Capa da publicação Crimes da lei de licitações (14.133/21)
Artigo Destaque dos editores

Aspectos relevantes dos crimes previstos na lei 14.133/2021

06/10/2023 às 19:28

Resumo:


  • A Nova Lei de Licitações foi sancionada em 2021 com o objetivo de trazer uniformização e simplificação aos procedimentos de contratações na administração pública, alinhando-se a acordos internacionais e aumentando as penas para crimes licitatórios.

  • A nova legislação incorporou os crimes licitatórios ao Código Penal, mantendo muitas condutas tipificadas pela Lei nº 8.666/93, porém aumentando as penas abstratamente cominadas e introduzindo um novo crime de "omissão grave de dado ou informação por projetista".

  • A Lei nº 14.133/2021 trouxe modificações nos crimes de fraude à licitação e contratação inidônea, aumentando penas e ampliando o escopo das condutas criminosas, visando coibir práticas ilícitas e proteger a moralidade administrativa na administração pública.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

O legislador teve a intenção de aumentar o rigor na punição com a finalidade de inibir e combater práticas criminosas, o que nem sempre é eficaz.

A Nova Lei de Licitações foi sancionada e incorporada ao ordenamento jurídico com o objetivo claro de trazer uniformização, compilando em um único diploma legal, as diversas normas e procedimentos que dizem respeito às contratações no âmbito da administração pública, isso se deu a partir da análise de experiências positivas extraídas desde a Lei nº 8.666 de 21 de junho de 1.993 e ainda, como não poderia deixar de ser,  da análise dos precedentes consolidados tanto nos tribunais de contas quanto no poder judiciário.

A Lei nº  14.133 de 1º de abril de 2.021 é uma norma que alinhou-se ao Acordo sobre Compras Governamentais (GPA) da Organização Mundial do Comércio (OMC) e também, se põe em consonância com os compromissos assumidos neste acordo: racionalizar/simplificar procedimentos; se abrir ao mercado global; e o fomento à governança.

Apesar de seus 194 artigos, o objetivo dos próximos tópicos é de forma sucinta e objetiva debater somente as alterações nos ilícitos penais cometidos no bojo de licitações, como primeiras reflexões.

Se na vigência da “antiga” lei de licitações tínhamos os "crimes licitatórios" no bojo de seu texto, atualmente tais tipos penais (crimes) passam, com a novel legislação, a compor o texto do Código Penal, integrando o capítulo referente aos "crimes praticados por particular contra a administração em geral", ainda que pese a existência de condutas típicas que somente podem ser praticados pelo funcionário público, no conceito deste trazido pelo art. 327 do C.P.

Naquilo que tange às modificações propriamente ditas e que já estão em vigor desde a  promulgação da lei (conforme previsão expressa no texto legal), aponta-se pelo menos dois aspectos importantes, com pertinência neste trabalho que se limita a comentar sobre: inovação com apenas um novo crime e de forma geral, um aumento das penas para os crimes já existentes que agora possuem maiores penas abstratamente cominadas.

 Princípio da continuidade normativo-típica e novatio legis in pejus

 Ao analisar a nova Lei, verifica-se um agravamento no tratamento dado aos crimes licitatórios, principalmente no que tange às suas penas, uma vez que tivemos poucas novidades legislativas naquilo que concerne a novas condutas incriminadas. Fazendo uma comparação dos tipos penais (e preceitos secundários) das duas leis, é perceptível que apesar de haver uma continuidade normativo-típica (permanecendo as condutas antes tipificadas) esta  veio acompanhada, em sua imensa maioria, de um recrudescimento na punição, e em razão disso não podendo retroagir para alcançar fatos anteriores a sua vigência.

Assim, quanto ao preceito primário dos novos tipos penais, a novel legislação, em sua larga maioria, trouxe uma continuidade normativo-típica[1], com a manutenção da incriminação das condutas antes criminalizadas pela Lei nº 8.666 de 21 de junho de 1.993 o que se justifica dadas as razões de política criminal.

