Tempos Difíceis para o Mundo do Trabalho
Conforme já explorado por este autor em outros artigos, o direito do trabalho está a viver tempos difíceis. Tempos de desprestígio ao mundo do trabalho e de propaganda romântica do capital, fomentada de todos os lados por mídia de cunho ultraliberal e extremista, administrada ou apresentada por pessoas de poucas luzes com complexo de intelectualidade (“a era do homem comum”, de Mário Corso 1).
Na comunidade jurídica, há também contaminações. Leem-se artigos de autoproclamados advogados trabalhistas em defesa do poder econômico. Coluna periódica de juiz do trabalho dirigida reiteradamente contra a própria Justiça que integra. Magistrados tecendo discursos políticos em cerimônias de posse nos tribunais. Juízes do trabalho patrocinados pela iniciativa privada. Juízes que deixam a magistratura em segundo plano para se dedicar à monetização na internet.
Com efeito, o mundo do trabalho, o solidarismo social, e a própria instituição da Justiça passam, no Brasil e fora dele, por um período obscuro de sua história, em que a ajuda humanitária, a questão ambiental, crises sanitárias e a proteção ao trabalho são politizadas. No Brasil, abriu-se espaço político à linha da extrema direita. Proclamando o liberalismo econômico ilimitado, mas, muito além disso, sob o oportuno discurso da moralidade, da religiosidade e de uma noção equivocada de liberdade e democracia, surgem figuras políticas que, imprimindo uma forjada inconvencionalidade comportamental a seus personagens, à moda de autenticidade, arrebatam a simpatia de grande parcela da sociedade brasileira, recém-descoberta intolerante, antidemocrática e sem consciência social e de classe.
É perceptível tratar-se de questão comportamental e psicológica, antes de tudo, e econômica, em segundo lugar. Da noite para o dia, a ciência foi taxada de mentirosa. O débito histórico do país para com a população negra virou militância. A preocupação com o social tornou-se irresponsabilidade fiscal. E o valor social do trabalho, fundamento da República, virou inimigo da economia. Essa forma de pensar e de se comportar atingiu a todos os setores sociais, e não só a iniciativa privada. Inclusive membros da magistratura. Até minorias são arrebatadas, geralmente pelo pilar religioso. São tempos sombrios.
Secundariamente, o Judiciário tem propiciado um show de horrores no campo trabalhista, com fixação de teses trabalhistas descabidas; ministro afirmando, em tom de gracejo, trabalhar “em regime exaustivo, mas não escravo”, e sugerindo ser a fiscalização do trabalho ideologizada 2; permissão da mercantilização ilimitada do trabalho humano (terceirização irrestrita); e ministros descaracterizando dia e noite decisões colegiadas de mérito dos TRT´s que reconhecem vínculo de emprego, servindo-se de mecanismo juridicamente subreptício (reclamações constitucionais ajuizadas contra matéria de prova, decididas de forma monocrática, à guisa de precedentes imaginários, e aplicados por analogia) 3 4.
Não bastasse o menoscabo ao direito do trabalho e a JT desrespeitada em sua competência constitucional, o foco do momento é fazer pouco caso do trabalho prestado com redução do trabalhador à condição análoga à de escravo. Desde o advento deste período último neoliberal, nunca se viram tantas tentativas de minorar a importância de se coibir este ilícito (fato típico, inclusive, previsto no art. 149 do CP), com portarias afrouxadoras da fiscalização, decisões judiciais com fundamentos vexaminosos e artigos jurídicos com argumentos frágeis.
A escravidão contemporânea trata-se de uma chaga nacional, que possui suas origens históricas na própria escravidão racial. O Brasil foi o último país do continente americano a abolir a prática escravagista, já às portas do Sec. XX. Isso propiciou um espalhamento de mão de obra livre, mas desqualificada, na sociedade. Chegou-se à República Velha com uma população pobre, ignorante, vivendo de bico, recebendo por hora ou produção (e, portanto, trabalhando sem jornada limitada), sem legislação trabalhista regulamentada, sem proteção previdenciária adequada, dirigida política e ideologicamente pela elite econômica, sem representação legislativa, e que se insurgia por ter que tomar vacina para controle de endemias, por exemplo.
