1. Muitas décadas terão de transcorrer para que possa ser avaliado, pela totalidade de seus efeitos nocivos, tanto no estudo como na aplicação do Direito, o resultado dos movimentos segmentários que perseguiram propósitos de suposta equalização, de militância arrivista (mas dita filantrópica), de ressurgência do idealismo kantiano e – principalmente – de reivindicação identitária sob os auspícios mal disfarçados de um cristianismo primitivo, em que os devotos procuravam a expiação de alguma culpa alheia, ainda irremediada.
2. O patrocínio desse pensamento segmentário, sempre visando à formação de clientelas, vem de longe e sua raiz mais profunda está presa ao conceito latino dos beati possidentes, ou seja, dos que se tornaram bem-aventurados por serem possuidores.
Parece que, num tempo incerto ou pouco lembrado da evolução da cultura romana, a expressão surgiu em relação à língua latina, considerada então, de um ponto de vista construído sobre inequívoco etnocentrismo, como instrumento precioso no processo de civilização.
3. No curso da história vieram outros usos com efeito mais geral. O Direito Civil Romano logo empregou a expressão para se referir ao estudo da posse de bens que, tendo sido definida já na Antiguidade como fato jurídico, e não como direito de domínio, privilegiava os possuidores quando pleiteavam a propriedade plena ou ingressavam em litígio, uma vez que estavam assegurados no mando e uso sobre o bem já possuído.
Com o cristianismo veio a tradução dos Evangelhos para o latim e a beatitute passou a ser reconhecida no plano espiritual, não relacionada aos bens materiais, de modo que os despojados destes é que passaram a ser os beati pauperes spiritu, ou os bem-aventurados pobres de espírito.
A crueza do que foi traduzido, certamente pela variação de significado que veio a ter ‘pobres de espírito’, mudou o traslado para ‘humildes’ e outras palavras assemelhadas, que guardavam sentido mais piedoso.
4. Mas, outros usos vieram e a variação ainda não parou. O chanceler prussiano Otto Von Bismarck referiu-se a beati possidentes, com o sentido de serem aqueles que têm a virtude de produzirem fatos politicos consumados.
Isso estava bem adequado ao seu uso do poder para promover uma guerra contra a França, invadindo aquele país e depondo o imperador Napoleão III, e – no mesmo ano de 1870 – realizar a unificação da Alemanha, que era um conjunto de reinos e principados autônomos, para formar o 1º Reich, sob o rei da Prússia, da dinastia dos Hohenzollern.
5. Ainda sob essa perspectiva do fato consumado, quando a Alemanha embarcou na Revolução Industrial, Bismarck adiantou-se e negociou com o famoso advogado e militante político, que representava a maioria dos sindicatos nascentes do operariado, Ferdinand Lassalle, o início da implantação na Europa das leis de conteúdo trabalhista e previdenciário.
Lassalle teve uma vida rocambolesca, pois participou da formação da Associação Internacional dos Trabalhadores e, desde a substituição do nome da “Liga dos Justos”, na Inglaterra, do movimento que passou a ser chamado de comunista, mas rompeu com seus conterrâneos Marx e Engels, ainda que sem perder nada do prestígio junto ao operariado alemão.
Ressentido com a dissenção, Marx escreveu que ele era um judeu africano, daqueles que se uniram ao contingente de Moisés, quando profeta saiu do Egito com suas doze tribos. Portanto, de outro credo, um apóstata.
Exatamente para melhor informar à sua clientela, Lassalle escreveu um panfleto que até hoje pode ser lido com proveito, “O Que é uma Constituição?”. Também teve vida afortunada, recebendo o patrocínio econômico de uma aristocrata viúva, sua cliente e amante, e - por fim – foi abatido em um duelo de honra.
6. Talvez esta sinopse ajude a entender um pouco sobre o mar de sargaços que estamos atravessando no âmbito jurisdicional, especificamente, e institucional no que diz respeito ao exercício da cidadania na sua ampla expressão política. Isto porque teremos de lidar com conceituações antigas, que se transformaram no curso da História, e com a intervenção de intérpretes que se destacaram, sendo responsáveis pelo redirecionamento do uso conceitual.
O nó cego que o Judiciário deu em si mesmo começou há algumas décadas, quando houve a perda progressiva do espírito de universalização.
Até então, todos os esforços de pesquisa, doutrina e jurisprudência se orientavam no sentido de dar o mesmo conteúdo à lei, como expressão jurídica, que era empregado na ciência, desde os seus primórdios, qual seja o resultado estável do exame de um fenômeno que pudesse ser universalizado.
7. Num dado momento, certamente reagindo à carga da rigidez positivista que começava a pesar, surgiu o Direito Alternativo.
Não tinha nenhuma base teórica e nunca se aprofundou na doutrina. O que se produziu doutrinariamente a respeito dele sempre teve o caráter de pregação.
