir um outro processo – aliás, a praxe já demonstrava que os magistrados julgavam as demandas de conhecimento e cautelar em uma mesma decisão.

O processo de conhecimento, que com as reformas de 1994 e 2005 já recebeu grandes doses de efetivação e asseguração (a própria antecipação da tutela, que possui funções executivas e de segurança), com essa mudança continuou caminhando para a plenitude do sincretismo das funções jurisdicionais: na própria relação jurídica processual com função cognitiva, podem ser alcançadas a tutela cautelar e a tutela executiva.

Observando-se o quadro de mudanças legislativas, pode-se tranqüilamente identificar uma tendência inexorável de nossa legislação: a unificação dos ‘processos’. Com o claro objetivo de acabar com a vetusta exigência de que, para cada função jurisdicional, uma relação jurídica processual autônoma, transforma-se a relação jurídica processual de conhecimento, que passa a ter a característica da ‘multifuncionalidade’.

Para alguns autores, além dos requisitos gerais para a concessão da tutela cautelar – fumus boni iuris e periculum in mora -, um outro deve ser preenchido para que tenha aplicabilidade a regra da fungibilidade. Para que "a" [acrescentamos] cautelar seja deferida, mediante requerimento de tutela antecipada, é necessário que haja dúvida fundada e razoável quanto à sua natureza, dizem. Ou seja, só é permitida a aplicação do dispositivo em hipóteses excepcionais, quando subsistir fundada incerteza sobre qual a medida de urgência correta e adequada para o caso. Fica excluída, a medida, se a parte incorreu em erro grosseiro. É o que pensa, por exemplo, Luiz Guilherme Marinoni. Joaquim Felipe Spadoni, malgrado reconheça que essa exigência não consta na lei, afirma que ‘a demonstração dos requisitos se impõe, sob pena de se permitir o uso abusivo e de má-fé de pedidos de antecipação de tutela supostamente equivocados’.

Assim, com base nesse entendimento, há quem repudie, por exemplo, a concessão de cautelar típica em sede de processo de conhecimento.

Parece-nos, porém, que não está correto esse pensamento. Em primeiro lugar, o pressuposto não consta do texto normativo, não sendo lícito criá-lo, por analogia ao sistema da fungibilidade dos recursos, sem uma razão séria a justificar a adequação. Em segundo lugar, a tendência de transformação de um mesmo processo em ambiente propício para a concessão de qualquer modalidade de tutela jurisdicional, ao lado de ser providência reclamada pela doutrina, parece hoje realidade normativa incontestável, sendo, pois, um dado a ser levado em consideração, que revela o ‘ânimo’ da reforma: facilitar a concessão de providências urgentes. Em terceiro lugar, exigir esse pressuposto é criar mais um problema a ser solucionado pela jurisprudência: o que ‘é dúvida razoável’? A concessão da tutela provisória terá mais um obstáculo a superar e a reforma, que veio para eliminar discussões teóricas, terá criado mais uma... Em quarto lugar, a interpretação revela um excesso de formalismo, dificultando a ‘fungibilidade’, técnica de aproveitamento que está sobretudo após levar-se em conta que, nestes casos, o juiz estará diante de uma situação de urgência".

Mais conservadores, menos radicais, Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart46, em obra coletiva, dizem que:

"O § 7.º do art. 273 não supõe a identidade entre tutela cautelar e tutela antecipatória ou afirma que toda e qualquer tutela cautelar pode ser requerida no processo de conhecimento. Ao contrário, tal norma, partindo do pressuposto de que, em alguns casos, pode haver confusão entre as tutelas cautelar e antecipatória, deseja apenas ressalvar a possibilidade de se conceder tutela urgente no processo de conhecimento nos casos em que houver dúvida fundada e razoável quanto à sua natureza (cautelar ou antecipatória).

De qualquer forma, como o raciocínio acima empregado, ao concluir pela admissão da concessão de tutela de natureza antecipatória ainda que tenha sido solicitada ‘cautelar’, parte da premissa de que é possível requerer tutela cautelar no processo de conhecimento, cabe uma explicação. Em 1991, quando defendemos na PUC/SP dissertação de mestrado que foi intitulada Tutela cautelar e tutela antecipatória, concluímos que a tutela cautelar poderia ser requerida no processo de conhecimento. Nessa ocasião, fizemos a distinção entre medida cautelar e processo cautelar, demonstrando que a incoação do processo cautelar somente seria necessária quando aquele que buscasse a tutela precisasse melhor elucidar os fatos, necessitando produzir prova mais elaborada [a tese é de Luiz Guilherme Marinoni].