Diante isto, não resta passível de discussão a possibilidade de haver “Abolitio Criminis[2].  E como consequência deste entendimento, permanece mantida a possibilidade de iniciar-se ou mesmo dar continuidade a persecução penal mesmo em  fatos ocorridos em momento anterior à vigência desses novos crimes, porém já previstos anteriormente, tipos penais.

Porém, ressalvando-se a necessidade de observar o preceito secundário da norma e não podendo ser utilizada a nova norma agravadora em prejuízo do réu.

Pelo princípio da continuidade normativo-típica, temos a manutenção da conduta antes proibida mas sendo realizado um deslocamento da conduta para outro tipo penal. Neste caso, fica claro que a intenção do legislador é que a conduta permaneça proibida e típica.

Pela leitura dos tipos penais constates dos artigos 337-F, 337-G, 337-H, 337-I, 337-K e 337-N , percebe-se que em todos a pena imposta para a conduta é maior configurando flagrante caso de novatio legis in pejus, em que a pena foi aumentada e/ou o regime mudou de detenção para reclusão, e assim, esta majoração só se aplica aos delitos cometidos após o início da vigência da Nova Lei de Licitações.

Passemos a analisar de forma didática os tipos penais, e para isso realizando uma sucinta comparação entre os crimes previstos na Lei nº 8.666 de 21 de junho de 1.993 e na Lei nº  14.133 de 1º de abril de 2.021, para perceber que as modificações são principalmente no preceito secundário da norma:

Lei nº 8.666 de 21 de junho de 1.993

Lei nº  14.133 de 1º de abril de 2.021

 Art. 90. Frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo do procedimento licitatório, com o intuito de obter, para si ou para outrem, vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação:

Pena - detenção, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa. (grifos nossos)

 Art. 337-F. Frustrar ou fraudar, com o intuito de obter para si ou para outrem vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação, o caráter competitivo do processo licitatório:

 

Pena - reclusão, de 4 (quatro) anos a 8 (oito) anos, e multa.

 Art. 91. Patrocinar, direta ou indiretamente, interesse privado perante a Administração, dando causa à instauração de licitação ou à celebração de contrato, cuja invalidação vier a ser decretada pelo Poder Judiciário:

Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.

 Art. 337-G. Patrocinar, direta ou indiretamente, interesse privado perante a Administração Pública, dando causa à instauração de licitação ou à celebração de contrato cuja invalidação vier a ser decretada pelo Poder Judiciário:

Pena - reclusão, de 6 (seis) meses a 3 (três) anos, e multa.

Art. 92. Admitir, possibilitar ou dar causa a qualquer modificação ou vantagem, inclusive prorrogação contratual, em favor do adjudicatário, durante a execução dos contratos celebrados com o Poder Público, sem autorização em lei, no ato convocatório da licitação ou nos respectivos instrumentos contratuais, ou, ainda, pagar fatura com preterição da ordem cronológica de sua exigibilidade, observado o disposto no art. 121 desta Lei:

Pena - detenção, de dois a quatro anos, e multa.

Parágrafo único. Incide na mesma pena o contratado que, tendo comprovadamente concorrido para a consumação da ilegalidade, obtém vantagem indevida ou se beneficia, injustamente, das modificações ou prorrogações contratuais.

Art. 337-H. Admitir, possibilitar ou dar causa a qualquer modificação ou vantagem, inclusive prorrogação contratual, em favor do contratado, durante a execução dos contratos celebrados com a Administração Pública, sem autorização em lei, no edital da licitação ou nos respectivos instrumentos contratuais, ou, ainda, pagar fatura com preterição da ordem cronológica de sua exigibilidade:

Pena - reclusão, de 4 (quatro) anos a 8 (oito) anos, e multa.

Art. 93. Impedir, perturbar ou fraudar a realização de qualquer ato de procedimento licitatório:

Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.

Art. 337-I. Impedir, perturbar ou fraudar a realização de qualquer ato de processo licitatório:

Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 3 (três) anos, e multa.

