3. Evolução Histórica
O devido processo legal tem sua gênese na expressão britânica due processo of law. Em 1066 os ingleses foram invadidos pelos normandos, vindos da França e comandados pelo Duque William da Normandia que destruiu o reinado dos britânicos. Seu reino foi administrado com rigor, porém Duque William e seus barões, bem como seus sucessores, para evitar possíveis rebeliões concediam cartas de franquias.
O rei Ricardo Coração-de-Leão, que reinou entre 1189 a 1199, participou da terceira cruzada combatendo os muçulmanos considerados infiéis. Ao retornar da Palestina foi preso na Áustria, e seus algozes exigiram resgate. Aproveitando esse momento, seu irmão, o príncipe John, chamado de Sem-Terra (lackland), usurpou do poder e incentivou rebeliões alegando que seu irmão jamais voltaria. Também passou a exigir exorbitantes tributos que gerou revolta entre os barões.
Pontes de Miranda (1999, p.11) relata a tirania do reinado de João Sem-Terra e sua administração atrapalhada que fez os barões insurgirem:
“Os desastres, cincas e arbitrariedades do novo governo foram tão assoberbantes, que a nação, sentindo-lhes os efeitos envilecedores, se indispôs, e por seus representantes tradicionais reagiu. Foram inúteis as obsecrações . a reação era instintiva , generalizada; e isso, por motivo de si mesmo explicito: tão anárquico fora o reinado de João, que se lhe atribuía outrora, como ainda nos nossos dias se repete, a decadência, então, de toda a Inglaterra. Atuou sobre todas as camadas sociais; postergou regras jurídicas sãs de governo; descurou dos interesses do reino; e, a atuar sobre tudo, desservindo a nobres e a humildes, ameaçava desnervar a energia nacional, que se revoltou”.
Alforriado, o rei Ricardo voltou a reinar, entretanto, pouco tempo depois morreu devido a um ferimento causado por uma flecha.
Seu irmão João Sem Terra assumiu o trono, e teve que aceitar a imposição dos barões ao concordar com os termos da declaração de direitos, que ficou conhecida como Magna Carta. Nesse documento o rei teria que respeitar os direitos, franquias e imunidades (PARIS, 2009) .
Dessa maneira que o princípio do due process of law 8 teve seus primeiros complementos, no direito inglês, à Magna Carta (Great Charter) do Rei João Sem Terra em 15-6-1215, quando os barões ingleses impuseram ao Rei assinar tal documento, jurando obedecê-la e aceitando a limitação de seus poderes (DALLARI, 2015). Nessa época, o direito de propriedade das terras conquistadas pertencia à realeza, mas o uso era distribuído entre os nobres. Contando com o apoio do clero, os nobres não suportaram as ingerências reais e pressionaram o Rei João Sem Terra para assinar a Magna Carta. Com esse documento delimitou o poder do rei referente à vida, à liberdade e à propriedade.
O princípio do due process of law foi de vital importância para a garantia dos direitos fundamentais, que foi firmado no artigo 39 da Magna Charta (MORAES, 2000):
“Nenhum homem livre será detido ou sujeito à prisão, ou privado dos seus bens, ou colocado fora da lei, ou exilado, ou de qualquer modo molestado, e nós não procederemos nem mandaremos proceder contra ele senão mediante um julgamento regular pelos seus pares ou de harmonia com a lei do país – um julgamento regular pelos seus pares ou de harmonia com lei do país – item 39”.
A expressão due process of law só foi utilizada pelos ingleses em 1354, no reinado de Eduardo III ( NERY JUNIOR, 2017) .
No decorrer do tempo due process of law foi adquirindo novos significados sem, contudo, perder o conteúdo processual. Passou de uma garantia para uma série de liberdades feudais para garantia do common law (PARIS, 2009).
Sir Edward Coke9 afirmou a supremacia da Magna Charta sobre todos os outros poderes do Estado, depois, alvitrou interpretações que incluía common law, the statute law, or custom law of England. Desta forma acrescentou no capítulo 39 não só a garantia de julgamento, mas também a garantia de um processo legal (PARIS, 2009).
Mais tarde a Petition of Rights de 1628 (PARIS, 2009) sob a liderança de Sir Edward Coke afirmou as garantias da liberdade, o documento dispunha: “(..) que o homem livre somente pode ser preso ou detido pela lei da terra, ou pelo devido processo legal, e não pela ordem especial do Rei sem qualquer acusação”.
