Resumo: O tema, o princípio do devido processo legal como garantia da dignidade humana, é um dos fundamentos essenciais de qualquer sistema jurídico que busca garantir justiça e proteção dos direitos individuais. Enfatizou-se mostrar que em sua raiz, este princípio exige que todas as pessoas, independentemente de suas circunstâncias, tenham acesso a um processo legal justo e imparcial quando enfrentam acusações criminais ou litígios civis. Objetivou-se também apontar que esse princípio não está apenas ligado ao direito a um julgamento justo, mas, além disso, se entrelaça profundamente com outro pilar crucial da jurisprudência moderna: a dignidade humana.
Palavras-chave: Devido Processo Legal. Dignidade da Pessoa Humana. Direito Natural. Direitos Humanos. Estado Democrático de Direito.
Sumário: Introdução. 1. Visão Doutrinária de Princípios Gerais do Direito. 2. Diferenciação entre Princípio e Regras. 3. Evolução Histórica. 4. A Natureza Jurídica do Devido Processo Legal. Conclusão. Referências.
Introdução
O presente artigo tem como objetivo enfocar a importância do princípio do devido processo legal como direito inerente e primordial à dignidade humana, que transcende as barreiras ideológicas e culturais. Ele estipula que todos os seres humanos têm um valor intrínseco e inalienável, independentemente de sua origem étnica, crenças religiosas, status social ou histórico criminal. A relação entre o princípio do devido processo legal e a dignidade humana é indissociável. Isso ocorre porque um processo legal justo é a pedra angular para garantir que a dignidade de uma pessoa seja respeitada, protegida e preservada em todas as fases do sistema jurídico.
1. Visão Doutrinária de Princípios Gerais do Direito
Para que se tenha a ideia de um sistema e de um ordenamento é preciso de um suporte lógico, de mandamentos basilares, de fundamento, de elementos de estruturação e coesão, os Princípios.
A categoria2 Princípio é muito forte no ordenamento jurídico uma vez que exerce uma função importantíssima, pois orientam, condicionam e iluminam a interpretação das normas jurídicas. Nesse sentido vamos adotar o conceito operacional3 do jurista Paris( 2009, p. 35-34):
“Por definição, princípio é mandamento nuclear de sistema, ou seja, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critérios para a sua exata compreensão e inteligência, exatamente, por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo no que lhe dá sentido harmônico. São os pensamentos diretores de uma regulação jurídica, devendo ser utilizados como critérios superiores de interpretação das demais normas, orientando sua aplicação ao caso concreto”.
O emprego da palavra Princípios4 na seara jurídica é muito usado, sendo objeto de estudo de vários doutrinadores, gerando uma confusão doutrinária. Assim faremos um breve estudo dos Princípios Gerais do Direito como parte do ordenamento jurídico5 no aspecto axiológico e teleológico e a sua aplicação no Direito.
Entende-se Espíndola (1999, p.53) que o termo princípio é muito discutido em vários ramos da ciência, sendo a essência o limite e o ponto de partida das demais ideias:
“(...) a ideia de princípio ou sua conceituação, seja lá qual foro campo do saber que se tenha em mente, designa a estruturação e um sistema e ideia, pensamentos ou normas por uma ideia mestra, por um pensamento chave, por uma baliza normativa, donde todas as demais ideias, pensamentos ou normas derivam, se reconduzem e/ou subordinam”.
Segundo o jurista brasileiro Reale ( 1990, p.5) princípios são:
“(...) verdades ou juízos fundamentais, que servem de alicerce ou de garantia de certeza a um conjunto de juízos, ordenados em um sistema de conceitos relativos à dada porção da realidade. Às vezes, também se denominam princípios certas proposições que, apesar de não serem evidências, são assumidas como fundantes da validez de um sistema particular de conhecimentos, com seus pressupostos necessários”.
Nestas acepções, supracitada, percebe-se que os princípios não compreendem apenas os fundamentos jurídicos, mas toda a premissa jurídica emanada da cultura jurídica mundial. E também há um consenso de que os princípios são normas que visam proteger a dignidade humana, a liberdade e a igualdade.
Assim, os princípios elevam-se ao maior grau da escala normativa, tornando a pedra fundamental do sistema jurídico de um Estado Democrático de Direito.
No entendimento do jusnaturalista6 Valdez citado por Bonavides ( 2002, p.234) diz os princípios gerais de Direito: “são princípios de justiça, constitutivos de um direito ideal”.