Art. 94. Devassar o sigilo de proposta apresentada em procedimento licitatório, ou proporcionar a terceiro o ensejo de devassá-lo:

Pena - detenção, de 2 (dois) a 3 (três) anos, e multa.

Art. 337-J. Devassar o sigilo de proposta apresentada em processo licitatório ou proporcionar a terceiro o ensejo de devassá-lo:

Pena - detenção, de 2 (dois) anos a 3 (três) anos, e multa.

Art. 95. Afastar ou procurar afastar licitante, por meio de violência, grave ameaça, fraude ou oferecimento de vantagem de qualquer tipo:

Pena - detenção, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa, além da pena correspondente à violência.

Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem se abstém ou desiste de licitar, em razão da vantagem oferecida.

Art. 337-K. Afastar ou tentar afastar licitante por meio de violência, grave ameaça, fraude ou oferecimento de vantagem de qualquer tipo:

Pena - reclusão, de 3 (três) anos a 5 (cinco) anos, e multa, além da pena correspondente à violência.

Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem se abstém ou desiste de licitar em razão de vantagem oferecida.

Art. 98. Obstar, impedir ou dificultar, injustamente, a inscrição de qualquer interessado nos registros cadastrais ou promover indevidamente a alteração, suspensão ou cancelamento de registro do inscrito:

Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.

Art. 337-N. Obstar, impedir ou dificultar injustamente a inscrição de qualquer interessado nos registros cadastrais ou promover indevidamente a alteração, a suspensão ou o cancelamento de registro do inscrito:

Pena - reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.

Realizando a comparação entre os tipos penais previstos nos artigos 337-I e 337-J, por exemplo, quanto à conduta descrita no preceito primário, verifica-se bastante similaridade com a norma antiga prevista nos artigos 92 e 93 da Lei nº 8.666/93, verificando-se uma diferença imposta ao crime do art. 337-I (aumentando a pena máxima de 02 para três anos) e quanto a pena cominada à conduta do art. 337-J esta manteve-se inalterada bem como o preceito primário do tipo penal.

Vale notar que naquilo que se refere a modificações nas penas abstratamente cominadas (preceito secundário da norma penal incriminadora) temos que, o crime de violação de sigilo em licitação (art. 337-J, CP) foi o único que guardou plenamente o preceito secundário da antiga redação dada ao tipo penal na Lei nº 8.666 de 21 de junho de 1.993.

Novatio legis incriminadora

No que concerne aos novos tipos penais incluídos no Código Penal pela Lei 14.133 de 1º de abril de 2.021, como dito, as condutas em sua grande maioria já eram criminalizadas pela Lei nº 8.666 de 21 de junho de 1.993 tendo, quase todas, sofrido apenas modificações em seu preceito secundário (cominação das penas), inovando com o aumento das penas cominadas ou ainda, trazendo alterações quanto ao tipo de pena passando de detenção para reclusão configurando, neste aspecto “novatio legis in pejus[3]”.

Registre-se que, sob olhar do Direito Penal, a previsão da Lei 14.133 de 1º de abril de 2.021 no que se refere aos crimes licitatórios, quando verificada uma Novatio Legis in Pejus não poderá ser aplicada a fatos ocorridos antes de sua vigência. Afinal, é cediço que, no Direito Penal, é vedada constitucionalmente a retroatividade da lei penal se esta causar prejuízo ao réu.

Dentre deste contexto, há que se destacar que, apenas o art. 337-O é na realidade um novo tipo penal incriminador (Novatio legis Incriminadora[4]) tratando em síntese da conduta de "omissão grave de dado ou de informação por projetista" na qual será punido com uma pena de seis meses a três anos de reclusão e multa aquele contratado pela Administração Pública para elaborar o anteprojeto, projeto básico ou projeto executivo de obras e serviços de engenharia, que omita, modifique ou entregue algum dado ou informação errado.

