Resumo: O aborto é um crime que tem como núcleo o direito à vida. Apesar de sua posição valiosa dentre outros bens jurídicos tutelados, ainda assim é relativo e, em face a diversas situações complexas sociais, é colocado em questão quando é confrontado em casos que o aborto pode ser entendido como a preservação da dignidade da mulher. Neste sentido, o Supremo Tribunal Federal tem-se revelado importante para julgar tal polêmica, no sentido de fazer valer direitos, dentre outros, do da mulher na disposição do próprio corpo. O objetivo deste trabalho é analisar três decisões do Supremo Tribunal Federal sobre o aborto, sendo elas a ADPF nº 54/DF, o Habeas Corpus 124.306/RJ, e a ADI 5.581/DF, proferidas entre 2012 a 2020. Trata-se de pesquisa bibliográfica e documental que deu-se por análise qualitativa de caráter descritivo, em diálogo com constitucionalistas, doutrinadores de direito penal e os votos dos ministros do STF sobre o aspecto criminoso da conduta de interrupção de gravidez. Os votos dos ministros do órgão de cúpula do poder judiciário brasileiro apontam para uma interpretação do aborto menos rigorosa, como a desclassificação do crime em caso de feto anencéfalo, a possibilidade de aborto até ao primeiro trimestre de gestação, correndo em um sentido hodierno de preservar a dignidade da mulher que deseja abortar, no sentido de maior controle sobre o seu próprio corpo. As decisões do STF contribuem, ante a morosidade do poder legislativo para uma alteração ou até mesmo a extinção da conduta, permitem colocar em discussão como a conduta do aborto, sem alterações desde a implementação do Código Penal vigente, entra em conflito com uma série de direitos hoje garantidos pelas mulheres, apontando para uma atualização em compasso com o progresso social promovido por, dentre outros, a nova realidade em questão de gênero.
Palavras-chave: Aborto. Descriminalização. Supremo Tribunal Federal.
Introdução
Este artigo pretende discutir sobre três decisões realizadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF), durante o período de 2012 a 2020, que versaram sobre a legalização, em algum grau, da prática do crime de aborto, tipificado dos artigos 124 ao 128 do Código Penal brasileiro. Os julgamentos selecionados para a análise são: a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54/DF, julgada em 2012; o Habeas Corpus 124.306/RJ, analisado em 2016; e a Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.581/DF, levada ao plenário em 2020. Os votos destes três julgados repercutiram substancialmente para a interpretação legal do polêmico crime supracitado, possibilitando uma redução do rigor de como a conduta é analisada, o que é positivo para um eventual entendimento que culmine em sua descriminalização.
Sendo o aborto um crime que tem como núcleo o direito à vida, será abordado na primeira seção algumas abordagens em viés constitucional de como este direito, apesar de sua posição valiosa dentre outros bens jurídicos tutelados, ainda assim é relativo e, em face a diversas situações complexas sociais, é colocado em questão quando é confrontado em casos que o aborto pode ser entendido como a preservação da dignidade da mulher. Para esta discussão, dialogaremos com Barroso (2018), Moraes (2021), Mendes e Branco (2021), dentre outros.
A segunda seção discorrerá sobre o viés doutrinário que penalistas apresentam sobre o crime de aborto. Serão discutidos cada um dos cinco artigos referentes à esta conduta no Código Penal, dialogando com os doutrinadores sobre as peculiaridades dos dispositivos que versam sobre a prática, suas causas de majoração da pena e a possibilidade de não punição por este exercício criminoso da interrupção da gravidez. Capes (2019), Masson (2018), Nucci (2020), dentre outros doutrinadores de direito penal, nortearão esta exposição.
A terceira seção trará os votos de alguns ministros do Supremo Tribunal Federal nas votações da ADPF nº 54/DF, Habeas Corpus 124.306/RJ e ADI 5.581/DF que apresentam pontos importantes que amenizaram o rigor a ser observado na prática do aborto, especialmente pela própria mãe que deseja interromper a gravidez, bem como as análises dos magistrados podem nortear uma eventual descriminalização da conduta. Na ADPF nº 54/DF, serão comentados os votos ministros Marco Aurélio Mello, Cezar Peluso, Ricardo Lewandowski e Luiz Fux, enquanto que, no Habeas Corpus 124.306/RJ e na ADI 5.581/DF, serão comentados os votos do ministro Luís Roberto Barroso, que apresentam apontamentos importantes para a interpretações recentes sobre a conduta de crime de aborto.