O Direito Alternativo se propunha - em palavras tão compreensíveis como as que Ferdinand Lassalle empregou para mostrar as forças reais que sustentam uma Constituição -, a ver as coisas sob outro ângulo e, obviamente, isso queria dizer o ângulo da subjetividade, da inspiração, e – em seguida – do ativismo e da militância.
Nunca mais houve solidez na coordenação interpretativa, coerência jurisprudencial e o que se chama de precedentes não passa de uma seleção aleatória de concordâncias dispersas, só ocasionalmente coincidentes, mas que todos encontrarão – quaisquer que sejam seus propósitos – em tamanha abundância e variação como antes só eram encontrados nas citações dos inumeráveis cartapácios barrocos de Pontes de Miranda.
Mas agora é pior, pois não há sistema lógico nenhum. A Constituição vale pelo que esconde, não pelo que revela. A lei nada mais é do que uma geringonça que está à espera de uma validação, que será dada ou não quando alguém quiser furtar-se a ela. Portanto, a lei passou a ser um simples sinalizador para quem precisa escapar do seu regime.
Tudo isso porque foi então recuperado – embora nunca confessado – o espirito visitador dos beati possidentes.
8. Nada de universalização, tudo pela particularização, parece ter sido a palavra de ordem que surgiu desde então.
Nunca se saberá se os ‘alternativos’ se deixaram levar pela proximidade da raiz etimológica ou até da prosódia e criaram um comando subconsciente, um ‘parti-pris’, um ‘leitmotif’ que relacionou a antiga expressão beati possidentes a outras acepções, diferentes daquelas que que ela sofreu na História, desta vez para acentuar o que agora tem a ver com o sentido de uso comum das palavras beato, beatitude e beatífico, mas sob o risco de, prosseguindo nesse caminho, chegarem a beócio...
7. Vencido o Direito Alternativo, pelo peso de sua própria inconsistência, o seu completo desaparecimento deu origem a uma nova forma difusa, mas cuja prática está disseminada, o direito identitário.
A nova tendência, que também retrocede por décadas, agora particulariza a neo-hermenêutica com base na identificação do pleito pelo seu propósito, na questão posta em causa e no reconhecimento dos interessados, pois esses são os padrões novos utilizados para a interpretação.
Toda a longa construção feita no correr dos tempos, as descobertas, a produção intelectual prodigiosa, a criação de institutos e de escolas de prestigio que levavam o nome de seus expoentes, como a de Bartolo, ainda na Bolonha do período medieval, onde se situa a mais antiga universidade da Europa, as sínteses conceituais... tudo, tudo perdido no pântano do esquecimento e da deformação.
O que interessa agora é a suposta relevância de uma questão proposta, sua alegada prioridade, a simpatia por atender os interesses envolvidos e até mesmo o estrépito público - a que os juízes foram educados para se tornarem indiferentes, já que deveriam abordar os litígios com objetividade -, passou a ser um importante sinalizador de comportamento, a ponto de serem alguns juízes e muitos ministros que o provocam para se promover, quando fazem da neo-hermenêutica o seu grande trunfo.
Mesmo quando se reconhece sem dificuldade a existência de movimentos sociais e políticos reivindicatórios, parece ser obvio ao julgador mediano que eles só teriam a ganhar se aproveitassem o acervo conceitual construído por milênios, ao invés de destruí-lo, como os beatos fazem.
8. Com o abandono desse acervo conceitual, saíram de cena as construções teóricas de ‘classe social’, ‘estamento’, ‘lumpesinato’, ‘fato social’, ‘sistema’, ‘distância social’, ‘tipologia’, ‘campesinato’, ‘operariado’, ‘isenção’, ‘partidarismo’, ‘precariado’, ‘representação democrática’, ‘regime’, ‘nomenklatura’, ‘participação decisória’, ‘nacionalidade’, ‘ascendência histórica’, ‘repressão’.... e, da grande fragmentação resultante, adveio a formação de novos quadros de militância difusa, com seus condottieri, uma vez que a defesa de interesses de grupos dispersos que buscam o reconhecimento de uma identificação social própria e irredutível, quando pretendem encontrar no espaço social comum um compartimento que é privativo seu, só poderia resultar no comando de neo-ocultistas que, vendo neoliberalismo em tudo, acabaram desenhando o cenário para a neodemocracia que estamos vivendo, ou seja, para o Estado de Exceção.
E o instrumento para chegar até ele tem sido a neo-hermenêutica.
A neo-hermenêutica, ditada por aqueles que ignoram solenemente as regras e técnicas da única hermenêutica estruturada, construídas pela dogmática jurídica através dos tempos, passou a ser fiscalizada pelo CNJ, órgão criado com outra finalidade, qual seja a de (a) verificar e coibir irregularidades administrativas nos tribunais brasileiros e (b) aplicar sanções a órgãos e pessoas incursos nessas irregularidades.