O legislador, ao criar e estabelecer pena ao delito supracitado, buscou através do tipo penal incriminador, proteger o bem jurídico moralidade administrativa, que restará ferida se verificada a prática de alguma das condutas descritas neste tipo penal, já que o tipo penal busca, principalmente, garantir o caráter competitivo da licitação e evitar o detrimento da seleção da proposta mais vantajosa para a Administração Pública

Este dispositivo será aplicado, ainda, para os que apresentem tais projetos nas hipóteses de diálogo competitivo ou de procedimento de manifestação de interesse.

O novo tipo penal exige para sua tipificação que a conduta seja dolosa ou que se verifique culpa grave do autor do fato. A grande modificação se verifica na expressão utilizada pelo preceito primário do dispositivo: “omitir, modificar ou entregar à Administração Pública levantamento cadastral ou condição de contorno em relevante dissonância com a realidade”.

Assim, não se tipificará a conduta com uma simples falha, insuficiência ou incorreção do documento. Deve restar configurado que o agente incidiu em erro e este deve ser grave e de fácil percepção por outro técnico esteja na mesma posição do agente. Ressalte-se que caso se verifique dolo do agente e este estiver visando com sua conduta obter benefício, direto ou indireto, para si ou para outrem, a pena será imposta em dobro.

Destaque-se que o tipo penal do Art. 337-O  não possui conduta correspondente na antiga Lei de Licitações e Contratos Administrativos, e por isso, o crime de omissão grave de dado ou de informação por projetista foi uma inovação trazida pela nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, tratando-se de uma novatio legis incriminadora.

Quanto ao crime de fraude à licitação, já previsto anteriormente (art.96 da Lei 8666/93), e considerado uma das condutas mais graves quando se trata de licitações e contratos, temos que este sofreu um aumento considerável da pena e uma inclusão de hipótese de fraude. Vejamos:

Lei nº 8.666 de 21 de junho de 1.993

Lei nº  14.133 de 1º de abril de 2.021

Art. 96. Fraudar, em prejuízo da Fazenda Pública, licitação instaurada para aquisição ou venda de bens ou mercadorias, ou contrato dela decorrente:

I - elevando arbitrariamente os preços;

II - vendendo, como verdadeira ou perfeita, mercadoria falsificada ou deteriorada;

III - entregando uma mercadoria por outra;

IV - alterando substância, qualidade ou quantidade da mercadoria fornecida; V - tornando, por qualquer modo, injustamente, mais onerosa a proposta ou a execução do contrato:

 

 

 

Pena - detenção, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa.

 

 Art. 337-L. Fraudar, em prejuízo da Administração Pública, licitação ou contrato dela decorrente, mediante:

I - entrega de mercadoria ou prestação de serviços com qualidade ou em quantidade diversas das previstas no edital ou nos instrumentos contratuais;

II - fornecimento, como verdadeira ou perfeita, de mercadoria falsificada, deteriorada, inservível para consumo ou com prazo de validade vencido;

III - entrega de uma mercadoria por outra;

IV - alteração da substância, qualidade ou quantidade da mercadoria ou do serviço fornecido;

V - qualquer meio fraudulento que torne injustamente mais onerosa para a Administração Pública.

Pena - reclusão, de 4 (quatro) anos a 8 (oito) anos, e multa. 

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Portanto, a lei nova trouxe previsto como nova hipótese para o crime de fraude em licitação ou contrato, o fornecimento, como verdadeira ou perfeita, de mercadorias inservíveis para consumo ou com prazo de validade vencido (conforme se verifica no inciso II) sendo assim, uma novatio legis incriminadora.

Na Lei nº 8.666/1993 a pena era de seis meses a dois anos e multa. Com a Lei nº 14.133/2021, a pena foi elevada para quatro a oito anos de reclusão.

Verifica-se ainda, outra importante ampliação no escopo da conduta quando o legislador substituiu o sujeito passivo de Fazenda Pública para Administração Pública, fazendo com que a conduta se amplie abarcando, inclusive, as empresas públicas e sociedades de economia mista.