O ultraliberalismo fez voltar tudo isso, com nova roupagem. Vive-se uma propaganda massiva favorável ao poder econômico e desfavorável ao trabalho. Preconiza-se uma visão romântica do empreendedorismo, precarizando-se as relações de trabalho. Essa propaganda atinge os permeáveis, no íntimo. Induz o comportamento, já de alguma forma predisposto pelo meio ou herança cultural. O desenvolvimento cultural de um povo passa, sim, pela educação, mas também pelos costumes, pela herança cognitiva. Enquanto a educação tem caráter técnico, exigindo especialização do conhecimento por parte do educando, a cultura possui um forte viés comportamental e psíquico. Cultura vai muito além de currículo.
E o Brasil possui forte cultura elitista, de preconceito e protecionismo do poder econômico. De 1530 (início histórico do Brasil-colônia) a 1930 (fim da República Velha) há 400 anos de um país profundamente desigual, deseducado e cruel com o vulnerável. E apenas 90 anos desde os primeiros avanços (nos Anos 30). O que se vive no país, o que se ouve na mídia e o que se lê nestas decisões judiciais não é coincidência. Foram 400 anos de cultura escravagista, de preconceito contra o pobre e o negro, transmitida intergeracionalmente. Não são os últimos 90 que farão esta cultura evaporar. É íntimo, é comportamental, é estrutural. Enfim: é cultural.
O caso da senhora Sônia Maria de Jesus é paradigmático. E aqui não se discute o crime, mas a questão trabalhista, que é independente daquele.
A vítima, Sônia Maria de Jesus, é mulher, negra, pobre, e teria sido recrutada aos 9 anos de idade para trabalhar como doméstica. Sônia, resgatada pela fiscalização do trabalho e pela Polícia Federal no dia 6 de junho último, aos 50 anos de idade, não era alfabetizada. Mal sabia se expressar, o que tornou extremamente difícil aos auditores-fiscais e membros do ministério público do trabalho tomar seu depoimento. Surda, sequer foi educada na língua dos sinais. Não recebia direitos trabalhistas. Consequentemente, não possuía cobertura previdenciária. Não tinha plano de saúde. Viveu uma vida sem perspectiva. Foi apenas empregada doméstica, negra, numa família de brancos. Dos 9 aos 50.
O acusado, Jorge Luiz de Borba, é catarinense, caucasiano, de família tradicional naquele Estado. Seu pai era advogado afamado e chegou a ocupar o cargo de desembargador do TJ-SC, ingressando pela reserva legal do quinto da advocacia. Chegou à presidência do tribunal, inclusive. Com todas as oportunidades possíveis, Borba seguiu pela carreira do pai. Advogou no mesmo escritório, e também alçou o cargo de desembargador do mesmo TJ-SC, também pelo mesmo quinto da OAB. Família influente, portanto. Paradoxalmente, o desembargador é pós-graduado em direito do trabalho.
A fiscalização já tinha notícia da situação de escravidão análoga da vítima desde 2022. A possibilidade do flagrante surgiu em 6 de junho último, numa força-tarefa formada pelos auditores, membros do MPT e agentes da PF. Todos os que estavam no lugar presenciaram a situação da vítima. A doméstica foi levada a um centro de acolhimento, emitindo grunhidos como sons e pintando desenhos infantis. A Defensoria Pública da União assumiu o caso. No mesmo dia, e nos dias seguintes, os fatos receberam cobertura da imprensa 6.
Uma pausa.
Há dois anos, o caso da escrava análoga Madalena, negra, pobre, empregada doméstica na casa de um casal de Minas Gerais, havia sido noticiado. Madalena passara 38 anos sem direitos trabalhistas e sem vida plena. Nunca sequer tinha passeado num parque. 7
Há alguns meses, em abril, a Justiça do Trabalho da 2ª. Região (SP) julgou um caso muito similar. Neste, um casal de SP manteve uma trabalhadora doméstica por 33 anos em condição análoga à escravidão. A doméstica nunca recebeu salários, férias, décimo e todos os outros direitos trabalhistas. Trabalhava desde a hora em que acordava (6h) até a hora de dormir (23h). No processo, de livre consulta pela comunidade jurídica, como sói acontecer, a defesa havia carreado os seguintes argumentos: que o casal “mantinha estreitos laços familiares com a empregada”, que a mesma era “quase da família”, e que os patrões “lhe haviam proporcionado um ambiente familiar e acolhedor por anos" 8.