Já o jusfilósofo pertencente à corrente positivista Bobbio (1999, p.153) concebe os princípios como normativos. Segundo ele:
“Os princípios gerais, ao meu ver, são apenas normas fundamentais ou normas generalíssimas do sistema. O nome “princípios” induz a erro, de tal forma que é antiga a questão entre os juristas saber se os princípios gerais são normas. Para mim, não restam dúvidas: os princípios gerais são normas como todas as outras. E essa também é a tese sustentada pelo estudioso que mais amplamente se ocupou do problema, Crisafulli. Para sustentar que os princípios gerais são normas, os argumentos são dois, e ambos válidos: em primeiro lugar, se são normas aquelas das quais os princípios gerais são extraídos, mediante um procedimento de generalização sucessiva, não há motivos para que eles também não sejam normas: se abstraio de espécies animais, obtenho sempre animais, e não flores ou estrelas. Em segundo lugar, a função pela qual são extraídos e usados é igual àquela realizada por todas as normas, ou seja, a função de regular um caso. Com que objetivos são extraídos em caso de lacunas? Para regular um comportamento não regulado, é claro , mas então servem ao mesmo objetivo que servem normas expressas. E por que não deveria ser normas?”
Entre os pós-positivistas a concepção axiológica ganha força nas Constituições, destacando-se nessa corrente o jurista Dworkin que trata os princípios como direito. Como bem retrata Bonavides (2002, p.238) acerca do antipositivismo de Dworkin:
“A par da reviravolta antipositivista de Dworkin, num momento culminante para o advento do pós-positivismo, urge, tocante aos princípios, acompanhar a escalada e o desdobramento da doutrina, desde a tibieza inicial de Betti e Esser em reconhecer-lhes a normatividade, até as posições mais recentes e definitivas do constitucionalismo contemporâneo e seus precursores, que erigiam os princípios a categorias de normas, numa reflexão profunda e aperfeiçoadora”.
Portanto, na atualidade os princípios podem ser considerados normas, pois caso contrário não teria importância para o Direito atual, estagnado numa cogitação filosófica e abstrata, alheio ao ordenamento jurídico.
Com o pós-positivismo os princípios adquiriram efetividade normativa, sendo que as Constituições das últimas décadas do século XX focalizaram a hegemonia axiológica dos princípios.
Assim, a partir do momento que a convivência social começou a ser modelada pela valorização da dignidade humana acentuam-se os valores da pessoa no seu mais elevado grau de juridicidade e se estabelece o primado do homem no seio da ordem jurídica. Nessa ótica sucede a relação que se reconciliam o Cidadão, a Sociedade e o Estado, transformando a Constituição em ordenamento jurídico fundamental da sociedade e não apenas do Estado ( BONAVIDES, 2002).
No ordenamento jurídico brasileiro entre os juristas há a consciência da impossibilidade da legislação alcançar a esfera fática do agir humano, o que causa lacunas. Nesses casos a lei autoriza o juiz a socorrer-se dos Princípios Gerais do Direito para solucionar casos não expressos ou omissos na lei, que está disposto no artigo 4ª da Lei de Introdução ao Código Civil7: “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito”.
Segundo Grau (2015, p.95) princípios jurídicos podem ser tomados em dois sentidos como princípios positivos de Direito como princípios gerais do Direito.
Na visão de Jeammaud citado por Grau (2015,pp. 95-96) distinguem-se os princípios gerais do direito daqueles que se denominam princípios positivos do direito. Estes últimos não podem ser valorados segundo a posição dicotômica de falso ou verdadeiro, próprio da ciência jurídica, mas, sim, segundo as dicotomias analíticas do válido ou inválido, vigente ou não, eficaz ou ineficaz, adequadas à análise do Direito enquanto sistema de normas positivas. Os princípios gerais do direito, salienta JEAMMAUD, são utilizados inúmeras vezes pela jurisprudência para fundamentar decisões. Podem ser valorados segundo a ideia do falso e do verdadeiro, conforme as análises descritas na ciência jurídica.
Por isso, os Princípios Gerais do Direito suprem as lacunas, mas não se limita apenas a isso, tem uma radiação bem ampla.
Doravante, os Princípios Gerais do Direito formam um sistema coerente e harmonioso, como deve ser o ordenamento jurídico, pois só assim será capaz de dar um norte para solucionar as controvérsias nas relações sociais.
De fato, os Princípios Gerais do Direito diante da complexidade do ordenamento jurídico, com todo o postulado, se torna um caminho potencialmente vigoroso no fundamento do Direito.
Cabe analisar, juridicamente, a diferenciação entre Princípios e Regras, que no universo jurídico se torna muito relevante, pois muito se discute entre os doutrinadores a normatividade dos Princípios.
Destarte, no tópico a seguir faremos essa reflexão acerca da distinção entre Princípios e Regras, motivados pelos pensamentos de alguns doutrinadores do Direito que nos fornecerão possíveis respostas a celeuma da dogmática jurídica.