Nas considerações finais, destacamos como o órgão de cúpula do poder judiciário brasileiro atua para colocar, na ordem do dia, questões polêmicas como a descriminalização do aborto, no sentido de fazer valer direitos mais pertinentes na atualidade — especialmente das mulheres sobre a disposição do próprio corpo — em face de dispositivos legais que se mostram anacrônicos, mas não são compelidos pelos outros poderes da União por interesses políticos que não contribuem para um progresso social.
Proteção do Direito à Vida
Pode-se discutir que a questão principal sobre a proteção à vida é como um indivíduo respeita tal égide que paira sobre o seu semelhante: o homicídio, em que um mata o outro; a pena de morte, em que há uma outorga ao Estado para executar um condenado; o aborto, com o interromper de uma vida em potencial; e até a eutanásia, em que há a possibilidade de o indivíduo encerrar a própria existência, por exemplo, em virtude de alguma doença sem solução. Nestes termos, percebe-se como a dicotomia vida-morte traz impacto à existência em sociedade e, diante dos dilemas que ela evoca, é possível perceber o amparo jurídico ter como finalidade a proteção à vida.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos propõe que estes “[...]sejam protegidos pelo império da lei, para que o ser humano não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra a tirania e a opressão […]” (ONU, 1948). Observa Moraes (2021) que tal trecho, presente no preâmbulo da Declaração, demonstra uma adoção positivista de como os Direitos Humanos fundamentais se apresentam, a corroborar que sejam expressos no ordenamento jurídico positivado, apoiado por uma “[...] legítima manifestação da soberania popular[...]” (MORAES, 2021, p. 15). Nesta proposição, é possível perceber que o compromisso de um Estado assinante da Declaração é prezar, hodiernamente, que o caráter humano de seus nacionais não seja esfacelado pela tirania — o que poderia colocar em risco direitos como o próprio direito à vida, uma vez que uma crescente outorga de direitos absolutos, em determinado Estado, pode tender à maior tratamento desumano com um povo e, assim, a uma fragilidade estatal do compromisso com a vida.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi aprovada dois anos após a 5ª Constituição Brasileira, a Constituição Federal de 1946. Segundo Moraes (2021), tal Constituição apresentava um capítulo específico para direitos e garantias individuais, assegurando em seu artigo 141, “[...] a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida”; Já a Constituição de 1967 igualmente previa um capítulo de direitos e garantias individuais, e a emenda constitucional nº 1 de 17 de outubro de 1969 alterou profundamente a constituição que, embora possibilitava “excepcionais restrições aos direitos e garantias individuais, não trouxe nenhuma substancial alteração formal na enumeração dos direitos humanos fundamentais”, mantendo dentre eles o direito à vida (MORAES, 2021, p. 14-15).
Os constituintes da Constituição Federal1 de 1988, ao considerarem a Declaração Universal dos Direitos Humanos, trazem as ideias decorrentes do artigo 3º desta declaração: “Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal” (ONU, 1948). É possível perceber que se tratam de três níveis diferentes de direitos conferidos ao ser humano: o da existência; do direito de exercer livremente a sua condição de existir; e o resguardo tanto do primeiro quanto do segundo. E se verifica que ambos constam no caput do artigo 5º da Constituição Federal corrente:
Art. 5º: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes […]. (BRASIL, 1988, grifou-se).
Para Ramos (2021), o Brasil, ao levar em consideração tal documento para a confecção de sua Constituição Federal, inseriu o direito à vida, em distinção dentro do título dos direitos e garantias fundamentais, no capítulo dos direitos e deveres individuais e coletivos, assim como o direito à liberdade e à segurança, pois
[…] consistem no conjunto de direitos cujo conteúdo impacta a esfera de interesse protegido de um indivíduo. Por isso, são também considerados como sinônimos de ‘direitos de primeira geração’, pois representam os direitos clássicos de liberdade de agir do indivíduo em face do Estado e dos demais membros da coletividade. Representam direitos tanto a ações negativas do Estado (abstenção de agir do Estado) quanto a ações positivas (prestações) (RAMOS, 2021, p. 48).
