Capa da publicação Aborto no STF: de 2012 a 2020
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O aborto e o Supremo Tribunal Federal: julgados de 2012 a 2020

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Aborto como Crime contra a Vida: considerações penalistas

Em sentido linguístico, abortar — a prática do aborto — é um termo vinculado à medicina e é o ato de “eliminar prematuramente do útero produto da concepção” (FERREIRA, 2001, p. 5). A provocação de tal ato, assim, é configurada dos artigos 124 ao 128 do Código Penal Brasileiro, sob as condições, assim estabelecidas nos nomen iuris presentes em tais dispositivos, de provocação pela gestante ou com seu consentimento; por terceiro; em forma qualificada; necessário; e em caso de gravidez resultante de estupro; bem como cada uma de tais modalidades é apresentada e se é passível ou não de punição (BRASIL, 1940).

Em uma visão histórica do aborto como tipo penal, Capez (2019) aponta que a prática não era levada em consideração ao ponto de incutir em um castigo como pena, uma vez que a Lei das XII das Tábuas dispunha que o feto era uma parte do corpo da então gestante e não um ser autônomo, sendo que a mulher tinha então autonomia por querer dispor ou não de seu corpo; entretanto, com a então posse e propriedade que o homem exercia sob a mulher, a prática do aborto passou a ser considerada uma grave lesão ao direito do homem sob sua prole, sendo esta ação punida; Ainda aponta que Imperadores como Adriano, Constantino e Teodósio, influenciados pela Igreja Católica, já que esta instituição passou reprovar a atividade no meio social, reformaram o direito então existente e equipararam o aborto criminoso ao homicídio; por fim, o doutrinador percebe que o poder da Igreja Católica perdura desde a Idade Média até os dias atuais, tendo em vista que Santo Agostinho considerava que o aborto só seria crime se ocorresse entre quarenta e oitenta dias após a concepção, pois julgava que era quando o feto recebesse a alma, ao passo que São Basílio considerava todos os meios para o aborto como crime.

Já no contexto do Brasil, as previsões a respeito do aborto iniciaram-se com o Código Criminal do Império, que era criminalizada a prática feita por terceiro, e não pelo praticado pela gestante; Já com o Código Penal de 1890, o aborto feito pela própria gestante tornou-se crime; e, por fim, com o Código Penal de 1940, passaram a serem tipificadas as condutas do aborto provocado — por responsabilidade da gestante; aborto sofrido — por terceiro, sem consentimento da gestante; e o consentido — por terceiro e com consentimento da gestante (CAPEZ, 2019).

O primeiro crime relacionado ao aborto consoante o Código Penal é aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento, que assim é tipificado:

Art. 124 - Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque:

Pena - detenção, de um a três anos (BRASIL, 1940).

Hodiernamente, Nucci (2020) verifica que tal tipificação apresenta como sujeito ativo a própria gestante — apesar do “consentir que outrem lho provoque”, trata-se de um crime de mão própria, em que só pode admitir a participação, e não coautoria; o sujeito passivo é o feto ou o embrião, mas, segundo o doutrinador, como tal produto uterino ainda não poderia ser classificado como uma pessoa, seria a sociedade a ser o alvo de tal crime; o objeto jurídico, por excelência, a vida, mais propriamente a vida do feto, também chamado de vida dependente da mãe; o objeto material é o feto ou o embrião a ser eliminado no processo; inexiste em forma culposa; admite-se a tentativa e se consome com a morte do feto ou embrião.

Em termos de elementos objetivos do tipo, Nucci (2020), ainda em discussão sobre este dispositivo, elenca seis formas de aborto cujo debate alcança as quatro normas do Código Penal seguintes: natural, por interrupção espontânea da gravidez; acidental, em consequência de um traumatismo, como uma queda — e tanto o natural quanto o acidental não se enquadram na terceira forma, de aborto criminoso, que são as tipificadas pelos artigos do 124 ao 126 do Código Penal; concebe-se também o aborto legal ou permitido, em que são permitidos por lei, conforme o artigo 128 a ser ainda discutido nesta seção; e duas formas de aborto não compreendidas pela legislação brasileira: eugenésico ou eugênico, permitido para impedir a continuação da gravidez quando há a possibilidade de que a criança nasça com taras hereditárias; e econômico-social, que é o permitido em casos de família numerosa, para não lhe agravar a situação social.