2. Diferenciação entre Princípio e Regras
A gênese de que um princípio jurídico é norma de Direito, na evolução histórica, distinguiu-se os princípios das normas, tratando-as como categorias pertencentes a tipos conceituais distintos. Porém, na atual dogmática constitucional a diferença entre os princípios e regras tornou temas de discussão entre doutrinadores.
Em nosso ordenamento constitucional as normas não podem ser caracterizadas como um monte de regras que se superpõem. Existe harmonia, ou seja, um sistema sem conflito, pois valores se relacionam mantendo a coerência.
Consoante ao pensamento o jurista Mattos (2009, p. 204) ressalta que a Carta Magna é um ordenamento suscetível de princípios e regras:
“A Constituição Federal de 1998 pode ser concebida como um sistema normativo aberto de princípios e regras. Trata-se de um sistema normativo, no sentido de que “a estruturação das expectativas referentes a valores, programas, funções e pessoas é feita através de normas”. É, além disso, um sistema aberto, porque é dotado de uma “estrutura dialógica”, isto é, de disponibilidade e de capacidade de aprendizagem para captar a mudança da realidade e para estar aberto às concepções cambiantes de verdade e de justiça. E é, de resto, um sistema de princípios e regras na medida em que as normas jurídico-constitucionais podem revelar-se sob forma de regras”.
A questão não se resume em dizer que regras e princípios são normas, mas saber a diferença entre os dois. Na lição de Mattos (2009, p. 205): “Tal distinção não é apenas gradual, segundo a qual os princípios são normas com um grau mais elevado de abstração ou generalidade que o das regras”.
Para Alexy (1993, p. 62) não podemos dizer que todos os princípios constitucionais são normas de natureza fundamental como também são direitos fundamentais. Segundo ele há uma diferença entre as normas de direito fundamental em nível abstrato e concreto:
“(...) abstractamente cuando se pergunta sobre la base de cuáles criterios una norma, indepedientemente de su pertenencia a un determinado orden jurídico o Constitución, puede ser identificada como norma de derecho fundamental, , (...) concretamente cuando se pregunta cuáles normas de un determinado orden jurídico o de una determinada Constitución son normas de derecho fundamentaly cuáles no”.
Nesse mesmo diapasão Alexy (1993, pp. 86-87) distingue mandamentos a serem otimizados e mandamentos para otimizar. Segundo ele, os mandamentos a serem otimizados são os objetos de ponderação e os mandamentos para otimizar são colocados em um meta-nível. Conclui dizendo que os princípios são objetos de ponderação e não mandamentos de otimização, mas mandamentos a serem otimizados, devendo ser realizados dentro das possibilidades jurídicas reais. E as regras são normas que se realizam se forem válidas ou não, ou seja, executa o que elas ordenam.
Os princípios exercem uma função orientadora da margem a interpretação e abre a possibilidade de aventar exposições novas no direito.
Destarte, preleciona Paris (2009, p. 39) sobre o papel que cumpre os princípios:
“Os princípios exercem funções de duas naturezas no ordenamento jurídico: a) os que exercem função ordenadora se vinculam, mais essencialmente, por servirem de diretrizes para a fixação de critérios de interpretação e de integração do Direito, dando coerência geral ao sistema; b) os que atuam com função prospectiva: os princípios têm capacidade de impor sugestões para a adoção de formulações novas ou de regras jurídicas mais atualizadas, inspirados na ideia do aprimoramento do direito aplicado”.
Na lição de Alexy ( 1993, p. 44), a distinção entre princípios e regras não se faz com o método do tudo ou nada, pois existem as consequências e toda interpretação também gera consequências, sendo que ambos permitem considerações concretas e individuais. Em relação aos princípios é aplicado sem obstáculo institucional. Já as regras só podem se realizar com fundamentação no sentido de que devem ser seguidas. Tanto os princípios como as regras devem usar o método da ponderação, uma vez que as normas têm características temporárias sendo superada por questões relevantes diante do caso concreto.
Acentua Alexy (1993, p.86), a distinção entre princípios e regras fica mais clara quando há colisões entre princípios e conflitos de regras. As regras não se cumprem pela metade ou se cumpre ou não, não meio termo. Também, segundo ele, duas regras contraditórias não podem ser aplicadas ao mesmo fato, ou seja, uma deve ser eliminada. Em relação ao princípio, quando houver conflito ao caso concreto, o intérprete deverá usar da hermenêutica para ponderar o peso de cada um e usar o princípio que deve ser aplicado ao caso.