Destaque-se ainda que, esse aumento da pena trazida acaba por tornar inviável firmar um possível acordo de não persecução penal previsto pela Lei nº 13.964/2019, já que o art. 28-A da norma prevê que o Ministério Público poderá fazer a proposta de acordo de não persecução penal àquele que supostamente tenha incorrido em crime com pena mínima cominada não superior a quatro anos.

Quanto ao crime de contratação inidônea, previsto no art. 337-M da nova Lei de Licitações, merece atenção, uma vez que dispositivo antes previsto no art. 97 da Lei nº 8.666/1993 passou da criminalização de duas condutas para três, aumentando o escopo do tipo penal “contratação inidônea” :

Lei nº 8.666 de 21 de junho de 1.993

Lei nº  14.133 de 1º de abril de 2.021

 Art. 97. Admitir à licitação ou celebrar contrato com empresa ou profis-sional declarado inidôneo:

Pena detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.

Parágrafo único. Incide na mesma pena aquele que, declarado inidôneo, venha a licitar ou a contratar com a Administração.

 Art. 337-M. Admitir à licitação empresa ou profissional declarado inidôneo:

Pena - reclusão, de 1 (um) ano a 3 (três) anos, e multa.

§ 1º Celebrar contrato com empresa ou profissional declarado inidôneo:

Pena - reclusão, de 3 (três) anos a 6 (seis) anos, e multa.

§ 2º Incide na mesma pena do caput deste artigo aquele que, declarado inidôneo, venha a participar de licitação e, na mesma pena do § 1º deste artigo, aquele que, declarado inidôneo, venha a contratar com a Administração Pública. 

A pena passou a ser prevista de um a três anos de reclusão para aquele funcionário público que admitir na licitação empresa ou profissional declarado inidôneo. O parágrafo primeiro prevê que a conduta do agente será mais grave se o contrato administrativo chegar a ser celebrado e consequentemente agrava a pena abstratamente cominada para três a seis anos de reclusão.

Percebe-se o alto rigor legislativo imposto ao agente público na punição da conduta. A antiga lei cominava a mesma pena para a admissão e a contratação da empresa ou do profissional inidôneo. O que o legislador fez, foi na verdade, majorar a gravidade das condutas de forma separada.

Nessas hipóteses ( caput e § 1º), trata-se de crime próprio, onde o sujeito ativo será o funcionário público.

Já no § 2º temos a possibilidade de punir o particular, quando dispõe que  incorre na mesma pena o particular que, declarado inidôneo, venha a participar da licitação ou contratar com a Administração Pública.

Abolitio criminis e a Lei 14.133 de 1º de abril de 2.021

 Quanto à possibilidade de operar a “abolitio criminis” diante dos “novos” tipos penais revistos pela 14.133 de 1º de abril de 2.021 verificamos uma exceção ao entendimento acima já exposto quanto a existência de continuidade típica normativa e essa exceção fica limitada ao crime previsto no art. 337-E do Código Penal .

Apesar de não podermos falar em continuidade típico normativa integral para o tipo penal do Art.337-E, temos para parte das condutas previstas essa continuidade e não poderia ser diferente já que em nosso país não é nova a pratica de contratação direta e nesse sentido, informa Delmanto[5]  que a promiscuidade entre o público e o privado remonta a vinda de D. João VI, fugindo das tropas de Napoleão Bonaparte, em 1808. A cidade do Rio de Janeiro, que então se tornou, por breve período, a capital do Império, assistiu à Coroa, endividada, literalmente “vender” títulos de nobreza como os de barão, visconde e conde, com as benesses que garantiam aos seus titulares nas relações com o Poder Público. Eram, por vezes, proprietários de terras, comerciantes e, inclusive, traficantes de escravos, sendo o Brasil (já depois da Independência), e para a vergonha mundial, o último país a proibir a escravidão e o tráfico de negros de 1888.