À época sabe-se que existiam certas pessoas nomeadas como comissários e que detinham poder e autoridade para proceder conforme a justiça da lei marcial (PORTANOVA, 1999). Na petição, então, era pedido que nenhum homem livre fosse julgado por tais comissões10, que eram contrárias às leis e aos costumes do reino.
Esse documento garantia que nenhuma pessoa poderia ser presa sem uma justa causa, o que reafirmou o Capítulo 39 da Magna Charta.
A filosofia de Sir Edward Coke influenciou as 13 colônias inglesas na América. Muitos constituintes norte-americanos se inspiraram em um comentário de Sir Edward Coke sobre Magna Charta (PARIS, 2009).
Um dos casos mais intrigantes que abriu espaço para criação do controle da razoabilidade das leis encontra-se no julgado do caso Bonham11.Segundo a tese de Sir Edward Coke, se uma lei do Parlamento é contrária ao common law e a razão se torna nula. Assim, cabe aos tribunais o controle das leis conferindo uma interpretação (YOSHIKAWA, 2010).
Não se pode olvidar que na Inglaterra o due process of law tinha como característica a supremacia Parlamentar, limitando os poderes do Rei, ou seja, controle sobre o Rei e não sobre a legislação.
Os protestantes ingleses que aportaram em 1607 nas praias americanas da Virgínia levaram consigo as bases da Commow law. Na América inglesa a Common law não aceitava a supremacia do Parlamento. As ideias de Sir Edward Coke inspirou a admissão de constituições escritas juntamente com o pensamento e John Locke (PARIS, 2009).
Sir Edward Coke propunha um ideal de Estado em que os tribunais controlariam os atos o Rei e o Parlamento: “Coke via o common law – cujas bases se encontravam na Magna Carta – como uma limitação aos poderes reais e de outros governamentais incluindo o Parlamento”(Yoshikawa, p.98).
Em 1689, o Parlamento Britânico aprovou um documento com força de lei que ficou conhecido como Bill of Rights, que teve para muitos o sentido de uma nova Magna Charta. Pois, esse documento, era um ato declarando os direitos, as liberdades das pessoas e ajustando a sucessão da coroa ( DALLARI, 2015).
Várias constituições estaduais usavam a cláusula do devido processo legal com a expressão law of the land. Os colonos usavam law of the land e due process of law como sinônimo. A aparição da expressão due process of law surgiu na Declaração de Direitos do Estado de New York em 1777 em uma emenda, mas foi na Quinta Emenda à Constituição, como instrumento legal, que apareceu a cláusula (PARIS, 2009).
A Constituição Americana em 1791, inspirada no documento Bill of Rights, foi emendada e introduziu a avaliação de punições without due process of law, esse mesmo limite foi imposto aos Estados pela Emenda XIV:
Todas as pessoas nascidas ou naturalizadas nos Estados Unidos e sujeitas à sua jurisdição, são cidadãos dos Estados Unidos e do Estado em que residem. Nenhum Estado fará ou executará qualquer lei restringindo os privilégios ou imunidades dos cidadãos dos Estados, nem privará qualquer pessoa da vida, liberdade ou propriedade sem processo legal regular, nem negará a qualquer pessoa dentro de sua jurisdição a igual proteção das leis (MARTINS,2004).
Com a interpretação das emendas V e XIV, pela suprema corte americana, o due process of law adquire caráter substantivo e também processual.
O due process of law, no direito americano, passou a limitar o mérito das ações estatais. Foi o que ocorreu na emenda XIV (1868), que atrelou os Estados da Federação à cláusula do devido processo legal. Dessa maneira permitiu que a Suprema Corte Americana sob a presidência do Chief Justice Earl Warren, que pela sua atuação, através da interpretação dos princípios constitucionais, desenvolveu jurisprudência de proteção aos direitos civis, procedendo a integração racial nas escolas, restaurantes, hotéis, empregos e até no sistema eleitoral (MARTINS,2004).
Deste modo, a cláusula do devido processo legal no Direito Constitucional Americano num primeiro momento restringia a garantias de natureza processual, relativas a orderly proceedings, ou seja, procedimentos ordenados por princípios como a proibição de bill of attainder (considerar alguém culpado por um crime sem um julgamento justo que lhe garanta a ampla defesa), do ex post facto law (leis retroativas), da vedação da self incrimination (autoincriminação) e da double jeopardy (ser julgado duas vezes pelo mesmo crime) ( SAMPAIO,2003).
Com a introdução do devido processo legal, na vigência da XIV emenda, deu amparo substantivo aos direitos e liberdades civis que foi garantido no Bill of Rights. E pela interpretação da Suprema Corte Americana com critérios de razoabilidade originou-se a defesa dos direitos fundamentais contra ação irrazoável e arbitrária (SAMPAIO,2003).