A segunda forma de aborto presente no Código Penal brasileiro é o “provocado por terceiro”, disposto em dois artigos e se distinguem quanto ao consentimento:

Art. 125 - Provocar aborto, sem o consentimento da gestante:

Pena - reclusão, de três a dez anos.

Art. 126 - Provocar aborto com o consentimento da gestante:

Pena - reclusão, de um a quatro anos.

Parágrafo único. Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é maior de quatorze anos, ou é alienada ou débil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência (BRASIL, 1940).

Percebe-se, assim, qualquer pessoa pode ser sujeito ativo neste tipo de crime — com exceção, obviamente, da própria gestante. Bitencourt (2020) observa que a questão do consentimento no que se refere ao crime do artigo 125 pode apresentar duas formas: “sem consentimento real”, que é o abrangido por este artigo; e pela “ausência de consentimento presumido”, este quando a gestante for menor de 14 anos, alienada ou débil mental, de acordo com o Parágrafo Único do artigo 126 do Código Penal e, portanto, não apresenta aptidão no ponto de vista penal para discernir sobre o consentimento do aborto; por outro lado, ainda associando com o artigo 126, Parágrafo Único, não são necessárias as presenças de violência, fraude ou grave ameaça; mas, para o doutrinador, não há risco de se confundir a ausência de consentimento com o consentimento obtido por meio de fraude, visto que em ambos requisita-se a gestante desconhecer que, nela, está sendo praticado o aborto, mas, principalmente, nas duas situações está sujeito o autor a mesma pena.

Já em hipótese diversa, Bitencourt (2020) também aponta que, como exceção à teoria monística adotada pelo Código Penal, torna quem o pratica não coautor do crime descrito pelo artigo 124, mas sim responde pelo que delimita o artigo 126, caput; observa, ainda, que o consentir do aborto por parte da gestante e cometer o aborto consensual são crimes de “concurso necessário”, exigindo duas pessoas diferentes para realiza-lo, embora cada um responda por um crime distinto.

O Código Penal ainda reserva a forma qualificada para os dois tipos de aborto provocado por terceiro:

Art. 127 - As penas cominadas nos dois artigos anteriores são aumentadas de um terço, se, em consequência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, a gestante sofre lesão corporal de natureza grave; e são duplicadas, se, por qualquer dessas causas, lhe sobrevém a morte (BRASIL, 1940).

Jesus (2020) chama a atenção para que o aborto qualificado não abrange o artigo 124, no sentido de que a legislação brasileira não promove punições por autolesão; nota-se que, mesmo na situação em que há consentimento da gestante, o autor do crime cometido pelo artigo 126 ainda se encontra sujeito à qualificadora — mesmo que o aval possa denotar grau menor de gravidade do crime a ser cometido, parece sobrepesar os fatores que resultaram em lesão corporal de natureza grave ou a morte propriamente.

O Código Penal ainda reserva duas situações em que o aborto não pode ser punido caso o provocador seja o médico em exercício legal da profissão:

Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico:

I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;

II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal (BRASIL, 1940).

Masson (2018) atenta para que seja observada a expressão “não se pune”, o que tornam as práticas descritas nos incisos I e II do artigo 128 do Código Penal como típicas, mas não são puníveis; no aborto necessário, pesam-se dois valores fundamentais: a vida da gestante e a vida do feto, não se tornando inconstitucional privilegiar a permanência da vida da primeira em detrimento do surgir do segundo; e no aborto no caso de gravidez resultante de estupro, valendo-se da Dignidade da Pessoa Humana, verifica-se que o legislador compreendeu como atentatório à uma mulher conceber o fruto de uma situação desumana e que poderia lhe acarretar sérios traumas.

Ao detalhar o aborto necessário ou aborto terapêutico, Masson (2018) considera que a vida da gestante encontra-se em risco pelo motivo de manter a gravidez, e que não há outra maneira de mantê-la viva se nela não for realizado um aborto; desta forma o risco não precisa ser atual, e sendo da vida um bem jurídico indisponível, pode ser realizado sem o consentimento da gestante, tampouco de autorização judicial para tal; mas, como ainda observa o autor, se tal ato não for realizado propriamente por um médico, o perigo atual deverá se constar presente para ser considerado como lícito na seara do estado de necessidade; em caso contrário, incidirá o crime de aborto, em que se averigua se foi com ou sem consentimento da gestante.