O CNJ virou, de um lado, ordenador de despesas, sem estar autorizado por lei, e mesmo tendo uma alentada e custosa burocracia já instalada em condições de nobiliarquia, ainda conseguiu agora a criação de mais 70 cargos de funcionários, que irão bisbilhotar a vida funcional e privada dos magistrados, à procura de desvios; de outro lado, transformou-se em uma STASI, uma TCHEKÁ, uma NKVD, uma KGB, uma GESTAPO, um DOPS... e investiga a esmo, procura culpados de sua escolha, persegue até ex-juízes, e os “alvos” não são localizados por motivos de sua atuação funcional irregular, mas por preferências políticas, por recusa de submeter o seu livre convencimento a comandos rotinizados ou de conteúdo dúbio e até os manifestamente ilegais, por declarações públicas ou privadas que deram, por opiniões pessoais que não se arranca de ninguém sem sufocar a voz. O conhecido poeta e teatrólogo alemão Bertolt Brecht já disse quando isso acontece, e apontou bem qual é a nova condição que aí se impõe.
Nunca houve em tempo recente um ‘comando de exclusão’ tão empoderado, que atua dia-a-dia, com o custoso, descontrolado e insaciável apetite persecutório, como o CNJ hoje. E, no entanto, quando foi criado, despertou grandes esperanças de, com sobriedade, acabar com a malversação e as irregularidades dentro de tribunais, cumprindo lembrar que então estava bem presente o vergonhoso “Caso Ladislau”, ocorrido em São Paulo.
E, no entanto, nunca foram tantos os casos de desvios de conduta, tráfico de influência, advocacia administrativa, ou por interposta pessoa, pagamentos não previstos em lei, impedimento funcional não reconhecido... e toda a sorte de abusos, particularmente na cúpula, segundo publicações da imprensa tradicional, que os beati possidentes não vêem e nunca viram, pois diante disso tudo só manifestam seu silêncio obsequioso. Não se importam com isso, pois seu ‘foco’ é outro...
9. Como os grupos dos beati possidentes também desconhecem a verità effetuale do Poder, que Maquiavel apontou há quinhentos anos, eles precisam de gestores para o seu grande festival das convivências particulares, sem nenhum regime universalizante.
Daí terem chamado para comandar a cena pessoas absolutamente inconfiáveis, cujo único atributo é o de, como disse Camões no seu grande épico, contar “com forças e poder em que está posto”.
Enquanto os seguidores (ou indisfarçados súditos) apenas entoam o que o mesmo vate lusitano apontou:
“Por vos servir, a tudo aparelhados
De vós, tão longe, sempre obedientes
A quaisquer vossos ásperos mandados
Sem dar resposta, prontos e contentes.”
10. O nó cego que o Judiciário do Brasil atou sobre si mesmo é explicável. Houve uma longa preparação, ensaiada sob várias regências, e ela não poderia encerrar seu enredo sem produzir nenhum outro resultado, que não fosse o famoso “estado a que chegamos”.
Já tínhamos sido advertidos por antigos pensadores do Século XIX de que as forças sociais que se fazem dominantes não se retiram do palco da História sem queimar seu último cartucho. Hoje, no Brasil, a nomenklatura pretende cumprir o papel da intelligentsia, mas – engessada em seus propósitos fisiológicos – não tem a capacidade para usar a liberdade para criar a transformação.
Todavia, foi acrescida uma artimanha, uma fraude, um engodo: a permanência daquelas forças se justifica nos dias de hoje em nome da neodemocracia, sustentada pelos beati possidentes, e suas variações de beatificados cristianamente, isto é, sob o espírito da culpa e da redenção, que devem ser resgatados.
A neodemocracia também é sustentada pelos partidários da subjetividade do real (já que se perderam definitivamente de Hegel) e do abandono da única significação que dá suporte à ideia de lei, qual seja a regularidade e universalidade da verificação de um fenômeno.
Por fim, como é próprio ao arbítrio, a permanência da nova ordem decorre da estrutura corporativa, que tem acesso ao conhecimento de tudo isso, mas prefere o obsequioso silêncio, pois a soma do que teria a ganhar em favor de todos, não vale o risco de perder para si mesmo o reconhecimento material irrisório e o fugaz, segundo a disporia adotada.
Quem desatará o nó cego? Quem desatará o nó cego? Quem desatará o nó cego?
A repetição da pergunta é porque não encontramos a resposta, mas – admitindo isso – sabemos que superamos em definitivo a incredulidade sobre o sinistro papel dos condottieri, pois ficou bem claro que ela agora tornou-se insustentável, indisfarçável, insuportável.
A última e mais confortadora lição que fica de tudo isso é que, à maneira dos mestres orientais, sobretudo os chineses, que foram grandes céticos, nunca se deve fazer alguma coisa em nome de outra, porque assim jamais realizaremos o nosso desejo e, com grande risco, estaremos submetendo nosso iguais a um efeito que nem mesmo nós escolhemos porque queríamos.