Diante o exposto, concluímos que no primeiro momento a Carta Magna ao ser intuída em 1215, garantiu as liberdades individuais diante do poder público instituindo a garantia processual penal.
No segundo momento due process of law passa a ter caraterística processual geral como requisito da atividade jurisdicional.
Já no terceiro momento, com a interpretação da Suprema Corte Americana das Emendas V e XIV, due process of law passa a ter caráter substantivo.
4. A Natureza Jurídica do Devido Processo Legal
O princípio do due process of law é muito abrangente, dele emana todos os demais princípios constitucionais do processo que garante uma sentença justa. Devido a sua abrangência existem várias interpretações e posições filosóficas. Com o tempo o princípio due process of law foi tomando uma dimensão maior com as interpretações e jurisprudências, o grande engano é considerá-lo apenas processual. Assim, considerando corolário desses, vários direitos o integram.
Dentro dessa concepção, preceitua Nery Junior e Nery (2016, p.1146) :
“Trata-se do princípio mais importante do direito brasileiro, previsto já no caput da CF 5º, bem como na CF 5º LIV. Dele decorrem os demais princípios constitucionais. Devido processo legal significa, na verdade, devida adequação ao direito, tradução e conteúdo mais aproximado à cláusula oriunda do direito constitucional anglo-saxônico. A tradução mal feita, da expressão due process of law como sendo “devido processo legal” tem levado o intérprete a enganos, dos quais o mais significativo é o erro de afirmar-se que a cláusula teria conteúdo meramente processual. A cláusula se divide em dois aspectos: o devido processo legal substancial (substantive due process clause) e o devido processo legal processual (procedural due process clause)”.
Dessa forma, Bastos (2000, p.234) salienta que “O princípio se caracteriza pela excessiva abrangência e quase se confunde com o Estado de Direito. A partir da instauração deste, todos passaram a se beneficiar da proteção da lei contra o arbítrio do Estado” e conclui afirmando que: “É por isto que hoje o princípio se desdobra em uma série de outros direitos, protegidos de maneira específica pela Constituição”. E nesse mesmo diapasão Bastos (2000, p. 234) refere a importância que o princípio do devido processo legal tem quanto aos direitos do acusado para produzir sua defesa na persecução penal, assim diz:
No Estado Democrático de Direito o princípio due process of law fornece instrumentos processuais tutelares como: o direito a ação; o direito ao processo sem discriminação de parte; garantia de defesa; contraditório; duplo grau de jurisdição; do juiz natural; o princípio da publicidade dos atos processuais; a impossibilidade de utilizar-se em juízo prova obtida por meio ilícito; o postulado do juiz natural e do procedimento regular.
Também cabe reproduzir, aqui, a lição de Nucci ( 2015, p.72) sobre a importância processual e material do devido processo legal, e sua abrangência que engloba todos os princípios protetores do justo processo penal:
O devido processo legal, portanto, possui dois importantes aspectos: o lado substantivo (material), de Direito Penal, e o lado procedimental (processual), de Processo Penal. No primeiro, como já demonstrado, encaixa-se o princípio da legalidade, basicamente, além dos demais princípios penais. Quanto ao prisma e constate a culpa de alguém, em relação à prática de crime, passível de aplicação de sanção.
Na lição de Nery Junior (2017, p. 28) o princípio due process of law que era apenas uma tutela processual passa também a ter um aspecto substancial, ou seja, significa proteção à liberdade, à vida, à propriedade e contra os abusos individuais:
Genericamente o princípio do due process of law caracteriza-se pelo trinômio vida–liberdade-propriedade, vale dizer, tem-se o direito de tutela daqueles bens da vida em seu sentido mais amplo e genérico. Tudo o que disser respeito à tutela da vida, liberdade ou propriedade está sob a proteção da due process clause.
Esse trinômio garante a tutela os direitos fundamentais norteando a administração, o legislativo e o judiciário.
Destarte, o princípio due process of law tem como escopo a garantia das partes no exercício do direito de natureza processual, o que dá legitimidade a função jurisdicional.
Nesse sentido o jurista Hoyos( 1987, p. 65) afirma a eficácia do princípio due process of law como instrumento de defesa e como direito de ação:
“(...) como institución instrumental, que engloba una amplia gama e protecciones y dentro de la cual se desenvuelven diversas relaciones, sirve de medio de instrumento para que puedan defenderse efectivamente y satisfacerse los derechos de las personas, las cuales, en ejercicio de su derecho de acción, formulan pretensiones ante el estado para que éste decida sobre ellas conforme al derecho”.