Trata-se, o art. 337-E, da conduta  de “contratação direta ilegal", que reproduziu de formal parcial a anterior redação do art. 89 da Lei nº 8.666 de 21 de junho de 1.993 e, assim, verifica-se a abolitio criminis da conduta referente a "deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade".

Registre-se que o antigo art. 89 da Lei nº 8.666 de 21 de junho de 1.993 tipificava expressamente as condutas de "dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade".

Analisando o novo art. 337-E, que foi inserido no Código Penal pela Lei 14.133 de 1º de abril de 2.021, verifica-se que a tipificação ficou restrita a conduta de "admitir, possibilitar ou dar causa à contratação direta fora das hipóteses previstas em lei". O legislador, de forma clara e inequívoca, retirou do texto legal uma das condutas antes criminalizada, pelo atualmente  revogado art. 89, e é nesse ponto que verifica-se a “abolitio crininis”.

Lei nº 8.666 de 21 de junho de 1.993

Lei nº  14.133 de 1º de abril de 2.021

 Art. 89.  Dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade:

Pena - detenção, de 3 (três) a 5 (cinco) anos, e multa.

Parágrafo único.  Na mesma pena incorre aquele que, tendo comprovadamente concorrido para a consumação da ilegalidade, beneficiou-se da dispensa ou inexigibilidade ilegal, para celebrar contrato com o Poder Público.

 Art. 337-E. Admitir, possibilitar ou dar causa à contratação direta fora das hipóteses previstas em lei:

Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa.

 

Sobre o dispositivo, existem algumas importantes considerações e, assim, ressaltamos inicialmente que a contratação direta se refere aos casos de dispensa ou inexigibilidade de licitação trazidas pela novel legislação.

E quanto a isto necessário se faz ressaltar o fato de que a Lei 14.133 de 1º de abril de 2.021 promoveu alterações tanto nos valores e critérios permitidos para se efetuar a contratação direta por dispensa de licitação como nos critérios de inexigibilidade de licitação.

O legislador, ao dispor sobre o crime supracitado, visou a proteção da moralidade administrativa que sai lesada caso verifique-se a prática das condutas tipificadas neste tipo penal, sendo certo que tal delito busca punição para aqueles que não observarem Princípios essenciais inerentes à contratação pública, especialmente com intuito de garantir a probidade, a impessoalidade e a isonomia.

Sobre esse aspecto vale transcrever entendimento do STF, claramente aplicável mesmo após as modificações trazidas pela nova lei:

 não se exige, para sua configuração, prova de prejuízo financeiro ao erário, uma vez que o bem jurídico tutelado não se resume ao patrimônio público, mas coincide com os fins buscados pela Constituição da República, ao exigir em seu art. 37, XXI, "licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes". Tutela-se, igualmente, a moralidade administrativa, a probidade, a impessoalidade e a isonomia. [6]

 De acordo com a nova lei, o valor das contratações de obras e serviços de engenharia e ainda, de manutenção de veículos automotores foi elevado ao patamar de até o R$ 100.000,00 (cem mil reais) e para outras compras e serviços até o valor de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) dispensam licitação.

Ao mesmo tempo em que o dispositivo flexibilizou as possibilidade dessas contratações públicas ampliando suas possibilidades, trouxe também uma maior rigidez quando da aplicação de penalidades aos que contratarem sem licitação (acima dos valores estabelecidos pela lei). Verifica-se que, a pena prevista atualmente no art. 337-E, foi elevada de três a cinco anos de detenção (na antiga redação do Art. 89) para quatro a oito anos de reclusão.

Um aspecto importante foi retirar da conduta descrita no tipo penal a criminalização antes prevista na Lei 8.666 de 21 de junho de 1.993 em razão da inobservância das formalidades pertinentes à licitação e à participação do contratado.

Desta forma, o tipo penal deixou de prever uma punição ao agente público que descumpre uma mera formalidade.