Em outros termos: existindo fato que pode ser demonstrado por meio de documento, a tutela pode ser requerida no próprio processo de conhecimento. Havendo necessidade de os fundamentos da tutela cautelar serem demonstrados através de instrução mais aprofundada, há que ser proposta ação cautelar e instaurado o respectivo processo, onde será levada a efeito a prova destinada a demonstrar seus requisitos típicos.

Contudo, o fato de ser possível pedir tutela cautelar no processo de conhecimento não tem relação direta com a possibilidade de concessão de tutela antecipatória ainda que tenha sido solicitada cautelar, ou com idéia de fungibilidade (presente no art. 273, § 7.º). A concessão de tutela antecipatória no caso em que houver sido pedida cautelar somente é possível em hipóteses excepcionais, ou seja, quando for razoável e fundada a dúvida em relação à correta identificação da tutela urgente".

Particularmente, prefiro esta última posição (parcial fungibilidade), com todo o respeito ao entendimento em contrário expostos acima pela doutrina. Meu colega de trabalho, Dr. Régis Cardoso Ares, adota o critério da fungibilidade completa ou integral, de ida e de volta, conforme se posicionaram Cândido Rangel Dinamarco, Fredie Didier Jr., Paula Sarno Braga e Rafael Oliveira47.

Sobre a antecipação da tutela, vale a pena folhear outras obras do paranaense Luiz Guilherme Marinoni48.

O importante é que a discussão sobre a fungibilidade foi lançada e de algum modo se entretém com o assunto que aqui se discute, que é a cautelar de arrolamento de bens. Ficar brigando pela adoção ou não da fungibilidade, se deve ser aplicada total ou parcialmente etc. seria o mesmo que ficar discutindo se a Teoria Tripartida quanto aos elementos analíticos do crime são melhores do que os da Teoria Bipartida, no direito penal, se Fran Martins escreveu com mais profundidade do que Rubens Requião, no direito comercial, ou mesmo se Paulo Bonavides é ou não o melhor constitucionalista do Brasil, no direito constitucional49... Mas como comentamos o assunto no começo da exposição, achamos por bem, sob o risco de nos "embargarem por declaração", falar a respeito da fungibilidade, objetivando a integração ou esclarecimento do instituto. Aliás, queremos evitar qualquer atrito, como analogicamente ocorreu com José Carlos Barbosa Moreira x Cândido Rangel Dinamarco. Explicamos: este último, ao defender a natureza jurídica recursal dos embargos de declaração, chegou ao ponto de "opor embargos de declaração" contra Barbosa Moreira, nestes termos: "[...] Sem expor razões, em duas obras diz Barbosa Moreira que não há contraditório nos embargos de declaração, não-obstante reconheça que em alguns casos é legítimo conceder-lhes eficácia modificativa. Oponhamos embargos de declaração ao renomado Mestre, em busca da fundamentação de seu ponto-de-vista"50.

Mencione-se, ainda sobre a fungibilidade, a existência do Projeto de Lei 186/2005 que tramita no Senado Federal. Se vingado e sem que haja emendas que cheguem a desnaturar o intento do projeto, o coro que defende a fungibilidade integral ou completa entre as tutelas de urgência antecipatória e cautelar ficará mais forte no sentido da juridicidade desta corrente.

Vejamos o que diz alguns dos dispositivos do PL:

Art. 273-A. A antecipação de tutela poderá ser requerida em procedimento antecedente ou na pendência do processo.

Art. 273-B. Aplicam-se ao procedimento previsto no art. 273-A, no que couber, as disposições do Livro III, Título Único, Capítulo I, deste Código.

Aguardemos o regular processo legislativo nos termos do art. 59, caput, da Constituição, e, conforme seu parágrafo único51, a disposição da Lei Complementar 95, de 26 de dezembro de 199852, sobre o PL 186/2005.

Antes, porém, de fundamentar nosso posicionamento sobre a natureza cautelar do arrolamento de bens, ou mesmo confirmar, pois já foi antecipado alhures, vejamos brevemente o que diz sobre o processo cautelar José Carlos Barbosa Moreira. O carioca, em suma, nega a fungibilidade integral ou completa, pelo que se denota da 3ª parte de sua monografia e que "se resumirá bem resumidamente!". Depois, concluímos este sub-tópico.