Por outro lado, o aborto no caso de gravidez resultante de estupro, elencado por Masson (2018) como sentimental, humanitário, ético ou piedoso, este doutrinador observa que não há perigo atual para a vida da gestante, dependendo que, além de ser praticado por um médico, deve ter consentimento da gestante ou de seu representante se ela for incapaz, e resultante do crime de estupro estabelecido pelo artigo 213 do Código Penal; tal qual o caso legal de aborto estabelecido no inciso I do artigo 128, aqui também não se exige autorização judicial, mas requer a condenação para que o médico tenha provas seguras acerca da existência do crime, como ação penal, boletim de ocorrência, inquérito policial, declaração da mulher e depoimentos de testemunhas.

Todavia, em termos interpretativos, houve significativo avanço da descriminalização do aborto a partir de decisão do Supremo Tribunal Federal. Pela Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 54/DF, julgada em 2012, foi julgado procedente ser possível a interrupção da gravidez de feto anencéfalo (má formação da calota craniana), não cabendo a imputação dos crimes previstos nos artigos 124, 126 e 128 do Código Penal caso a gestação se encerre pela conduta descrita, mas que a vítima apresente anencefalia (BRASIL, 2012). Os votos dos ministros (a favor e contra), que terão alguns detalhes discutidos na seção seguinte deste trabalho, apontam para um progresso na questão de menor rigorosidade em certas modalidades de interrupção de gravidez, ao mesmo tempo que carece de uma discussão, sobretudo no Congresso Nacional, para uma atualização legal no Código Penal a respeito.

Neste sentido, há aberturas para a prática de aborto, com modalidades dentro do próprio Código Penal que não sejam consideradas como crime. A defesa ao bem da vida — sobretudo para ela ser concretizada — encontra, em tais aspectos, interpretações doutrinárias que pensem não apenas neste bem como a garantia do surgimento dela, mas na viabilidade da manutenção da mesma, sobretudo pensando em quem realiza a gestação. Neste quesito, se percebe, com as condutas em que não se pune o aborto praticado por médico, a ideia de que o aborto deve, circunstancialmente, ser realizado em condições sanitárias adequadas — o que uma eventual extinção de tal crime, todavia, deva compensar e propor uma estruturação do sistema de saúde nacional para atender tal demanda.


Interpretações do Supremo Tribunal Federal sobre o crime de Aborto: a ADPF 54/DF, o HC 124.306/RJ e a ADI 5.581/DF

A ADPF 54/DF foi ajuizada em 2004 pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde ao Supremo Tribunal Federal. Seu objetivo foi a possibilidade de interrupção da gravidez de modo antecipado em casos de anencefalia. Dentre algumas argumentações para que tal prática não incidisse com os crimes de aborto tipificados no Código Penal, levantou-se embasamentos como a proteção à dignidade das mulheres e do apontamento de traços do perseverar da gravidez de um feto nestas condições com a tortura (RONDON, 2020). É possível perceber, nestes termos, que uma eventual sanção penal para as mulheres a abortarem pode evocar um conflito psicológico de ser coagida a sustentar uma gravidez que não resultará na finalidade de gerir uma criança com vida, lhe impondo uma gestação por cerca de nove meses, com os ônus emocionais de ter que aguardar a expulsão do produto intrauterino para não ser alvo de um processo penal.

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A ADPF 54/DF teve como relator o Ministro Marco Aurélio Mello. O Ministro, em seu voto favorável para declarar a inconstitucionalidade da prática de interrupção da gravidez de feto anencéfalo ser considerada como típica conforme os artigos 124, 126 e 128, incisos I e II do Código Penal Brasileiro, versa que não condiz com o direito à vida preservar um feto que, no momento da concepção, será confirmado como morto. Em sua visão, obrigar à mulher a este processo seria um penoso encargo mantido com o pavor de uma eventual sanção penal, pois a mera suposição de que há uma vida sendo gestada — que inevitavelmente encontrará tão logo o exício — não deve servir de subsídio para defender uma manutenção dolorosa da gravidez:

Não se coaduna com o princípio da proporcionalidade proteger apenas um dos seres da relação, privilegiar aquele que, no caso da anencefalia, não tem sequer expectativa de vida extrauterina, aniquilando, em contrapartida, os direitos da mulher, impingindo-lhe sacrifício desarrazoado. A imposição estatal da manutenção de gravidez cujo resultado final será irremediavelmente a morte do feto vai de encontro aos princípios basilares do sistema constitucional, mais precisamente à dignidade da pessoa humana, à liberdade, à autodeterminação, à saúde, ao direito de privacidade, ao reconhecimento pleno dos direitos sexuais e reprodutivos de milhares de mulheres. O ato de obrigar a mulher a manter a gestação, colocando-a em uma espécie de cárcere privado em seu próprio corpo, desprovida do mínimo essencial de autodeterminação e liberdade, assemelha-se à tortura ou a um sacrifício que não pode ser pedido a qualquer pessoa ou dela exigido (BRASIL, 2012, p. 68).

