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O karatê e a responsabilização penal à luz do ordenamento jurídico brasileiro

14/02/2024 às 10:00
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Caso a lesão corporal seja praticada fora do ambiente desportivo, e estando ausente a estrita necessidade, restará caracterizada uma causa de aumento de pena.

A prática de artes marciais, como o Karatê, por exemplo, pode ser considerada como causa de aumento de pena quando da avaliação das circunstâncias judiciais do art. 59 do Código Penal, para a fixação da reprimenda pelo magistrado. O assunto ganha especial relevância no cenário jurídico brasileiro devido à interpretação do tema levada a efeito recentemente pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do AREsp nº 2.053.119/SC, Sexta Turma, DJe de 30/6/2023.

No Brasil, o Karatê é um esporte amplamente institucionalizado e regulamentado pela Confederação Brasileira de Karatê (CBK), o que o torna relevante para os fins do presente trabalho. A referida decisão do STJ reconheceu que a prática de artes marciais pode configurar causa de aumento de pena em certas situações, como por exemplo, naquelas em que o excesso pelo agente praticante e o uso desproporcional das técnicas fora do ambiente desportivo, seja devidamente comprovado.

Esse precedente abre um debate sobre a correlação entre as artes marciais e a legislação penal, cujas ramificações e implicações merecem uma análise detalhada.

O Karatê é uma arte marcial cuja prática pode ensejar lesão corporal ou, em casos extremos, até morte, fatos que não são puníveis penalmente no Brasil por configurar livre exercício de direito.

Trata-se de uma modalidade desportiva com longa tradição no Brasil. O esporte consiste na prática técnicas de autodefesa e condicionamento físico, sendo amplamente praticado em todo o mundo.

No Brasil, conforme já adiantado, a modalidade desportiva é regulamentada pela Confederação Brasileira de Karatê, a CBK, Entidade Nacional de Administração do Desporto Karatê, fundada em 11/09/1987, reconhecida pelo MEC – Portaria nº 551/87 – filiada à World Karate Federation, vinculada ao Comitê Olímpico Brasileiro – modalidade reconhecida pelo Comitê Olímpico Internacional.2

Segundo a CBK:

“Entende-se como Karate-Do a prática complementar de formação cultural e desportiva baseada no desenvolvimento peculiar dos sistemas de defesa pessoal e evolução interior característicos de Okinawa em seus primórdios (século XVIII) e do Japão a partir do início do século XX.

Karate é uma palavra japonesa que significa "mãos vazias". É uma arte altamente científica, fazendo o mais eficaz uso de todas as partes do corpo para fins de auto-defesa. O maior objetivo do karate é a perfeição do caráter, através de árduo treinamento e rigorosa disciplina da mente e do corpo. O karate-ka (cultor de karate-do) utiliza como armas as mãos, os braços, as pernas, os pés, enfim, qualquer parte do corpo.

Além de ser um excelente meio de auto-defesa, o karate também é um meio ideal de exercício. Ele desenvolve a força, a velocidade, a coordenação motora,o condicionamento físico e é reconhecido também por seus valores terapêuticos.

O combate desarmado nasceu antes da história escrita, mas as origens mais remotas são obscuras, muitas vezes encobertas pelo folclore de uma variedade de culturas do mundo.

Várias formas de combate desarmado eram praticadas na Índia, na China, em Formosa e em Okinawa, uma ilha ao sul do Japão. Em Okinawa, as lutas desarmadas foram desenvolvidas em segredo durante muito tempo, devido à influência dos fidalgos japoneses que conquistaram a ilha, proibindo os seus súditos de carregarem armas. Esta proibição de andarem armados obrigou muitas pessoas a praticar formas de combate sem armas, em segredo.

O karate moderno nasceu na época em que o finado Mestre GichinFunakoshi (1868-1957), então líder da Sociedade Okinawa de Artes Marciais, foi solicitado pelo Ministério da Educação do Japão, em maio de 1922 a conduzir apresentações de karate em Tóquio. A nova arte foi recebida entusiasticamente e foi introduzida em várias universidades, onde criou raízes e começou a florescer.

Devido ao fato do karate ter sido praticado secretamente no passado, um grande número de escolas e estilos (Ryus) foram desenvolvidos. Hoje existem inúmeras escolas no Japão, sendo as mais destacadas: Shotokan, Goju-Ryu, Shito-Ryu e Wado-Ryu, todas com ramificações pelo mundo afora”.3

A CBK ostenta várias normas e documentos referentes à prática do Karatê,4 e possui em sua estrutura jurisdicional o Superior Tribunal de Justiça Desportiva do Karatê, o STJDK, com as publicações legislações a ele inerentes.5

Como muitas outras atividades desportivas, o Karatê pode ocasionalmente resultar em lesões corporais, e em casos extremos, até mesmo na perda da vida. No entanto, o enquadramento legal desses incidentes em relação à responsabilização penal é complexo, devido ao reconhecimento constitucional do desporto como um direito fundamental. Assim, em tese, os atletas e seus instrutores (professores e Senseis) não podem ser responsabilizados penalmente pelo exercício da arte marcial quando praticada apropriadamente.