Diz Barbosa Moreira53:

"Do ponto de vista que interessa no presente contexto – isto é, ao ângulo procedimental -, pode-se traçar distinção análoga à que o próprio Código expressamente faz no que concerne ao processo de conhecimento, estremando, de um lado, o procedimento comum, disciplinado no Capítulo I, e, de outros, os procedimentos especiais, peculiares às providências para as quais cogitou a lei de modelá-los, nas Seções do Capítulo II. Destes últimos não nos ocuparemos aqui; nossa exposição limitar-se-á ao procedimento comum, cuja regulamentação, além de constituir – repita-se – fonte (ao menos subsidiária) da disciplina dos especiais, também se aplicará, em princípio, às medidas cautelares não contempladas, expressamente, no texto legal".

Ora, pelo que se extrai do processualista, ele nega, ao menos na leitura desta passagem, a fungibilidade, aliado, pois, ao decorrer da 3ª parte de sua obra.

O arrolamento de bens é medida cautelar típica, pura ou propriamente dita, tendente a assegurar ou garantir provável satisfação de um direito material. Contenta-se, ademais, para o deferimento de sua concessão, com juízo provisório de convicção e verossimilhança, pelo seu inegável caráter instrumental, de pura subserviência ao direito material. Havendo fundado receio de extravio ou de dissipação de bens, é cabível a medida, seja de forma preparatória ou incidental.

Disso cuida o art. 855 e ss. do Código de Processo Civil.

Admitir a fungibilidade entre as tutelas de urgência, seja quando se pede a título de cautelar e é dado pelo magistrado a título de antecipação, seja quando se pede antecipação e é dado pelo magistrado a título de cautelar, requer cuidados.

Mesmo a doutrina que admite a fungibilidade integral ou completa, que é aquela em que ocorre "em mão dupla", de "cautelar/antecipação" ou de "antecipação/cautelar", traz exceções à teoria. O PL 186/2005, por outro lado, ainda que aprovado virgem ou sem emendas que lhe traiam o escopo, deixa claro que a própria lei, adotando-o na íntegra, se estivesse vigor hoje em dia e, portanto, se pudesse ser interpretado de lege lata (repita-se: se for aprovado nestas condições), não quis agraciar a doutrina que defende a fungibilidade integral ou pura.

Vejamos, mais uma vez, o dispositivo, de lege ferenda, que é, ainda, sua condição atual:

Art. 273-B. Aplicam-se ao procedimento previsto no art. 273-A, no que couber, as disposições do Livro III, Título Único, Capítulo I, deste Código.

A válvula "no que couber" denota que o Código, mesmo enxertado com este projeto visando apaziguar em certa medida as tutelas de urgência, adaptando o diploma aos institutos mais modernos inseridos ao longo dos anos, afasta a alegação dos que já defendem, sobranceiros, a aplicabilidade da fungibilidade integral. Ora, talvez se fosse retirado justamente a expressão "no que couber", seria mais forte este entendimento. Imagine-se:

"Art. 273-B. Aplicam-se ao procedimento previsto no art. 273-A as disposições do Livro III, Título Único, Capítulo I, deste Código".

Com efeito, mesmo na hipótese de ser suprimida a expressão "no que couber", ficaria a pergunta: não seria mais fácil, se fosse admitida a fungibilidade integral, revogar, expressamente – nos termos da LC 95/98 -, o Livro III do CPC? Ou, ainda: por que o Código mandaria aplicar ao instituto da antecipação, previsto no art. 273 e ss., as disposições do processo cautelar, se são coisas "iguais"?

Não só isso.

Mesmo acreditando que as disposições dos arts. 461 e 461-A do CPC, na redação das Leis 8.952, de 13 de dezembro de 1994 e 10.444, de 7 de maio de 2002, sejam aplicáveis às medidas cautelares puras, como o arrolamento de bens, apesar de serem, concomitantemente aplicáveis à antecipação da tutela, atente-se que o condão desses mencionados artigos de lei são de direito instrumental, não de direito material. Objetiva essas normas darem ao juiz, com as restrições constitucionais - e mesmo legais -, meios para que o mesmo determine providências que assegurem o resultado prático equivalente ao adimplemento do direito material, não, em si, obtendo o direito material. Essa aplicação, tal como a do pedido de antecipação concedido a título cautelar pelo juiz, é viável54.