Rondon (2020) discorre que uma posição como esta é fruto de um amadurecimento do humanismo secular, ou seja: embora a porfia trouxe discussões médicas, o que se verifica é um compadecimento com a sensação de sofrimento que uma reprodução infrutífera poderia resultar após todo o processo de gravidez de um anencéfalo, e que todo o horror desta gestação se trataria mais de tortura do que como uma missão divina. Assim, é possível verificar, nesta leitura, como repercute em polêmica a acepção absoluta do direito à vida associada com determinadas condutas legais como o aborto, pois, no caso das gestantes de fetos anencéfalos, uma responsabilidade penal enseja indicar que ou a gestante suporte os eventos que ela não detinha o controle — engravidar, ou, ainda, gestar um anencéfalo — ou correr o risco de sofrer sanções legais, não tendo direitos como a dignidade sendo respeitados.

Todavia, o Ministro Cezar Peluso divergiu do relator sobre a ausência de vida em feto anencéfalo. Em seu voto, pontua que o mero processo de gestação indica a existência de vida, ainda que mínima seja. Em sua argumentação, percebe-se um raciocínio voltado para o que seja o conceito de vida, e restringe ao que os dispositivos legais permitiam, pela hermenêutica, de entender que o crime de aborto envolve a interrupção de “vida com algum grau de complexidade psíquica”, e que, no seu entendimento, é uma concepção constitucionalizada e ramificada para as outras esferas do direito brasileiro:

Como se vê, a tendência do uso semântico do conceito de vida no Direito está relacionado com critérios voltados às ideias de dignidade, viabilidade de desenvolvimento e presença de características mentais de percepção, interação, emoção, relacionamento, consciência e intersubjetividade e não apenas atos reflexos e atividade referente ao desenvolvimento unicamente biológico. Diante disso, é de se reconhecer que merecem endosso os posicionamentos de não caber a anencefalia no conceito de aborto. O crime de aborto diz respeito à interrupção de uma vida em desenvolvimento que possa ser uma vida com algum grau de complexidade psíquica, de desenvolvimento da subjetividade, da consciência e de relações intersubjetivas. E, por tudo o que foi debatido nos autos desta ação de descumprimento de preceito fundamental, a anencefalia não é compatível com essas características que consubstanciam a ideia de vida para o Direito. Essa é a vida que a Constituição garante, de modo que a compreensão de ‘vida’ como conceito nas demais esferas do Direito deve seguir essa delimitação. (BRASIL, 2012, p. 111-112)

Percebe-se, aqui, uma preocupação no entendimento do que é vida e como a Constituição Federal abaliza isto. É o caso, no ínterim da proposição até ao julgamento da ADPF 54/DF, a Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.510/DF, que questionava a possibilidade do uso de células-tronco embrionárias para fins terapêuticos, disposto no artigo 5º da Lei nº 11.105/2005 (Lei de Biossegurança). O resultado apertado (6 a 5, pela constitucionalidade do artigo), no julgamento em maio de 2008, parece ter indicado que polêmicas sobre o direito à vida do nascituro persistiriam gradativamente e eventualmente culminariam em decisões como as da ADPF 54/DF, uma vez que embrião não é pessoa e, logo, não é constitucionalmente protegida (MELO, 2018).