Com efeito, o art. 217 da Constituição Federal reconhece o desporto como um direito fundamental e estabelece o dever do Estado de fomentar e incentivar as práticas desportivas. Ele estabelece que "é dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não formais, como direito de cada um (...)." Esse reconhecimento enfatiza a importância do desporto na sociedade, não apenas como uma atividade física, mas como um instrumento de promoção do bem-estar, da saúde, da educação e da inclusão social.

Como expressão do desporto, a prática do Karatê, assim como outras modalidades esportivas, é resguardada de responsabilização penal, à luz do Artigo 217 da Constituição Federal, desde que seja conduzida em conformidade com as regras e princípios inerentes à prática desportiva. Nesse contexto, é relevante explorar mais profundamente os fundamentos dessa imunidade penal, levando em consideração não apenas o direito legislado, mas também as normas de cultura que permeiam a vida social.

Uma abordagem abrangente da impossibilidade de responsabilização penal na prática do Karatê requer a consideração de causas extralegais ou supralegais de exclusão da ilicitude. Além das causas expressamente previstas na lei, como legítima defesa e estado de necessidade, há espaço para a análise das causas supralegais.

Isso se aplica, por exemplo, a esportes que envolvem violência controlada, bem como a intervenções cirúrgicas e outras situações em que a sociedade reconhece a licitude de ações que, sob circunstâncias normais, seriam consideradas ilícitas.

A legislação penal estabelece o "exercício regular de direito" como uma causa descriminante que afasta a ilicitude da conduta. Nesse sentido, o art. 23, inciso III, do Código Penal estabelece que “Não há crime quando o agente pratica o fato em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito”.

Por exercício regular de direito, Nucci traz o seguinte conceito:

“É o desempenho de uma atividade ou a prática de uma conduta autorizada por lei, que torna lícito um fato típico. Se alguém exercita um direito, previsto e autorizado de algum modo pelo ordenamento jurídico, não pode ser punido, como se praticasse um delito” (NUCCI, 2016, p. 268 – grifou-se).6

Esse conceito, embora não definido de maneira exaustiva, pode ser aplicado de forma ampla, abrangendo situações em que o agente atua em conformidade com normas e práticas socialmente aceitas. A prática da atividade, devidamente regulamentada e conduzida sob a supervisão de instrutores qualificados, se encaixa perfeitamente nesse contexto. Ao tratar das lesões praticadas no esporte, Nucci ensina que

“Trata-se, em regra, de exercício regular de direito, quando respeitadas as regras do esporte praticado. Exemplo disso é a luta de boxe, cujo objetivo é justamente nocautear o adversário. Fugindo das normas esportivas, deve o agente responder pelo abuso (excesso doloso ou culposo) ou valer-se de outra modalidade de excludente, tal como o consentimento do ofendido ou mesmo levando-se em consideração a teoria da adequação social” (NUCCI, 2016, p. 271).7

Afirma ainda o doutrinador, que “Por outro lado, considerando-se o consentimento do ofendido, pode-se deduzir que, em um jogo violento de parte a parte, os jogadores acabam abrindo mão da proteção inerente à sua integridade física, não podendo reclamar, depois, de eventuais lesões sofridas” (op. cit. p. 271).

Fernando Capez vai além, e entende que o fato sequer configura crime (é atípico), e nesse sentido, consigna que

“Entendemos que o fato é atípico, por influxo da teoria da imputação objetiva. A violência é inerente a determinadas práticas esportivas, como o boxe, e eventual em outras, como o futebol. Tanto a lesão prevista pelas regras do desporto quanto aquela praticada fora do regulamento, mas como um desdobramento natural e previsível do jogo, não constituem fato típico. Com efeito, é impossível lutar com os punhos sem provocar ofensa à integridade corporal de outrem.

(...) O risco de lesões e até mesmo de morte é um risco permitido e tolerado, após o Poder Público sopesar todos os prós e os contras de autorizar a luta. Aceita eventuais danos e até mesmo tragédias, para, em compensação, obter o aprimoramento físico e cultural proporcionado pelo esporte. Mesmo nos casos em que a violência não é da essência da modalidade esportiva, não poderá ela ser considerada típica, quando houver nexo causal com o desporto.

(...) Quem aceita praticar a modalidade implicitamente consente em sofrer eventuais lesões, sem as quais seria impossível tal prática. Proporcionalmente compensa ver toda uma sociedade sadia, ainda que possam ocorrer eventuais resultados danosos à integridade corporal dos praticantes.” (CAPEZ, 211, p. 318-319).8

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Ações que possam parecer contrárias à lei à primeira vista, como os movimentos e técnicas do Karatê, podem ser consideradas legais, mas somente quando realizadas dentro do contexto desportivo e de acordo com as práticas comuns no ambiente das artes marciais.