Neste sentido preceitua Silva (2003, pp. 610. - 611) com respaldo no pensamento de Alexy:
“(...) princípios são normas que estabelecem que algo deve ser realizado na maior medida possível, diante das possibilidades fáticas e jurídicas presentes. Por isso são eles chamados de mandamentos de otimização. Importante, nesse ponto, é a ideia de que a realização completa de um determinado princípio pode ser - e frequentemente é - obstada pela realização de outro princípio. Essa ideia é traduzida pela metáfora da colisão entre princípios, que deve ser resolvida por meio de um sopesamento, para que se possa chegar a um resultado ótimo. Esse resultado ótimo vai sempre depender das variáveis do caso concreto e é por isso que não se pode falar que um princípio P1 sempre prevalecerá sobre o princípio P2 - (P1 P P2) -, devendo-se sempre falar em prevalência do princípio P1 sobre o princípio P2 diante das condições C - (P1 P P2) C”.
Nessa mesma esteira segue o pensamento de Dworkin (2007, pp. 39. e 46), segundo o qual, a distinção entre princípios e regras jurídicas é de natureza lógica. As regras devem ser aplicadas à maneira do tudo-ou-nada. Diante do fato, se os pressupostos estão de acordo com as regras, sendo válida(s), é (são) aplicada. Já os princípios têm uma dimensão de peso ou importância. Quando o intérprete tiver que resolver conflito de princípios terá que analisar o peso relativo de cada um deles. O jurista Virgílio Afonso da Silva Silva (2003, p.610) comenta Dworkin sobre a eficácia do princípio acerca do peso:
“(...) as regras ou valem, e são, por isso, aplicáveis em sua inteireza, ou não valem, e, portanto, não são aplicáveis. No caso dos princípios, essa indagação acerca da validade não faz sentido. No caso de colisão entre princípios, não há que se indagar sobre problemas de validade, mas somente de peso. Tem prevalência aquele princípio que for, para o caso concreto, mais importante, ou, em sentido figurado, aquele que tiver maior peso”.
Sobre a distinção entre princípio e regras são oportunas as observações feitas por Barroso ( 2003, p.15):
“Regras são, normalmente, relatos objetivos, descritivos de determinadas condutas e aplicáveis a um conjunto delimitado de situações. Ocorrendo a hipótese prevista no seu relato, a regra deve incidir, pelo mecanismo tradicional da subsunção: enquadram-se os fatos na previsão abstrata e produz-se a conclusão. A aplicação de uma regra na modalidade tudo ou nada: ou ela regula a matéria em sua inteireza ou é descumprida. Na hipótese do conflito entre duas regras, só uma será válida e irá prevalecer. Princípios, por sua vez, contêm relatos com maior grau de abstração, não especificam a conduta a ser seguida e se aplicam a um conjunto amplo, por vezes indeterminado, de situações. Em sua ordem democrática, os princípios frequentemente entram em tensão dialética, apontando direções diversas. Por essa razão, sua aplicação deverá se dar mediante ponderação: à vista do caso concreto, o intérprete irá aferir o peso de cada princípio e deverá desempenhar na hipótese, mediante concessões recíprocas, e preservando o máximo de cada um, na medida do possível. Sua aplicação, portanto, não será no esquema tudo ou nada, mas graduada à vista das circunstâncias representadas por outras normas ou por situações de fato”.
Observamos a amplitude que possui os princípios e o leque que se abre quando aplicado ao fato concreto, pois exige um grau maior de abstração, reflexão e interpretação que se forma com o choque dialético dos princípios. Porém, como esclarece o texto, o intérprete deverá usar da ponderação, discernindo o grau ou peso que cada princípio deve ser aplicado ao fato.
Salienta-se que o princípio é norma e que existem princípios que podem ser explícitos ou implícitos, o que não acontece às regras que devem ser positivadas. É preciso tomar cuidado para o abuso e a banalização que ocorre entre os operadores do direito que, devido ao grau de subjetividade que os princípios possuem, exageram em suas argumentações de defesa esperando algum resultado favorável, sendo que as regras em muitos casos são suficientes para a solução do caso concreto.
No alvitre de Bonavides ( 2002, p.283) os princípios preenchem três funções de extrema importância, mostrando assim a dimensão axiológica que possui (em): a) a de ser fundamento da ordem jurídica; b) função orientadora do trabalho interpretativo; c) a de fonte em casos de insuficiência da lei e do costume.
Os princípios estão relacionados a valores, que podem se confrontar e ser aplicado em graus distintos, tornando claro o que é devido. A justiça e a paz fazem parte do objetivo almejado no processo e do Estado democrático de Direito (MATTOS, 2009).
A luz do expendido, podemos concluir que os princípios são de vital importância para o Estado Democrático de Direito, a efetivação e positivação possibilitou a aplicação de um processo jurídico justo na defesa da dignidade humana, afastando o dogmatismo jurídico que é prejudicial à interpretação da lei.