No dia seguinte à fiscalização e ao resgate de Sônia, o desembargador Jorge Borba divulga nota pública negando as acusações, afirmando “que a ‘mulher’ foi acolhida por sua família e que a situação alegada é um ato de amor, destacando que sempre trataram a ‘mulher’ como um membro da família, proporcionando-lhe um ambiente acolhedor” 9. O TJ-SC também divulgou nota afirmando que o desembargador prestara esclarecimentos ao órgão especial do tribunal, "reiterando o asseverado por ele, em nota pública, no sentido de que a ‘moça’ em referência, surda-muda e com déficit cognitivo, foi acolhida por sua família, com tenra idade, há mais de 30 anos" 10. A relação de trabalho não foi negada em nenhuma das notas.
A situação da “mulher” ou da “moça”, que tem nome e se chama Sônia, foi judicializada e o caso foi tratado como segredo de justiça. A regra do ordenamento jurídico é que o processo é público. A transparência é a praxe. Tramita em segredo de justiça apenas o que a lei autoriza expressamente: processos que versem sobre casamento, filiação, alimentos ou guarda, ou arbitragem (situações objetivas), ou em que o exija o interesse público ou social, ou ainda, de que constem dados protegidos pelo direito constitucional à intimidade (CPC, art. 189). Essas duas últimas hipóteses são mais subjetivas, mas o fato de o sujeito supostamente manter empregada doméstica em condições análogas às de escravidão não justifica interesse público ou social para se decretar sigilo (muito pelo contrário), nem diz com dados relativos à intimidade, nem da vítima, tampouco do agente. E todas as situações são exceções, devendo ser interpretadas restritivamente. No campo penal, a norma é mais restrita ainda, só se admitindo a tramitação em segredo de justiça para evitar exposição da vítima (repisa-se: da vítima) aos meios de comunicação (CPP, art. 201, §6º).
O caso chegou ao STJ, em HC. Caindo para relatoria do ministro Campbell Marques, o referido julgador profere liminar decidindo em favor do acusado, autorizando o retorno da vítima para a residência deste. Conforme amplamente divulgado, a decisão trouxe os seguintes fundamentos: “a suposta vítima do delito viveu como se fosse membro da família”, e que competiria à Sônia, “enquanto pessoa maior e capaz, e não ao Estado, a atribuição de escolher se deseja ou não voltar” 11. Nota-se que a liminar apreciou a questão apenas pela seara criminal, e, mesmo assim, deveria resguardar a situação da vítima, e não do apontado agente.
A DPU recorreu em favor da vítima para o STF. E o caso caiu para a relatoria de André Mendonça12, que manteve a liminar de Campbell Marques pelos mesmos fundamentos, e ainda admoestou o auditor-fiscal que comandou a fiscalização, determinando a abertura de inquérito criminal e administrativo contra o mesmo por ter concedido entrevista ao Fantástico, supostamente revelando informações do processo “sigiloso”, quando o auditor concedeu entrevista sobre os fatos que presenciou no exercício de suas atribuições, relativamente à sua profissão, e não sobre processo algum.
O que o sujeito afim do poder econômico não entende, ou acha bobagem, é que as relações trabalhistas se dão estritamente nos moldes legais. A legislação trabalhista tem um motivo para existir. Não surgiu do nada; não encontra sua existência em linha política ou populismo. A legislação trabalhista tem suas raízes na história humana. E, por isso, é cogente, de ordem pública. O trabalhador hipossuficiente é tutelado porque não pode ficar desregradamente submetido ao poder econômico. Não existe tutela apenas de criança e adolescente. As duas decisões desprezaram a lei trabalhista e os órgãos de proteção ao trabalho.
Relações jurídico-trabalhistas ilícitas não se escudam em capacidade civil ou aparentes ligações afetivas. A uma, que a pessoa reduzida a condição análoga à de escravo não possui capacidade plena. Escravo não se governa. Ela se submete àquela situação por questão de sobrevivência, e não por “lhe competir a escolha”. Não há dignidade numa situação de escravidão, para se cogitar de poder de decisão. Aliás, a vítima em questão é pessoa com deficiência (surda e muda), sem conhecimento da língua de sinais, e não recebeu educação formal. E, segundo a nota do TJ-SC, possui déficit cognitivo, inclusive. Portanto, não teria mesmo a capacidade plena de forma alguma.