Sobre esta “abolitio criminis” que diz respeito  a segunda parte do art. 89 da Lei 8.666 de 21 de junho de 1.993, tínhamos ali a criminalização de um error in procedendo quem cometia este erro estava infringindo um aspecto formal do ato administrativo[7], o que era, uma punição sem razoabilidade, se considerarmos que o Direito penal é a Última Ratio e essa falta de proporcionalidade poderia ser punida com uma sanção administrativa ao servidor, por exemplo.

A descriminalização da conduta de "deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade" antes prevista no art. 89, da Lei 8.666 de 21 de junho de 1.993 se mostra um medida coerente e acertada por parte do legislador.

A redação atual do dispositivo se aplica apenas ao funcionário público que contratar sem licitação fora das hipóteses previstas em lei.

É importante frisar que este dispositivo legal deve ser analisado em  consonância com as modalidades de contratação direta e inexigibilidade permitidas pelas normas em vigor.

Diante disto, resta claro que a partir da vigência da Lei 14.133 de 1º de abril de 2.021, a contratação direta deverá ser realizada observando-se o artigo 72 da novel legislação, que expressamente prevê com quais documentos, por exemplo, deve o processo de contratação direta ser instruído.

Conclusões

Este trabalho teve como objetivo precípuo analisar, à luz da doutrina e da jurisprudência do Brasil, os crimes previstos na Lei de Licitações e Contratos - Lei 8.666 de 21 de junho de 1.993, sem a pretensão de esgotar o tema.

Sob o enfoque dos tipos penais trazidos pela nova lei de licitações e contratos administrativos torna-se fácil perceber que o legislador teve a intenção de aumentar o rigor na punição com a finalidade de inibir e combater práticas criminosas. O clamor popular de maior punição dos crimes envolvendo a Administração Pública teve papel importante neste recrudescimento da nova lei.

Há diversos fatos na história que mostram que talvez esse não seja o melhor remédio. Nem sempre doses maiores de punição são medidas eficazes na diminuição no cometimento de infrações. Registre-se que o dentro desse contexto foi promulgada a Lei 8.666 de 21 de junho de 1.993, momento em o Brasil passava por um desgastante processo de impeachment do ex- Presidente Fernando Collor, que era justamente acusado de corrupção o que causou um verdadeiro frisson na sociedade brasileira.

Quanto à tipificação dos crimes em espécie, percebe-se uma preocupação do legislador com a redação dos tipos penais que nos parece que foi aprimorada, apesar de algumas críticas pontuais. Conforme o padrão do Código Penal, o tipos penais passaram a possuir o nome do crime, a descrição da conduta (preceito primário) , a previsão da pena (preceito secundário) e de eventuais circunstâncias atenuantes ou agravantes. De modo geral, a descrição das condutas tornou-se mais objetiva.

Percebe-se claramente a intenção do legislador em manter os tipos penais antes dispostos no bojo da Lei 8.666 de 21 de junho de 1.993 no ordenamento jurídico brasileiro já que, como já dito, estes foram transportados para o Código Penal, mantendo-se quase que integralmente as condutas descritas como crimes e impondo uma reprimenda maior para tais.

Na verdade, alvo de muitas críticas durante todos os anos em que esteve em vigor, o excesso de formalismo e a forma prevista de punibilidade dispostos na  Lei 8.666 de 21 de junho de 1.993 acabaram por tornar o processo licitatório lento e seus mecanismos considerados por tantas vezes ineficaz no combate à corrupção.

A previsão dos tipos penais previstos na antiga lei de licitações e contratos não lograram êxito em impossibilitar a formação de cartéis e até sobrepreço nas contratações públicas, uma vez que os diversos casos de corrupção seguem estampados na mídia à exemplo do que vivenciou o país na Operação Lava Jato.

Mais uma vez o legislador opta por um caminho duvidoso e ao nosso ver, sem muitas chances de êxito, através do Direito Penal que pode acabar afastando as boas empresas do certame licitatório, já que com o maior rigor punitivo se aumenta também o risco de contratar com o Poder Público.

 

REFERENCIAS

 

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search . Acesso em: 01º de março de 2022.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Inicio. Acesso em 01º de março de 2022.