Ainda segundo Ramos (2021), são direitos que podem ser identificados em toda a Constituição Federal, como em direitos políticos e sociais (RAMOS, 2021). Todo este processo de uma maior garantia de direitos ao indivíduo, tornando este o protagonista da lei em face ao Estado e grandes grupos coletivos, permite-se verificar o Direito Internacional dos Direitos Humanos, baseado na Declaração Universal dos Direitos Humanos, como elemento de constitucionalização dos Direitos Humanos, promovendo a transformação deste — e, conjuntamente, o direito à vida — como um direito fundamental.
Mazzuoli (2021) entende que direitos humanos, diferentemente de uma concepção comum que atribui tal expressão à proteção de ordem jurídica interna de um Estado — como em forma de Constituição Federal, por exemplo — entende tal conceito como de preocupação internacional; entende, ainda, os Direitos Humanos como um fundamento do direito que “[...] se atribui a cada pessoa humana pelo simples fato de sua existência”, fazendo valer a dignidade de cada indivíduo (MAZZUOLI, 2021, p. 27). Percebe-se, assim, a consignação da Constituição Federal de 1988 a Declaração Universal dos Direitos Humanos como uma ressignificação que o século XX apresenta, ao fim da Segunda Grande Guerra, do tratamento digno que a pessoa humana mereça.
Ainda discorre Mazzuoli (2021) que o direito à vida não é meramente físico, mas também abrange o desdobrar de toda a plenitude de condições de outros direitos — econômicos, sociais e culturais que também promovem a igualdade — não se trata meramente de direitos fundamentais, e sim Direitos Humanos que se complementam (MAZZUOLI, 2021, p. 27-28). Isto permite destacar ao bem jurídico da vida o caráter tal direito como basilar para a garantia dos demais.
Barroso (2018) percebe esta importância, e aponta sobre o direito à vida e as ramificações presentes em dispositivos infraconstitucionais, como o Direito Penal:
Todos os ordenamentos jurídicos protegem o direito à vida. Como consequência, o homicídio é tratado em todos eles como crime. A dignidade preenche, em quase toda sua extensão, o conteúdo desse direito. Não obstante isso, em torno do direito à vida se travam debates de grande complexidade moral e jurídica, como a pena de morte, o aborto e a eutanásia (BARROSO, 2018, p. 153).
Nesse viés, por se tratar de direito fundamental primário, o direito à vida inscreve nos direitos inerentes da pessoa humana, resguardando todos os demais bens jurídicos, que tem como dever garanti-lo de modo eficaz, amplo e seguro. Ainda destaca que:
Em primeiro lugar, e acima de tudo, porque inexiste hierarquia entre normas constitucionais. Embora se possa cogitar de certa hierarquia axiológica, tendo em vista determinados valores que seriam, em tese, mais elevados – como a dignidade da pessoa humana ou o direito à vida – a Constituição contém previsões de privação de liberdade (art. 5º, XLVI, a) e até de pena de morte (art. 5º, XLVII, a). Não é possível, no entanto, afirmar a inconstitucionalidade dessas disposições, frutos da mesma vontade constituinte originária. Por essa razão, uma norma constitucional não pode ser inconstitucional em face de outra (BARROSO, 2018, p. 184).
Esta discussão chama atenção quando categoriza como terminologias distintas a dignidade da pessoa humana e o direito à vida. Não se trata de uma oposição ou, como tratou de discorrer a respeito neste parágrafo, uma superveniência de uma norma constitucional sobre a outra, tópico que o próprio constitucionalista nestes ditos tratou como inexistente. Pressupõe que a dignidade da pessoa humana estaria mais relacionada com o modo ou meio que a pessoa irá vivenciar a sua existência, enquanto que o direito à vida estaria associado com a delimitação de dois pontos extremos: a origem e o finamento do sujeito. Endossa quando, a seguir, o autor exemplifica com as possíveis penas de privação de liberdade — dito primeiro, podendo ser associado com a dignidade — com a pena de morte — em relação ao crepúsculo do existir.
O direito à vida, assim, não é absoluto, com o endosso de que até mesmo a pena de morte se torna a exceção para o Estado brasileiro tendo em vista que é permitida apenas no caso de guerra declarada. Desta forma, o legislador relativiza a soberania do direito à vida, a não ser em casos excepcionais, bem como a subjetividade comocional evocada com a repercussão de certos crimes hediondos coloca em debate as vedações para a composição de uma legislação que preveja a pena capital.