Flores (2005), em artigo publicado cerca de um ano depois da proposição da ADPF 54/DF2, traz algumas reflexões sobre a interpretação do que é vida, com similaridades à justificativa do voto do Ministro Peluso oito anos depois. Abalizando pelo aspecto técnico, observando que há “alguma possibilidade de vida”, ainda que seja mínima, o autor aponta que, mesmo que a vida do anencéfalo seja efêmera, trata-se ainda de vida, portanto enquadrando-se em crime, e ainda critica que há um relativismo do tema por “certa pressão ideológica”, uma vez que o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (CFOAB), o Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH) e o Conselho Federal de Medicina (CFM), ainda no ano de 2004, emitiram pareceres favoráveis sobre a interrupção da gravidez de feto anencéfalo não ser considerada típica em relação ao aborto. Sobre este último apontamento, percebe-se em seu comentário a respeito da utilização de “expressões atenuantes” como “aborto terapêutico”:

De qualquer forma, fica claro que a intenção desta demanda é atribuir como algo inevitável sua morte, de onde deduz uma 'inviabilidade' desse feto, ao que se acrescenta um alerta de que seria perigosa sua permanência no ventre da mãe, pois poderia, na sua visão, gerar graves complicações para ela. Assim, resulta que o objetivo da ação seria justificar a necessidade da antecipação do parto, denominado 'terapêutico', ainda que o procedimento resultasse na morte da criança (FLORES, 2005, p. 184).

Em que pese a relevância de detectar traços de vida para determinar se há a ocorrência ou não do tipo, observa-se como esta controvérsia, aliada a um discurso que supõe a ADPF 54/DF como uma eventual primícia para a legalização do aborto no Brasil sob um aspecto negativo, não só não prosperou no julgamento oito anos depois, bem como foi abalizada pelo corrente momento social de pensar nos reflexos que determinada lei, ainda inalterada desde 1940, pode incidir sobre mulheres gestantes de fetos anencéfalos. Esta inadequação do Código Penal, entretanto, serviu de argumentação para o Ministro Ricardo Lewandowski acompanhar o Ministro Cezar Peluso em seu voto, destacando que esta discussão, uma vez delineada pela vontade do povo, seria traduzida em alteração legal promovida por quem a representa:

Permito-me insistir nesse aspecto: caso o desejasse, o Congresso Nacional, intérprete último da vontade soberana do povo, considerando o instrumental científico que se acha há anos sob o domínio dos obstetras, poderia ter alterado a legislação criminal vigente para incluir o aborto eugênico, dentre as hipóteses de interrupção da gravidez isenta de punição. Mas até o presente momento, os parlamentares, legítimos representantes da soberania popular, houveram por bem manter intacta a lei penal no tocante ao aborto, em particular quanto às duas únicas hipóteses nas quais se admite a interferência externa no curso regular da gestação, sem que a mãe ou um terceiro sejam apenados (BRASIL, 2012, p. 241).

Este perdurar de décadas da incolumidade dos dispositivos penais que versam sobre o aborto — perpassando por vários momentos e transformações sociais — permite deduzir o quanto que se trata de um tema delicado, por ter em sua órbita questões de ordem moral (principalmente de cunho religioso) que afetam consideravelmente qualquer discussão e decisão a respeito do tema. Melo (2018) faz graves censuras sobre esta influência, acusando o cunho retrógado e, também, perpassando não justificadamente em lei outros direitos:

A questão, portanto, tem despertado forte interesse da comunidade religiosa, que chega a defender a continuidade da gestação em casos de anencefalia, mesmo sabendo que não há qualquer possibilidade de vida de anencefálicos, com base em convicções de natureza religiosa e em flagrante desrespeito, portanto à liberdade de consciência e de crença e ao Estado Laico.

No Código Penal, como se vê, ainda é bastante conservador em matéria de aborto. Isso se deve, em grande parte, à influência que ainda exerce sobre o legislador certos setores religiosos. O processo de secularização do Direito ainda não terminou. Confunde-se ainda religião com Direito. No caso do aborto por anencefalia, o debate instaurado evidenciou isso de forma exuberante. Não existe razão séria que justifique a não autorização do aborto quando se sabe que o feto com anencefalia não dura mais que dez minutos depois de nascido. Aliás, metade deles já morre durante a gestação e a outra perece imediatamente após o parto. A morte, de qualquer modo, é inevitável (MELO, 2018, p. 109).

Considerando esta força que instituições seculares como as religiões cristãs possuem em influenciar os que professam esta fé em um país, tais convicções pesam não apenas em receio do legislador em dedicar-se a este tipo de questão, mas também em como ao Poder Judiciário se recorre, na visão da autora supracitada, para resguardar o discurso religioso e validar a regulamentação corrente sobre o aborto. Pensar na validade deste argumento aponta refletir um caráter dúbio desta discussão: se a descriminalização do aborto, a qualquer modo que seja, traria eventualmente benefícios para grande parte da população que representam as mulheres, por outro lado chama a atenção que, da mesma forma que este eleitorado não vê este direito a ser mudado na legislação, parte dele é influenciado direta ou indiretamente por este discurso religioso. E esta influência pode ser crucial para um julgamento deste crime, uma vez que, inserido na seara dos Crimes Contra a Vida, é julgado pelo Tribunal do Júri.