CUNHA, Rogério Sanches. Manual de direito penal: parte geral (arts. 1° ao 120). 8. ed. Salvador: JusPODIVM, 2020

DELMANTO, Roberto; DELMANTO JUNIOR, Roberto; DELMANTO, Fabio M. de Almeida. Leis penais especiais. Ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2014.

GRECO, Rogério. Código Penal Comentado. ed. Impetus. 10ª edição. Rio de Janeiro.

JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 17. ed. São Paulo: RT, 2016.

MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de Direito Penal. 22a ed. São Paulo. Atlas. 2005. vol.1

RINCON, Jose Suay. Sanciones administrativas. Studio Albornotiana. Bolonha: Publicaciones del Real Colegio de España, 1989.



[1][1] O mesmo ocorreu, v.g., com a revogação do art. 214 do CP (atentado violento ao pudor) e inclusão de seu conteúdo normativo-típico nos arts. 213 (estupro) e art. 217-A (estupro de vulnerável). Ver STJ, 5.ª T., HC 217.531/SP, rel. min. Laurita Vaz, DJe 2 abr. 2013.

[2] A expressão “Abolitio Criminis” (abolição do delito) é entendida como a transformação de um fato que anteriormente era legalmente considerado como crime e que em razão de uma nova lei, perdeu seu caráter criminoso e não mais é considerado como crime. Além de conduzir à extinção da punibilidade, também faz cessar todos os efeitos penais da sentença condenatória, permanecendo, contudo, os efeitos civis. Os efeitos civis, ao contrário, não serão atingidos pela abolitio criminis. GRECO, Rogério. Código Penal Comentado. ed. Impetus. 10ª edição. Rio de Janeiro, p.14.

[3] É a nova lei que, de qualquer modo, prejudica o réu, sendo irretroativa, devendo ser aplicada a lei vigente quando do tempo do crime. Trata-se de observância da lei ao princípio da anterioridade, corolário do princípio da legalidade. CUNHA, Rogério Sanches. Manual de direito penal: parte geral (arts. 1° ao 120). 8. ed. Salvador: Jus PODIVM, 2020.

[4] É a hipótese da lei nova que vem a tornar fato anteriormente não incriminado pelo direito penal como fato incriminado, como fato típico. Fato típico, segundo Mirabete, é o comportamento humano (positivo ou negativo) que provoca, em regra, um resultado, e é previsto como infração penal. MIRABETE, 2005: 59

[5] DELMANTO, Roberto; DELMANTO JUNIOR, Roberto; DELMANTO, Fabio M. de Almeida. Leis penais especiais. Ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 291

[6] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Penal nº 971/RJ, 1ª Turma do STF, Rel. Edson Fachin. j. 28.06.2016, DJe 11.10.2016

[7] Sobre a conduta incriminada na segunda parte do art. 89, comenta JUSTEN FILHO: "Se os pressupostos da contratação direta estavam presentes, mas o agente deixou de atender à formalidade legal, a conduta é penalmente irrelevante." JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 17. ed. São Paulo: RT, 2016. p. 1399.

 

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Sobre a autora
Juliana Kryssia Lopes Maia

Doutoranda em Direito pela Universidade Veiga de Almeida. Mestre em Direito pela Universidade salesiana. Especialista em direito civil e processo pela Universidade Cândido mendes. Especialista em Direito Administrativo pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ). Especialista em Direito penal pela Universidade Candido Mendes. Especialista em cadeia de custódia da prova no processo penal. Advogada sócia fundadora Juliana Maia sociedade de advogados. Procuradora Geral OAB 1ª subseção RJ. Presidente da comissão acadêmica ANACRIM/Baixada RJ. Atualmente é professora da Universidade Iguaçu. Atualmente é advogada e palestrante.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MAIA, Juliana Kryssia Lopes. Aspectos relevantes dos crimes previstos na lei 14.133/2021. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7401, 6 out. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/106499. Acesso em: 22 dez. 2024.

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