A duas, que essa conversa de justificar o ilícito trabalhista mais grave do ordenamento com sentimentos de amor e caridade é mais antiga do que andar pra frente, como no dito popular. Quem integra os órgãos de tutela ao trabalho (Justiça do Trabalho, fiscalização do trabalho e Ministério Público do Trabalho) sabe que esse tipo de justificativa é recorrente e não tem valor jurídico, porque a relação de trabalho não se deleta com o discurso do tratamento empreendido à trabalhadora. O que se observa, rotineira e cotidianamente, é que a dita “pessoa da família” é quem limpa os vasos sanitários, varre e passa o pano na casa, faz a comida, e de resto tem sua vida ceifada pelo trabalho, sem direitos, sem educação e sem plenitude. No caso em comento, repisa-se: a relação de trabalho não foi negada, e Sônia, chegada à residência com 9 anos de idade, permanece na mesma condição de doméstica, dependente e deficiente aos 50. Quando provém da defesa, é até compreensível, mas, constar esse tipo de argumento de decisões judiciais, mormente de tribunais superiores, é muita falta de sensibilidade.
O ilícito trabalhista é claro, é objetivo, e persiste independentemente de existir ou não o dolo no campo penal. O caso necessitava ter sido apreciado também pela ótica laboral. Ao revés, foi desprezado nesta seara. Aliás, nesta questão, seria de bom alvitre a previsão, diretamente na lei trabalhista, da figura típica do trabalho em condição análoga à de escravo, a fim de separar a tipicidade trabalhista da criminal e, por conseguinte, eliminar a tese defendida por alguns de que os elementos do tipo penal causam insegurança jurídica; uma desculpa ultraliberal fajuta para se perpetuar o comportamento de pouco caso para com o Direito do Trabalho. O poder econômico procura sempre minorar o ilícito trabalhista com a desconfiguração do crime, quando um não tem a ver com o outro.
O caso em comento demonstra a gravidade da situação jurídica e social em que o país se encontra, nestes tempos ultraliberais, onde, para além dos políticos, magistrados nitidamente sem escolaridade em direito do trabalho ocupam assento nos tribunais superiores, tendo que lidar com matéria contra a qual parecem nutrir nítido menosprezo. Mais uma vez, é preciso haver multidisciplinaridade nestas cortes, a bem da sociedade brasileira. Há uma constituição que valoriza o trabalho e determina a construção de uma sociedade justa e solidária. É preciso superar esse ciclo. E rápido.
Referências
1. Disponível em: <https://gauchazh.clicrbs.com.br/colunistas/mario-corso/noticia/2021/02/a-era-do-homem-comum-ckl9g83yr0023019w9nhknbxf.html> e <https://brasil.elpais.com/brasil/2017/10/23/ opinion/1508779830_207798.html>.
2. Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2017-10/discussao-sobre-trabaho-escravo-nao-deve-ser-ideologizada-diz-gilmar-mendes>.
3. Verçosa, Alexandre Herculano. Manejo inadequado da analogia e da teoria dos precedentes em matéria trabalhista. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2023-jun-24/alexandre-herculano-teoria-precedentes-materia-trabalhista>.
4. Verçosa, Alexandre Herculano. A Justiça do Trabalho ignora o STF? Ou o STF ignora o Direito do Trabalho? Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2023-ago-24/alexandre-vercosa-justica-trabalho-ignora-stf>.
5. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/09/vice-de-bolsonaro-mourao-critica-13º-salario-e-fala-em-reforma-trabalhista-seria.shtml> e <https://www1.folha.uol.com.br/folha/dimenstein/ gilberto/gd080503.htm>.
6. Ad exemplum: <https://www.estadao.com.br/politica/blog-do-fausto-macedo/pf-buscas-desembargador-sc-resgate-vitima-trabalho-analogo-escravidao-20-anos/>
7. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/internacional/2021-01-14/madalena-escrava-desde-os-oito-anos-expoe-caso-extremo-de-racismo-no-brasil-do-seculo-xxi.html> e <https://www.youtube.com/watch?v=UAqRDb8fKPs>.
8. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2023-abr-04/domestica-mantida-situacao-analogaescravidao-recebera-800mil>.
9. Disponível em: https://ultimosegundo.ig.com.br/policia/2023-06-06/desembargador-alega-que-manteve-mulher-surda-em-casa-por-ato-de-amor-investigacao-escravidao.html.
10. Disponível em: https://www.terra.com.br/nos/desembargador-investigado-por-escravizar-pessoa-surda-recebeu-r-477-mil-em-2023,5ba2a15338fcb5df463d7c46f5506e0fcdl3ºezc.html?utm_source= clipboard>.
11. Rede Globo. Fantástico 10/09/2023. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=-3ACaYRC9g8.
12. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2021-07-12/andre-mendonca-o-nome-terrivelmente-evangelico-para-o-stf-de-bolsonaro.html.