É o que o Ministro Luiz Fux, em seu voto favorável na ADPF 54/DF, observa:

O Supremo Tribunal Federal evidentemente respeita e vai consagrar aquelas mulheres que desejarem realizar o parto, ainda que de feto anencefálico. O que o Supremo Tribunal Federal tem que examinar é se é justo, sob o ângulo criminal, colocar uma mulher que, durante nove meses, leva em seu ventre um feto anencefálico, o qual não tem condições de vida, no banco do Júri, porque aborto é crime contra a vida e sujeito à competência do Júri. E sabemos que, dependendo da comunidade, o Júri tem as suas propensões. Dependendo da influência - Vossa Excelência determinou o afastamento da religião e de outras convicções -, há algumas localidades em que essa condenação pelo Tribunal do Júri é absolutamente certa. E essa é a questão que não cala. Seria justo? É tão justo admitir que uma mulher aguarde os nove meses para que dê luz ao seu feto, ao filho anencefálico, como também representa justiça não se permitir que uma mulher que padece dessa tragédia, de assistir à missa de 7º dia do seu filho, levando-o ao ventre durante 9 meses, seja criminalizada e jogada no banco do Tribunal do Júri para ser julgada como se fosse a praticante de um delito contra a vida. (BRASIL, 2012, p. 159)

Destarte, esta interpretação para considerar inconstitucional dos artigos 124, 126 e 128 I demonstra que, além do caráter penal material, há a preocupação também com o âmbito processual: a íntima convicção dos jurados, embora respeitada por lei, pode ser induzida a considerar como criminosa uma mulher que meramente buscava a razoabilidade de manter outros direitos que lhes também são caros e por seu direito em nível constitucional. Mesmo que seja absolvida pelo júri, ainda assim ser submetida a uma investigação por parte do Ministério Público, logo após um ato tão doloroso que lhe prejudicou fisicamente, psicologicamente e emocionalmente, pode-se traduzir em um gesto ofensivo e insensível à sua dignidade de modo tão mais grave do que o direito à vida que feriu, apesar de realizado, dentro da legalidade, pelo poder estatal.

Após a APDF 54/DF, pode-se destacar duas ações relevantes que discutiam sobre o crime aqui em análise no Supremo Tribunal Federal: o Habeas Corpus 124.306/RJ, julgado em 2016, e a ADI 5.581/DF, em 2020. Sobre o primeiro acórdão, discorreu-se, na Primeira Turma do STF, sobre a ordem de prisão preventiva dois pacientes acusados de manterem uma clínica clandestina de aborto, enquadrados não só no tipo do artigo 126, como também no 288 (Formação de Quadrilha). O que se destaca é que o Redator do Acórdão, Ministro Luís Roberto Barroso, embora tenha defendido que o remédio constitucional não deveria ser concedido, aproveitou o ensejo de seu voto-vista para estabelecer como inconstitucional criminalizar a interrupção voluntária da gestação se realizada no primeiro trimestre:

No caso aqui analisado, está em discussão a tipificação penal do crime de aborto voluntário nos arts. 124 a 126 do Código Penal, que punem tanto o aborto provocado pela gestante quanto por terceiros com o consentimento da gestante. O bem jurídico protegido – vida potencial do feto – é evidentemente relevante. Porém, a criminalização do aborto antes de concluído o primeiro trimestre de gestação viola diversos direitos fundamentais da mulher, além de não observar suficientemente o princípio da proporcionalidade (BRASIL, 2016, p. 13).

O aproveitamento desde Habeas Corpus para estabelecer um prazo para não incidir a imputabilidade do crime de aborto mostra um avanço significativo da discussão que se iniciou sobre a decisão do que é vida ou não a partir da ADPF 54/DF, agora estabelecido um critério temporal para poder fazer valer direitos da mulher que devem ser proporcionalmente respeitados. Verifica-se, também, a coerência do Ministro Barroso, o qual, antes de ingressar como membro do Supremo Tribunal Federal, foi o advogado da referida Arguição a respeito da imputação de crime a quem interrompe a gravidez em casos de fetos anencefálicos. Denotou, assim, que não deixará, em sua mudança de função, um tema pertinente como este o qual advogava e carecia de posicionamentos advindos de instituições mais respeitadas como é o Supremo.