Neste sentido, temas que envolvam a cessão da vida, como discorrem Mendes e Branco (2021), não se resumem à fixação legal de um marco temporal em fenômenos como o da gestação:
A expressão ‘direito à vida’ está particularmente ligada, hoje, à discussão sobre a legitimidade da interrupção do processo de gestação e ao debate sobre a liceidade da interrupção voluntária da existência em certas circunstâncias dramáticas e peculiares. O direito à vida, porém, não tem a sua abrangência restrita a essas questões. Estudos já o contemplavam desde tempos mais remotos, tanto em discursos seculares como em produções de cunho religioso […]. Em outros contextos, o direito à vida aparece vinculado aos direitos a integridade física, a alimentação adequada, a se vestir com dignidade, a moradia, a serviços médicos, ao descanso e aos serviços sociais indispensáveis (MENDES; BRANCO, 2021, p. 504).
Mendes e Branco (2021) denotam a valorização do viés aqui discutido do bem jurídico em exame. A vida, neste sentido, passa a ser protagonizada no que se discute a concepção e extinção (e, nesta área de conhecimento, quais os efeitos jurídicos que tais eventos proporcionam) enquanto que a jornada do cidadão, em que se incluem uma série de outros direitos — saúde, educação, moradia, dentre outros elencados no artigo 5º da Constituição Federal —, encontra-se mais vinculada à outros direitos do que como um direito à vida propriamente dito (BRASIL, 1988).
Em consonância com o que foi discutido com Barroso (2018), percebe-se que a discussão sobre o direito à vida emergido da Constituição Federal não se resume apenas aos pontos inicial e final de cada sujeito de direitos. Desta forma, é possível entender uma distinção entre a existência e a vivência humana, em interpretação dos constitucionalistas: a vida, associada a primeira proposição, gera mais polêmicas quando se aborda a permissão estatal de encerrar a existência, do que quando associada com a segunda condição, o que sugere que as condições de nascimento e óbito devem restar incólumes da intervenção estatal ante à crença da massa. Enquanto isso, a vida, para se viver com dignidade, também precisa de atenção, o que se permite observar polêmicas, por exemplo, como a falta de eficiência das políticas públicas e incentivo à educação voltada ao controle de natalidade pelo Estado, o que pode onerar a este uma incapacidade de gerir uma grande quantidade de habitantes.
Tavares (2020) também aponta a vida como não resumida em seus eventos de começo e de fim:
Desde o primeiro e mais essencial elemento do direito à vida, vale dizer, a garantia de continuar vivo, é preciso assinalar o momento a partir do qual se considera haver um ser humano vivo, assim como o momento em que, seguramente, cessa a existência humana e, nessa linha, o dever estatal, de cunho constitucional, de mantê-la e provê-la (TAVARES, 2020, p. 539).
Se o direito à vida fornece conflitos a respeito de um possível direito do Estado de encerrar ou não a existência de um cidadão, encontra-se também em controvérsia as perquirições sobre a concepção. Pode-se perceber que a polêmica se trata em fixar, para fins legais, em que momento do período de gestação poderia ser designado como o início da vida, ou até mesmo sendo conceituado com o fenômeno do nascimento. Destarte, verifica-se o quanto que as discussões sobre o direito à vida, pelos relatos dos constitucionalistas trazidos até então, concentram-se nos dois polos, enquanto que o processo de vivência, que pode para a maioria das pessoas ser sujeita à miséria, devido à falta de alcance do Estado acolher, mesmo sendo dever constitucional. Logo, entre a atenção sobre o direito de nascer e o de morrer, olvidam-se de assegurar o rol de outros direitos que assegurem uma vida digna.
Esta compreensão da vida como uma manifestação contínua, estendendo-se às implicações jurídicas decorrentes, é conceituada por Moraes (2018):
A vida humana é defendida como complexo de propriedades e qualidades graças às quais as pessoas naturais se mantêm em contínua atividade funcional, que se desenvolve entre o nascimento e a morte, embora a ordem jurídica brasileira ponha a salvo os direitos do nascituro desde a concepção, como também possibilita a reclamação de perdas e danos por ameaça ou lesão a direitos após o falecimento, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei (MORAES, 2018, p. 184)
Percebe-se que Moraes (2018), em divergência com o que foi apresentado aqui até então, estabelece que a vida — e, em especial, a vida humana — não abarca nem o nascimento, tampouco a morte. Mas atenta para que os direitos do nascituro já apresentam um resguardo civil, a tornar tal condição componente da série de questionamentos que se apresenta o evento do nascer. Da mesma forma, permite-se argumentar que a primordialidade do direito à vida incorre que somente com a existência jurídica do ser é que ele se torna capaz de contrair direitos e deveres, apesar de estarem a salvo, conforme o artigo 2º do Código Civil Brasileiro de 2002:
Art 2º — A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro (BRASIL, 2002).
