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O "direito de fugir"

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Introdução

A prisão do ex-banqueiro Salvatore Cacciola (que deixou o Brasil em 2000 sem nenhuma restrição da Justiça) reativou a polêmica sobre o "direito à fuga", que é visto com bons olhos por alguns operadores do Direito. Neste artigo, procuraremos demonstrar o absurdo em que consiste o simples debate desse tema.


A declaração do ministro

Sobre a questão, o ministro Marco Aurélio Mello, do STF, declarou: "É direito natural do homem fugir de um ato que entenda ilegal. Qualquer um de nós entenderia dessa forma. É algo natural, inato ao homem".

Acreditamos que o ministro fez uma confusão ao tentar justificar sua equivocada decisão a favor da concessão do habeas corpus a Salvatore Cacciola em 2000. Não existe "direito natural à fuga". Aliás, a expressão "direito natural" transmite a idéia de um conjunto de normas que, idealmente, valeriam para todos os povos. Seria o Direito mais justo possível dentro das possibilidades humanas.

Obviamente, não podemos considerar como justa ou correta a atitude de alguém que, respondendo a um processo, escapa da ação da Justiça. Ora, se há o direito do Estado de prender, de modo provisório ou definitivo, não poderia haver o direito do réu ou condenado de fugir, pois o exercício desse direito significaria a anulação do outro. O ministro referiu-se, com correção, ao fato de que qualquer pessoa, quando presa ou ameaçada de prisão, tem o ardente desejo de preservar ou reconquistar sua liberdade. Isso é plenamente compreensível; mas, de maneira alguma, é justificável em caso de prisão lícita. Utilizando desse mesmo raciocínio, podemos dizer, então, que qualquer desejo de alguém é justificável, basta que se queira.

Para ilustrar o raciocínio: o homicídio e o estupro são dois crimes encontrados em qualquer sociedade humana. Por isso, podemos considerá-los "naturais e inatos" ao ser humano? Alguém, por acaso, defenderia que essas condutas tornam-se legítimas por isso? Em um estado de direito, a discordância da decisão judicial é sempre legítima, mas deve ser exercida dentro dos termos previstos em lei, ou seja, ajuizando as ações e os recursos necessários.


A declaração do ex-procurador-geral da República

Cláudio Fonteles, ex-procurador-geral da República, ao contrário, declarou-se perplexo diante da expressão "direito à fuga". Seria esse sentimento exagerado? Infelizmente, não. Cláudio Fonteles está repleto de razão. Mas, apesar de absurda, a expressão utilizada pelo ministro pode ser entendida dentro de uma lógica peculiar. Primeiro, a notória incapacidade da maioria das pessoas de admitir seus erros. Ora, decisão que decreta a prisão provisória ou que concede o habeas corpus é, de certa forma, uma aposta, ou, em termos mais científicos, um juízo de probabilidade. Pondera-se a respeito da necessidade de acusado ficar preso ou solto naquele momento do inquérito ou do processo. Como qualquer decisão humana, essa ponderação pode revelar-se incorreta. É inevitável que isso ocorra vez por outra com juízes que decidem diariamente esses assuntos. Infelizmente, não houve humildade suficiente para admitir esse fato.

Outra explicação é um fenômeno que ataca quase toda a doutrina e boa parte dos magistrados brasileiros: o "laxismo penal", ou seja, a crença de matriz esquerdista que coloca o criminoso como vítima da sociedade, e que, por isso, deve ser protegido ao máximo. Inverte-se a lógica dos fatos. Quem, voluntariamente, cometeu um crime atacou bens essenciais do indivíduo e da sociedade, e deve ser punido por isso. É ultrajante querer "transformar" o criminoso em vítima, e a sociedade, que é a vítima, em criminoso. Parecem defender que ninguém seja responsabilizado por nada e, ainda, que se dê total vazão aos desejos, custe o que custar. Essa ideologia, ao retirar a responsabilidade individual do criminoso, estimula a criminalidade, pois fornece uma justificativa para seus atos. Na realidade, ela é, em boa parte, responsável pela crescente criminalidade em que vivemos.


Como justificar a prisão preventiva

O Código de Processo Penal, no art. 312, prevê expressamente as hipóteses em que é permitida a prisão preventiva. Entre elas, estão a garantia da ordem pública e a segurança da aplicação da lei penal. O primeiro caso refere-se ao acusado que, por ser de alta periculosidade, precisa ficar detido durante o processo. A segunda refere-se ao acusado que tenta fugir para escapar de uma provável sentença condenatória. Portanto, sua previsão legal possibilita a decretação de prisão preventiva nesse caso.

Por outro lado, é necessária a compatibilização entre esse dispositivo e a Constituição Federal, que prevê o princípio da presunção de inocência. Ora, a regra é que o "inocente" deve ficar solto, e somente ser preso se houver absoluta necessidade. O problema é que boa parte dos juízes entende a prisão preventiva como uma antecipação da pena, o que é totalmente vedado pelo princípio da presunção de inocência. Isso significa a banalização da prisão preventiva como uma forma de dar uma satisfação rápida à sociedade. Para se ter uma idéia, em 2004, 33% dos presos no Brasil eram provisórios (dados do Ministério da Justiça), enquanto, em alguns países anglo-saxões, a taxa é de apenas 2%!