Verdadeiramente, nem de "fungibilidade" se está utilizando nas hipóteses de aplicação do instituto das ações ou medidas de cumprimento (arts. 461 e 461-A). Melhor crermos tratar-se de interpretação sistemático-teleológica, pois o Código, segundo se espera, deve ser coeso, podendo-se, em inúmeras vezes, utilizar institutos que não estejam, prima facie, ligados; o que na verdade é derrubado diante da técnica de interpretação empregada, ou seja, a interpretação acima colocada.

Cândido Rangel Dinamarco comentou os arts. 461 e 461-A do CPC em sua monografia55.

E mais. A tipicidade das formas executivas, como já ocorreu com mais vigor no Estado Liberal56, não pode ser afastada por completo, pois se não for assim, em cada vara judicial estará sendo aplicado um determinado procedimento ou mesmo direito material, em situações em que se exige, pela segurança jurídica da jurisdição, conformidade de procedimentos ou mesmo de julgamento de mérito em situações objetivas. Lembremo-nos de que nosso Estado é federativo, exigindo-se compatibilidade com o prescrito pelo poder central. Se cada juiz, grosso modo, criar "o seu direito", processual ou material, o Estado de Direito, por conseqüência, rói.

Não que o magistrado deve ser mero robô ou marionete da lei, absolutamente. Mas admitir extravagância ilícita, como, por exemplo, "revogar tacitamente" o Livro III do CPC, doutrinariamente, é prática ilegal e inconstitucional. Só o Poder Legislativo, mediante o devido processo legislativo, pode revogar ou derrogar lei. Não o juiz!

Segundo Carlos Fonseca Monnerat57, titular das turmas de pós-graduação em processo civil da Universidade Católica de Santos, em reiteradas abordagens que fizemos sobre os mais diversos institutos, sempre nos diz: "juiz cumpre a lei"!

Permanece vigente, portanto, o Livro III do CPC, até que a lei disponha em sentido contrário.

A seguir, vejamos bem rapidamente sobre a prisão civil do depositário infiel, exercício de garantia judicial preconizado pelo art. 858, caput, do Código.

Estabelece o art. 5º, da Constituição, que não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel. Trata-se de garantia fundamental do ordenamento jurídico, cláusula pétrea nos termos do art. 60, § 4º, IV, da mesma Constituição. Enquanto existir o texto magno, existirá tal garantia, tal como não existe corpo sem alma.

O Direito das Gentes ou Direito Público Internacional é o embrião da garantia constitucional que veda a prisão civil do indivíduo. Exemplificativamente, o art. 7º - Direito à liberdade pessoal -, número 7, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), prevê que ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio - continua a norma assecuratória internacional - não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar. O Brasil, signatário da Convenção, incorporou o diploma alienígena através do Decreto 678, de 6 de novembro de 1992, cuja ementa diz estar promulgada a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969.

Alterações no regime constitucional atiçaram a doutrina a respeito da prisão civil do depositário infiel, pois a Convenção só permite, conforme o texto do art. 7º, número 7, exceção quanto ao princípio em se tratando de devedor voluntário de alimentos. Silencia, assim, quanto à exceção da prisão civil do depositário infiel.

Não obstante o assunto seja fértil, escapa da finalidade do nosso ensaio aprofundar a respeito de tão solerte tema, a liberdade da pessoa. Porém, há alguma identidade do assunto ao instituto da cautelar de arrolamento de bens, que exige a nomeação de um depositário do bem arrolado.

Parte da doutrina processual admite a possibilidade da prisão civil não só do depositário infiel e do devedor de alimentos, mas também nas hipóteses de atos atentatórios ao exercício da jurisdição58. É um posicionamento mais duro, certamente.

Luiz Guilherme Marinoni, talvez com resquícios da época em que ocupava o cargo de procurador da república, defende esta idéia, tida por muitos como inconstitucional. O processualista em várias oportunidades e em mais de uma monografia fala a respeito, o que tomaria muito nosso tempo se abordássemos seu posicionamento. Merece, entretanto, leitura pelo intérprete, até para que se possa discordar do estudo feito pelo professor sem a alegação genérica de inconstitucionalidade.