Silva e Assunção (2019) observam que este acórdão, comparado a outros Habeas Corpus e aos próprios ADI 3.510/DF e a ADPF 54/DF, é o que mais substancialmente avança em uma possibilidade de interrupção de vida em potencialidade sem ser configurado como crime, visto que as situações feto anencéfalo e embriões fertilizados in vitro são de casos de vida sem chance alguma de sobrevivência; assim, se a vida não é possível, conforme relatado pelo Ministro Marco Aurélio Melo em seu voto na ADPF 54/DF, não há o que ser tutelado e, assim, ser reconhecido como um bem jurídico alvo de um crime.

Neste sentido, o Ministro Barroso tece algumas considerações sobre o quanto que os dispositivos penais sobre o crime são retrógados, a carregar no aspecto punitivo antiquadas teses que não cabem mais hoje para recair sobre a mulher. Destaca a ineficiência deste crime para proteger o direito à vida do feto; o cunho reprobatório que incide, sobretudo, em mulheres pobres, e discorre o quanto que tem valor a reprovação moral por grupos religiosos, mas que isto não sirva de baliza para criminalizar a conduta do outro. Este tipo de consciência, segundo o Ministro, deve ser realizada por meio de políticas públicas de educação sexual, presentes em outros países e que, com tal educação sobre as liberdades de cada indivíduo, permitiu construir reflexões — especialmente no campo biológico — que levaram a descriminalização:

Nada obstante isso, para que não se confira uma proteção insuficiente nem aos direitos das mulheres, nem à vida do nascituro, é possível reconhecer a constitucionalidade da tipificação penal da cessação da gravidez que ocorre quando o feto já esteja mais desenvolvido. De acordo com o regime adotado em diversos países (como Alemanha, Bélgica, França, Uruguai e Cidade do México), a interrupção voluntária da gestação não deve ser criminalizada, pelo menos, durante o primeiro trimestre da gestação. Durante esse período, o córtex cerebral – que permite que o feto desenvolva sentimentos e racionalidade – ainda não foi formado, nem há qualquer potencialidade de vida fora do útero materno. Por tudo isso, é preciso conferir interpretação conforme a Constituição ao arts. 124 e 126 do Código Penal, para excluir do seu âmbito de incidência a interrupção voluntária da gestação efetivada no primeiro trimestre (BRASIL, 2016, p. 27).

O voto do Ministro Barroso foi acompanhado pelos Ministros Edson Fachin e Rosa Weber que, não apenas cuidou no caso específico de não reconhecer a impetração do Habeas Corpus, mas sim de revogar a ordem de prisão preventiva dos pacientes, como também averiguaram a pertinência de reinterpretar o fato da interrupção da gravidez no tempo corrente e a suas possíveis imputações como crime. Todavia, por se tratar de um Habeas Corpus, não apresenta força vinculante; o que é justamente buscado pela ADPF 442/DF, proposta pelo Partido Socialismo e Liberdade em 2017, que até a produção deste texto não foi julgada, e busca dar força vinculatória à possibilidade de interrupção da gravidez até o primeiro trimestre da gestação sem configurar como crime.

Após o HC 124.306/RJ, outro momento importante sobre a discussão da constitucionalidade do aborto em plenário do STF foi a ADI 5.581/DF. Seu objetivo era a revogação do artigo 18 da Lei nº 13.301/2016, que versava sobre a cessão de benefícios à criança nascida com microcefalia, em decorrência do Zika vírus. A Ação foi julgada improcedente, tanto pela perda do objeto, com a revogação do supracitado artigo antes do julgamento, bem como o não-reconhecimento da Associação Nacional dos Defensores Públicos — ANADEP como legítima para ser a requerente. Todavia, apesar da improcedência, novamente o Ministro Barroso utiliza de sua possibilidade de voto para manifestar o quanto que a polêmica sobre o aborto persiste:

Por outro lado, a extinção das ações adia a discussão de um tema que as principais supremas cortes e tribunais constitucionais do mundo em algum momento já enfrentaram: o tratamento constitucional e legal a ser dado à interrupção de gestação, aos direitos fundamentais da mulher e à proteção jurídica do feto. A reflexão que se segue, portanto, parece-me necessária e, em rigor, transcende a questão da Zika e da microcefalia, alcançando os direitos reprodutivos das mulheres de maneira geral. (BRASIL, 2020, p. 20)