Será que, admitindo o "direito de fugir", não estaríamos reconhecendo a precipitação ou a ineficiência do Judiciário? Como visto anteriormente, não se pode considerar a existência de um "direito à fuga". Porém, é possível que alguém preso por demasiado tempo sem um julgamento pode se sentir injustiçado, o que o induziria a uma eventual fuga. Há registro de prisões preventivas que duram anos, enquanto que a jurisprudência a admite apenas por um período máximo de 81 dias.

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Precipitação e ineficiência são duas fases da mesma moeda. Geralmente, o processo penal é tão demorado que o efeito intimidatório da pena pode tornar-se nulo. Um exemplo aberrante foi de um julgamento por tentativa de homicídio que ocorreu 40 anos depois do crime! Todos os envolvidos no crime, exceto o réu, já estavam mortos! Assim, a precipitação é uma maneira canhestra de compensar a ineficiência. Considerando que a coisa julgada no processo penal é quase um mito, de tão rara a sua ocorrência, os juízes antecipam a execução da pena, em um claro desrespeito à presunção de inocência, para, de alguma forma, dar satisfação à sociedade. Isso acontece de forma gritante nos casos conhecidos como "criminalidade de massa", normalmente crimes contra o patrimônio cometidos por pessoas de menor poder aquisitivo. Portanto, é nítida a relação entre a ineficiência do sistema penal e o desrespeito aos direitos dos réus. Quanto pior for o funcionamento da Justiça, mais os juízes sentir-se-ão tentados a utilizar medidas arbitrárias para satisfazer a opinião pública.


Um antecedente perigoso

Decretar a prisão e conceder a liberdade a alguém são atos de extrema responsabilidade que devem ser muito bem aferidos caso a caso. O juiz, como ser humano, obviamente não está isento de erros, mas deve utilizar critérios bastante rigorosos para diminuir esse risco. Exemplo bastante recente da falta de critérios foi a libertação de uma pessoa submetida a medida de segurança que, posteriormente, veio a violentar e matar diversas crianças na Serra da Cantareira.


O arcaísmo do Código de Processo Penal

O CPP é arcaico porque foi promulgado durante uma das mais sangrentas ditaduras de nosso país, o Estado Novo, de Getúlio Vargas. O réu deveria provar sua inocência e, normalmente, respondia preso ao processo. Tratava-se, na prática, de uma presunção de culpa. O CPP também é arcaico porque seus dispositivos tornaram-se inadequados para os tempos atuais. A disciplina da prisão processual, em geral, é confusa e lacunosa. Os dispositivos que regem a fiança, por exemplo, estão de tal forma desatualizados que tornam de uso bem raro esse valioso instituto. O CPP também não foi adequado às novas tecnologias que poderiam diminuir a necessidade de prisão preventiva, como os braceletes eletrônicos, utilizados na Inglaterra e nos Estados Unidos para monitorar os réus. Além disso, não foram previstas medidas cautelares simples, como a retenção de passaporte e a produção antecipada de provas.


Como adequar o CPP à ordem constitucional

Conta-se que um promotor, conhecedor do processo penal, argumentou a um velho juiz que este utilizava um artigo do CPP contrário à Constituição de 1988. Então, o juiz respondeu algo como: "O senhor quer que eu troque o CPP, que utilizo há 35 anos, pela Constituição, que tem apenas 19 anos?" Esse caso ilustra o fato de que muitos juízes se furtam ao seu dever de interpretar a lei de acordo com a Constituição, e não o contrário. Se não houver interpretação compatível com a Lei Maior, a norma deve ser considerada como revogada. Esse exercício hermenêutico não é simples e, às vezes, amedronta os julgadores. Esse é o controle difuso de constitucionalidade.

A adequação do CPP à Constituição de 1988 pode ser feita também pelo Supremo Tribunal Federal, em julgamento de ação de descumprimento de preceito fundamental (ADPF). Nesse caso, deveria fazer uma interpretação conforme a Constituição, ou considerar a norma como não-recepcionada. Em tempos de quase total descaso do Legislativo com as questões processuais penais, esse controle de constitucionalidade, chamado de concentrado, torna-se cada vez mais relevante.


As conseqüências da aceitação do "direito à fuga"

Quando um ministro do STF considera que a fuga de um réu preso, ou mesmo de um condenado, é um direito dele, temos um fato gravíssimo que consiste numa mensagem cada vez mais ouvida pela sociedade: o crime compensa, ou seja, seus riscos são tão pequenos que vale a pena cometê-lo. A chance de ser pego é mínima, sendo que, no decorrer do processo, é-lhe permitido mentir e utilizar expedientes protelatórios que podem ter, como conseqüência, a prescrição da pena. Na eventualidade de ser condenado, pode, ainda, não ser preso por ausência de vagas no sistema prisional. E agora, caso o fosse, poderia fugir, pois este seria um "direito" seu! Trata-se de uma demonstração efetiva do "laxismo penal" em ação!

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Sobre o autor
Alexandre Magno Fernandes Moreira Aguiar

procurador do Banco Central do Brasil em Brasília (DF), especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Estácio de Sá, professor de Direito Penal e Processual Penal na Universidade Paulista (Unip) e nos cursos preparatórios Objetivo e Pró-Cursos

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AGUIAR, Alexandre Magno Fernandes Moreira. O "direito de fugir". Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1598, 16 nov. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10654. Acesso em: 2 nov. 2024.

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