Caso a lesão corporal seja praticada fora do ambiente desportivo, e estando ausente a estrita necessidade (casos extremos) restará caracterizada uma causa de aumento de pena. Esse é o recente entendimento do STJ, conforme se verifica do seguinte precedente:

“AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. LESÃO CORPORAL QUALIFICADA. DOSIMETRIA DA PENA. CULPABILIDADE. VALORAÇÃO NEGATIVA MEDIANTE FUNDAMENTO VÁLIDO.

1. Tem-se por justificado o trato negativo da vetorial culpabilidade diante do fato de o réu ser praticante de artes marciais, o que, em se considerando os princípios éticos da prática desportiva, de não utilização da violência salvo em casos extremos, justifica validamente a exasperação da pena-base, porquanto evidencia maior reprovabilidade da conduta, sendo imprópria, de todo modo, a revisão do entendimento firmado pelas instâncias ordinárias na estreita via do especial.

4. Agravo regimental improvido.”9 (AgRg no AREsp 2.053.119/SC, relator Ministro Jesuíno Rissato (Desembargador Convocado do TJDFT), Sexta Turma, DJe de 30/6/2023).

Assim, o tratamento mais rígido da culpabilidade do réu que é praticante de artes marciais encontra justificação nessa condição específica. Isso se baseia nos princípios éticos inerentes à prática de qualquer arte marcial, que preconizam a restrição ao uso da violência, exceto em circunstâncias extremas. Assim, é plenamente legítimo aumentar a pena-base, visto que essa condição demonstra uma maior reprovabilidade da conduta do réu.

De toda forma, contudo, é importante examinar minuciosamente as circunstâncias do caso concreto, a fim de evitar que a agravamento da pena seja aplicado em situações em que o indivíduo tenha tido experiência anterior como praticante de artes marciais, mas que não esteja mais envolvido com essa prática atualmente.

É dizer: A análise mais abrangente da impossibilidade de responsabilização penal na prática do Karatê revela que, além das bases legislativas, o reconhecimento das causas supralegais de exclusão da ilicitude e a inexigibilidade de conduta não violenta seja essencial. O "exercício regular de direito" abrange não apenas o que está estritamente previsto na lei, mas também as normas de cultura, os princípios gerais do direito, o costume e a analogia.

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O Estado, ao fomentar e incentivar o desporto, protege o exercício regular de direitos, tornando-o imune à responsabilização penal, desde que a prática ocorra no contexto do desporto, e de acordo com as regras esportivas. Atletas, professores, instrutores, técnicos e Senseis, em tese, não devem ser responsabilizados por apenas exercer o múnus que o desporto lhes autoriza. O caso concreto é que evidenciará se a arte marcial foi praticada de acordo com o ordenamento jurídico.


  1. ...

  2. Confederação Brasileira de Karatê. Disponível em: <https://www.karatedobrasil.com/_files/ugd/03d59d_27818c915c1b44b08ace21b6d5480354.pdf>. Acesso em 16/10/2023.

  3. Disponível em: < https://www.karatedobrasil.com/historia>. Acesso em 16/10/2023.

  4. Disponível em: <https://www.karatedobrasil.com/documentos-oficiais>. Acesso em 16/10/ 2023.

  5. Disponível em: <https://www.karatedobrasil.com/menu-stjdk>. Acesso em 16/10/2023.

  6. NUCCI, Guilherme de Souza, Manual de direito penal – 12. ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2016.

  7. NUCCI, op. cit.

  8. Capez, Fernando. Curso de direito penal, volume 1, parte geral: (arts. 1º a 120) – 15. ed. – São Paulo: Saraiva, 2011.

  9. Brasil. Supreior Tribunal de Justiça. AgRg no AREsp n. 2.053.119/SC, relator Ministro Jesuíno Rissato (Desembargador Convocado do TJDFT), Sexta Turma, DJe de 30/6/2023).

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Sobre o autor
Leonis de Oliveira Queiroz

Mestre em Regulação e Políticas Públicas (Universidade de Brasília - UNB, conceito CAPES 6). Pós-graduação em Direito Público. Graduação em Direito e em Segurança da Informação. Ex- Conselheiro do Conselho Penitenciário do Distrito Federal COPEN/DF. Servidor do Superior Tribunal de Justiça (ex-assessor da Presidência). Advogado licenciado. Autor de diversos artigos publicados em diferentes periódicos e revistas eletrônicas.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

QUEIROZ, Leonis Oliveira. O karatê e a responsabilização penal à luz do ordenamento jurídico brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7532, 14 fev. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/106759. Acesso em: 3 out. 2024.

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