Dessa maneira o princípio do devido processo legal concerne na guarda dos direitos fundamentais como pertinentes a integridade física e moral, seja no sentido da vida, liberdade, propriedade, igualdade e a segurança oriundas da relação jurídica, fruto do convívio social.
Já alguns doutrinadores entendem que o princípio do devido processo legal é genérico, sendo as demais espécies. Desse modo, fica caracterizado que os outros princípios emanam do devido processo legal.
Sobre a temática em foco, impende trazer-se à colação o ensinamento de Paris (2009, p. 127) que, segundo o mesmo, o princípio do devido processo legal é dinâmico e não está engessado, pois:
“O significado do devido processo legal não é estático, não podendo, assim, ser aprisionado dentro dos limites de uma mera fórmula. O princípio é produto da história, da razão, do fluxo das decisões passadas e da inabalável confiança na democracia. Assim, due process of law não é instrumento mecânico, muito menos padrão; é um processo”.
A natureza do devido processo legal surge de um sistema democrático-liberal, garantindo a liberdade individual e funcionando na consecução dos fins sociais e coletivos constitucionalmente proclamados.
Disto decorre, assegura Bastos (2000, p.261), que: “O direito ao devido processo legal é mais uma garantia do que propriamente um direito”. Isso quer dizer que o devido processo legal pretende proteger o cidadão contra ação arbitrária do Estado
Nesse sentido, Moraes ( 2000, p.255) entende:
“O devido processo legal configura dupla proteção ao indivíduo, atuando tanto no âmbito material de proteção ao direito de liberdade e propriedade quanto no âmbito formal, ao assegurar-lhe paridade total de condições com o Estado-persecutor e plenitude de defesa (...)”.
Bastante esclarecedora é a afirmação de Paris (2009, pp.76-77) embasado na lição de Carlos Roberto de Siqueira Castro segundo o qual o princípio do devido processo legal é um dos mais importantes e antigos da ciência jurídica e que até hoje está presente em diversos ordenamentos jurídicos.
O devido processo legal compõe um conjunto de garantias que assegurem às pessoas o exercício de suas faculdades e poderes processuais que são indispensáveis ao exercício da jurisdição.
Neste entendimento, o princípio do devido processo legal atua de acordo com a obediência à lei para ter um julgamento adequado e justo, protegendo todos os indivíduos de qualquer discriminação.
Preleciona Ristow ( 2007, p.65) que o devido processo-legal assegura o gozo dos direitos e uma vez impedidos, permite o direito de ação ao juiz competente para efetivá-los:
“(...) o princípio do Due Process of Law é a única garantia contra ação arbitrária do Estado, que assegura um julgamento regular de acordo com as leis vigentes, estabelecendo, num primeiro momento, meios efetivos de controle da constitucionalidade as leis [Substantive Due Process of Law] e num segundo momento, da jurisdicionalidade estatal [Procedural Due Process of Law], a fim e anular tentativas de desnaturação material e formal das leis a que se está obrigado e observar”.
No direito brasileiro o art. 5ª a CF/88 giza alguns incisos abrangidos pelo princípio do devido processo legal, in verbis: a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito (inciso XXXV); não haverá juízo ou tribunal de exceção (inciso XXXVII); ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente (inciso LIII); ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal (inciso LIV); aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes (inciso LV).
Com efeito, o artigo 5º da CF/88, devido sua abrangência e amplitude de direitos, se tornou o norteador da administração pública, do poder Legislativo e do poder Judiciário na aplicação da cláusula do devido processo legal. Não podemos olvidar que a CF/88 abrange os aspectos processual e substancial do devido processo legal e quando os direitos fundamentais de um indivíduo forem ofendidos é assegurado o dispositivo para o pleno exercício de sua cidadania.
Diante disso, constatamos que o cidadão brasileiro está amparado, de forma ampla, pela Carta Magna, tendo seus direitos e garantias resguardados pelo princípio do devido processo legal. Isto demonstra o grande passo da CF/88 em relação às anteriores, o que permite o aperfeiçoamento e efetivação de novos direitos.
A cláusula da garantia do devido processo legal é um dispositivo assecuratório que garante aos cidadãos o acesso à justiça, uma vez que dá possibilidade de postulação e de defesa processual diante do órgão jurisdicional independente e imparcial.
Assim, o devido processo substantivo é a garantia da liberdade contra arbitrariedades estatais, bem como a concretização do princípio da dignidade da pessoa humana que se resume numa convivência digna, livre e igual sem a qual as pessoas não sobreviveriam.