Neste sentido, verifica-se que o garantir do nascimento, como um argumento contra o aborto, por exemplo, é o único direito que há durante a concepção para que, com o nascimento com vida, advenha para si todos os outros direitos que possa conferir. Um tópico seria a discussão de que aquele que está por vir, sem autonomia para decidir sobre a disposição da própria vida, não apresenta forma qualquer de expressão para se manifestar contra a própria vivência futura. Deste modo, pode-se pensar que há direitos os quais possa ser premiado, mas que, por terceiros, tal angariar possa ser impossível.
Deste modo, Padilha (2020), ao apontar sobre o direito à vida, aduz que
A vida é um verdadeiro pressuposto dos demais direitos fundamentais, uma vez que praticamente todos os direitos fundamentais dependem de vida para poderem ser exercidos. Por isso, apesar de não existir hierarquia normativa (pois todos os direitos estão no mesmo diploma – Constituição), axiologicamente é comum pessoas colocarem a vida como o principal direito fundamental (PADILHA, 2020, p. 349).
Esta interpretação, que permite posicionar o direito à vida não apenas como o direito maior e o que rege os demais direitos, torna possível conceituá-lo como o primeiro direito, que seria tão primordial que, dependendo do que se define como o início da vida, pode incumbir a aquele que está para nascer uma série de amparos que trazem consequências jurídicas aos que já possuem a personalidade jurídica consolidada, ou a formação completa é iminente. Desta maneira, apresenta-se, como um dos principais pontos para compreender uma maior deliberação de leis que versem sobre a possibilidade de extinção da vida, o entendimento de qual é o ponto de origem.
Tavares (2020) discute sobre a primeira problemática do direito à vida, ao listar divergentes teorias que discorrem sobre qual é o momento inicial da proteção e que, deste modo, já implica em proteção. Por exemplo, aborda a nidação, momento este que o óvulo fixa-se na parede uterina; a da implementação do sistema nervoso, em que o sistema nervoso central é formado entre duas a seis semanas de gestação; ou, ainda, a da concepção adotada pela Igreja Católica, em que apenas o ato de conceber no útero já abaliza uma existência passível de proteção à vida (TAVARES, 2020, p. 540).
Em que pese que as teorias da Nidação e da Implementação do Sistema Nervoso sejam de argumentos claramente biológicos e, por isso, poderem ser provados cientificamente por meio de experimentos, percebe-se que o da Concepção, por ser fruto de um pensamento religioso, e desta forma tocar aos melindres de algo que foi constituído pela crença, adentram em uma percepção de noção sobre a vida cuja fronteira entre a doutrina particular e o estabelecido legalmente não é rarefeita, ou seja: podem gerar tantas cizânias como a discussão sobre a legalização da pena de morte supracitada (TAVARES, 2020).
Todavia, Tavares (2020) não aborda neste capítulo que reserva na sua obra para tal tema a teoria natalista, item que Padilha (2020) não só o apresenta como em que a pessoa passa a existir com o nascimento em vida pela inalação de ar atmosférico, e desta maneira o nascituro não é pessoa, como também argumenta que há doutrinas que sustentam que esta seja a teoria adotada pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro, embora a proibição do aborto o faz crer que a corrente adotada em nível jurisdicional no brasil seja a concepcionalista que, diferente de Tavares com sua teoria da concepção, a resume como a “fecundação do óvulo pelo espermatozoide” e é endossado pelo Pacto de San José da Costa Rica (PADILHA, 2020, p. 350).
Deste modo, percebe-se que o bem jurídico da vida, no que tange ao seu entendimento em nível constitucional, tem-se em sua discussão a valorização que se dá ao começo e ao término em detrimento de seu decorrer. E a valorização deste direito propõe também pensar, frente àquilo que tem o que é dito como vida, àquilo que não a tem. Neste sentido, uma prática como a do aborto, pensada como a extinção prematura de uma vida, permite ser fonte de diversas discussões sobre qual é o momento de surgimento da vida e, deste modo, poder pensar, por exemplo, se não será crime se a interrupção da gravidez for realizada quando a vida não for constituída.