Admite o paranaense, em resumo, que a prisão civil é possível como meio de coerção indireta ao adimplemento do direito perseguido pela via judicial. Para ele, a jurisdição tem valor superior ao mero interesse individual (que seria a liberdade do cidadão paga pelo alto preço da desobediência civil de uma ordem), por se tratar de interesse público, objetivo, do Estado. Defende a topografia do poder jurisdicional, assegurado pela CF no mesmo rol dos direitos e das garantias fundamentais, circunstância que afasta a proteção individual do coagido frente ao interesse da sociedade em ver a tutela do Estado ser efetiva, útil e adequada ao caso concreto.

Obras como Técnica Processual e Tutela dos Direitos, RT, SP, e Tutela Inibitória (individual e coletiva), RT, SP, cuidam do assunto. Nelas, Marinoni fundamenta bem a constitucionalidade, segundo ele, da prisão civil nestas condições.

Mesmo já tendo provocado as discussões perante a turma, dando até a impressão de que concordamos com a posição do doutrinador, não concordamos com o professor do Paraná, malgrado respeitamos seu entendimento.

Exemplificativamente, mas com o sentido de aplicação "analógica" ao instituto cautelar de arrolamento de bens, já foi dito por nós59 que:

"A regra no ‘Sistema dos Juizados’ (Juizado Especial Estadual e Juizado Especial Federal) é de restrição às medidas recursais: (i) seja restringindo o uso dos recursos em sentido estrito; (ii) seja restringindo as vias impugnativas etc., o que não acontece na utilização corriqueira do procedimento comum ordinário, de larga dilação probatória, mas que é cortada em boa medida nos Juizados Especiais Estaduais e Federais em virtude de seu procedimento diferenciado. Mesmo assim, é admitido, excepcionalmente, meios de impugnação contra ‘decisões teratológicas’ proferidas pelo órgão singular dos Juizados ou pelas próprias Turmas ou Colégios Recursais dessa justiça especializada segundo se extrai de enunciados do Fórum Permanente de Juízes Coordenadores dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais do Brasil, dentre outras fontes normativas em sentido lato. Assim, caso seja determinada pela Turma Recursal a prisão civil da parte sob o fundamento de desobediência ao juízo causado pela qualidade de depositário da coisa dada em garantia no contrato de alienação fiduciária, inviabilizada a restituição da res por culpa do depositário, pode o advogado, apoiando-se na doutrina de Flávia Piovesan (Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional, Saraiva, SP, 7ª ed., 2006, pp. 43/104 e 227/251) e na recente Emenda Constitucional 45, de 8 de dezembro de 2004, que instituiu a chamada ‘Reforma do Poder Judiciário’, cujo § 3.º acrescido ao texto pétreo e fundamental do art. 5.º da Constituição diz que "Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais", impetrar ordem de habeas corpus, com pedido liminar, dirigido ao Supremo Tribunal Federal por força do disposto no enunciado 64 do Fórum Permanente de Juízes Coordenadores dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais do Brasil – ‘Os remédios constitucionais (mandado de segurança e habeas corpus) eventualmente impetrados em face de atos das Turmas Recursais devem ser dirigidos ao STF’ -, diante da coação na liberdade do paciente ocorrida pela ilegalidade [inconstitucionalidade] e abuso de poder, sanável, todavia, pelo ‘remédio constitucional’ heróico (art. 5.º, LXVIII, da CF) segundo expressão largamente usada por José Afonso da Silva em seu Curso de Direito Constitucional Positivo, Malheiros, SP, 22ª ed., 2003, pp. 440 e 443.

Com efeito, diz a súmula 640 do Supremo Tribunal que ‘É cabível recurso extraordinário contra decisão proferida por juiz de primeiro grau nas causas de alçada, ou por turma recursal de juizado especial cível e criminal’. Ora, se cabe recurso extraordinário ao Supremo Tribunal Federal contra decisão proferida por juiz de primeiro grau nas causas de alçada, ou por turma recursal de juizado especial cível e criminal, cabe também ao próprio Supremo conhecer e julgar habeas corpus contra determinação de Turma Recursal que prende o depositário infiel, denotando, destarte, a funcionalidade de ‘última instância’ da justiça especializada apta a provocar a jurisdição constitucional da Corte.