Novamente o Ministro Barroso observa a necessidade que casos como a Zika e a microcefalia, assim como os anencéfalos, tendem a tornar cíclicas as discussões sobre os direitos da mulher e os direitos do feto, tendo por intermédio a constitucionalidade da interrupção da gestação pós-Constituição Federal de 1988 e que perdura por mais de três décadas da última promulgação constitucional. Este instigar da discussão pelo Ministro, enquanto membro da mais alta corte do Poder Judiciário brasileiro, pode demonstrar o quanto que uma Justiça do século XXI tem que ter os seus pontos de ligação com o direito sobrevivente dos séculos passados questionados, especialmente na desatualização em face aos direitos fundamentais, como neste caso em especial reflete no tratamento às mulheres para a disposição do próprio corpo.

Se por um lado pode parecer um assunto que aparece na ordem do dia de forma esporádica, por outro pode endossar o quanto que se trata de um tabu que a imposição moral religiosa histórica impôs para travar qualquer alteração que seja discutida. Condicionar o aborto como crime pelo mero fator de ser um pecado parece ser pouco, conforme discutido anteriormente, com a possibilidade da mulher que interrompera a própria gravidez ser levada à júri e confrontada pelo próprio Estado, na figura do Promotor de Justiça, a tentar convencer os jurados (estes embebidos pela tese cristã sobre a interrupção voluntária da gravidez) de que a ré merece a pecha de criminosa e tratada sob os auspícios rigorosos do sistema penal.

Assim, o Ministro Barroso destaca a fragilidade da tese de proteção à vida do feto que a imputação do crime de aborto objetiva defender, como um tipo penal em que, com sua existência, nada colabora para o carente certame de direitos fundamentais para as mulheres:

O aborto é um fato indesejável, e o papel do Estado e da sociedade deve ser o de procurar evitar que ele ocorra, dando o suporte necessário às mulheres. Essa é a premissa sobre a qual se assenta o raciocínio aqui desenvolvido. Reitero, porém, o meu entendimento, já manifestado em decisão anterior (HC 124.306), de que o tratamento do aborto como crime não tem produzido o resultado de elevar a proteção à vida do feto. Justamente ao contrário, países em que foi descriminalizada a interrupção da gestação até a 12ª semana conseguiram melhores resultados, proporcionando uma rede de apoio à gestante e à sua família. Esse tipo de política pública, mais acolhedora e menos repressiva, torna a prática do aborto mais rara e mais segura para a vida da mulher. (BRASIL, 2020, p. 20)

Percebe-se, destarte, a importância que o Supremo Tribunal Federal apresenta ao colocar em debate a permanência ou não da conduta de aborto como crime, dadas as transformações sociais que ocorreram desde 1940, uma vez que desde esse período não houve qualquer alteração na lei a respeito. A predominância da tese moral religiosa sobre várias instituições civis, entendido de capaz para repassar este dogma ao povo, acaba privando este de tomar melhor ciência do assunto, participar do debate e compreender as possibilidades que uma implementação de políticas e conceitos (como tratamentos seguros no processo de interrupção, reflexões sobre o direito da mulher de como dispor do próprio corpo) podem beneficiar a sociedade atual. E, enquanto eleitores, por consequência, torna tais temas melindrosos para serem debatidos em nível Legislativo e Executivo, por receio de falta de apoio ao trazer tais pautas para votação no Congresso.

O aborto, deste modo, trata-se de um de vários empecilhos que obstaculizam o progresso de políticas públicas em prol do bem estar das mulheres. E esta crescente tese de uma inconstitucionalização deste crime como ainda é entendido tende apenas a relegar à mulher um papel o qual ela não se presta mais nos dias de hoje. O caminho que o Supremo Tribunal Federal tem guiado, especialmente após o ingresso do Ministro Luís Roberto Barroso na corte, com as suas decisões a respeito do tema, demonstra que o Poder Judiciário se mostra receptivo para uma interpretação constitucional que não se restrinja ao absolutismo de um direito a um ser resguardado em prol de vilipendiar outros daquela que é imposta para concebê-lo.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PALHARES, Leonardo Tadeu Nogueira ; RAVJNAK, Leandro Luciano Silva et al. O aborto e o Supremo Tribunal Federal: julgados de 2012 a 2020. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7403, 8 out. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/106599. Acesso em: 11 mai. 2024.

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