É de se ponderar, pela sutileza do argumento, a posição de Flávia Piovesan sobre a aplicabilidade da proteção internacional quando a norma hierarquicamente nivelada à Constituição beneficiar aquele privado de sua liberdade decorrente de prisão civil: ‘Observe-se que, enquanto o Pacto dos Direitos Civis e Políticos não prevê exceção ao princípio da proibição da prisão civil por dívida, a Convenção Americana excepciona o caso de inadimplemento de obrigação alimentar. Ora, se o Brasil ratificou esses instrumentos sem qualquer reserva no que tange à matéria, é de questionar a possibilidade jurídica da prisão civil do depositário infiel. Mais uma vez, atendo-se ao critério da prevalência da norma mais favorável à vítima no plano da proteção dos direitos humanos, conclui-se que merece ser afastado o cabimento da possibilidade de prisão do depositário infiel, conferindo-se prevalência à norma do tratado. Observe-se que, se a situação fosse inversa - se a norma constitucional fosse mais benéfica que a normatividade internacional -, aplicar-se-ia a norma constitucional, muito embora os aludidos tratados tivessem hierarquia constitucional e houvessem sido ratificados após o advento da Constituição. Vale dizer, as próprias regras interpretativas dos tratados internacionais de proteção aos direitos humanos apontam nessa direção quando afirmam que os tratados internacionais só se aplicam se ampliarem e estenderem o alcance da proteção nacional dos direitos humanos’ (ob. cit. pp. 101/102).

No sentido de inadmitir a prisão civil do depositário infiel nos contratos de alienação fiduciária em garantia já decidiu o Superior Tribunal de Justiça: RHC nº 4.329-6, 6ª T., Rel., Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, j. 21-3-95, m.v. - vencido o Min. Anselmo Santiago, Diário da Justiça, 5 jun. 1995, p. 16.688 - publicado no Boletim IBCCRIM, nº 32, ago. 1995.

Não se justifica, atualmente, encarcerar o paciente depois do advento do § 3.º ao art. 5.º da Constituição (EC 45/2004). O próprio § 1.º do mesmo art. 5.º, ademais, afirma que ‘As normas definidoras de direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata’, tratando-se, destarte, de ‘norma supereficaz’ ou com ‘eficácia absoluta’, cuja incidência é imediata ao caso concreto (Maria Helena Diniz, Norma Constitucional e Seus Efeitos, Saraiva, SP, 3.ª ed., 1997, pp. 101/115), sem falar, igualmente, no § 2.º do mesmo art. 5.º da CF, que permite através de sua extensão a não exclusão de outros direitos e garantias decorrente do regime, dos princípios adotados pelo ordenamento constitucional bem como dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil faça parte, como, por exemplo, a Convenção Americana de Direitos Humanos ou Pacto de São José da Costa Rica. Contra este entendimento, ou seja, no sentido da constitucionalidade da prisão civil por dívida relacionada à condição de depositário infiel em contratos de alienação fiduciária com garantia (Decreto-Lei nº 911/69), já decidiu o Supremo Tribunal Federal: HC nº 72.131, sessão de 23-11-95; HC 73.469-3, Rel. Min. Octávio Galloti, Diário da Justiça, 20 abr. 1996, p. 13.116 e HC nº 73.044/SP - Rel. Ministro Maurício Corrêa, Diário da Justiça, 5 jun. 1995, p. 16.688 - publicado no Boletim IBCCRIM, nº 32, ago. 1995. No mesmo sentido da Corte Excelsa decidiu o Superior Tribunal de Justiça: Rec. de HC nº 4.712-SP, Rel. Min. Jesus Costa Lima, j. 16-8-95, v.u., Diário da Justiça, Seção I, 4 set. 1995, p. 27.841.

Mesmo depois do advento da emenda 45 à Constituição, acompanhando as decisões do STF e do STJ consoante a jurisprudência que se formou até o momento, Alexandre de Moraes: ‘Os compromissos assumidos pelo Brasil em tratado internacional de que seja parte (§ 2º, do art. 5º, da Constituição) não minimizam o conceito de soberania do Estado-novo na elaboração de sua constituição; por esta razão, o art. 7º, nº 7, do Pacto de São José da Costa Rica (´´ninguém deve ser detido por dívida´´: ´´este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar´´) deve ser interpretado com as limitações impostas pelo art. 5º, LXVII, da Constituição’ (Direito Constitucional, vigésima primeira edição, Atualizada até a EC n.º 53/06, Atlas, SP, 2007, pp. 109/110).

Defendendo, da mesma forma, a constitucionalidade na prisão civil do depositário infiel (antes e depois do advento da Emenda 45 à Constituição): Luiz Guilherme Marinoni, em sua Técnica Processual e Tutela dos Direitos, RT, SP, 2004, pp. 292/295, e, também, em Tutela Inibitória (Individual e Coletiva), RT, SP, 4.ª ed., 2006, pp. 233/241; no mesmo sentido, mas invocando o § 3.º do art. 666 do CPC, possibilitando a prisão civil do depositário infiel no próprio processo executivo e independentemente da ação de depósito, Humberto Theodoro Júnior, ressalvando, contudo, a necessidade do contraditório e ampla defesa ao coagido, tirada da monografia A Reforma da Execução do Título Extrajudicial, Lei n.º 11.382, de 06 de dezembro de 2006, Forense, RJ, 2007, pp. 95/97.

Apesar do tomo dos que defendem a constitucionalidade da prisão civil do depositário infiel nestas hipóteses, decorrente do contrato de alienação fiduciária em garantia, e, principalmente, pela desobediência à restituição determinada pelo juiz e descumprida voluntariamente pela parte, ficou mais difícil manter a aplicabilidade deste entendimento diante do atual texto trazido à Constituição pela Emenda 45".

Pelo exposto acima, negamos atualmente a possibilidade da prisão como coerção indireta, portanto civil, em face do depositário infiel, permanecendo íntegra a possibilidade da prisão civil do devedor voluntário de alimentos, respeitados o devido processo legal.

Ao contrário das hipóteses de encarceramento coercitivo do devedor de alimentos, que se escusa do cumprimento de sua obrigação voluntariamente, deve-se ter muito cuidado com a prisão civil do depositário infiel, pois colidente, pensamos, com as garantias trazidas pela própria Constituição (EC 4560), que, no que pese sua origem de emenda ou positivação pelo poder constituído ou de segundo grau, são, igualmente, garantias fundamentais da república, previstas no mesmo rol de garantias cuja norma restritiva – a da prisão civil do depositário infiel e devedor de alimentos – sofreu derrogação por lei posterior61.

Em sentido contrário, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça:

RECURSO ORDINÁRIO. PRISÃO CIVIL. CAUTELAR DE ARROLAMENTO DE BENS. DEPOSITÁRIO INFIEL. EXAME DE PROVA E MATÉRIA CONTROVERTIDA. PRISÃO DOMICILIAR. RECURSO IMPROVIDO - Em habeas corpus não há campo para exame de matéria controvertida, e que enseja produção de prova. Precedentes - É legal a prisão de depositário judicial que, apesar de intimado a entregar os bens em ação cautelar de arrolamento de bens, deixa de fazê-lo. Precedentes - A prisão do depositário judicial pode ser decretada no próprio processo em que se constituiu o encargo, independentemente da propositura da ação de depósito. Súmula 619/STF - Descumprido, de forma voluntária, o dever de guarda e conservação dos bens arrolados, a infidelidade apresenta-se caracterizada, o que legitima o decreto de prisão civil - Recurso improvido (RHC 20449/RJ – Recurso Ordinário em habeas corpus 2006/0241683-0, rel. Ministro Humberto Gomes de Barros, Terceira Turma, 14/12/2006, DJ 05.02.2007, p. 217).

Recentemente, o art. 666, § 3º, do CPC, incluído pela Lei 11.382, 6 de dezembro de 2006, possibilitou que a prisão civil do depositário infiel seja decretada no próprio processo, independentemente de ação de depósito. Humberto Theodoro Jr.62 comenta o novel dispositivo.

A prisão civil63 do depositário infiel é tema polêmico e talvez maior abordagem, mesmo com a cláusula do art. 858 do CPC, escapa do foco que nos propomos.

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Sobre o autor
Tassus Dinamarco

advogado, pós-graduando em processo civil pela Universidade Católica de Santos (SP)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DINAMARCO, Tassus. Técnica do direito processual civil na ação cautelar de arrolamento. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1603, 21 nov. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10632. Acesso em: 25 abr. 2024.

Mais informações

Texto baseado em Seminário realizado na pós-graduação em Direito Processual Civil da Universidade Católica de Santos.

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