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A abstrativização do controle difuso

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15/12/2007 às 00:00
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4.A inconstitucionalidade da vedação de progressão de regime nos crimes hediondos

Não há como não citar a emblemática decisão do plenário do Supremo que declarou a inconstitucionalidade do § 1°, art. 2°, da Lei 8.072/90 – Progressão de regime nos crimes hediondos – em sede do Habeas Corpus 82.959/SP. Tal decisão se mostra como paradigma que veio a fundamentar a possibilidade da adoção da teoria da abstrativização do controle difuso.

Na ocasião do julgamento do HC 82.959/SP [10], em 23/02/06, o plenário ressaltou que a declaração incidental de inconstitucionalidade da vedação da progressão de regime nos crimes hediondos não geraria conseqüências jurídicas em relação às penas já extintas nesta data, pois esta decisão plenária envolve, unicamente, o afastamento do óbice representado pela norma ora declarada inconstitucional, sem prejuízo da apreciação, caso a caso, pelo magistrado competente, dos demais requisitos pertinentes ao reconhecimento da possibilidade de progressão.

Sem embargo de opiniões contrárias, a decisão sobre a inconstitucionalidade da vedação de progressão de regime para os crimes hediondos se mostrou um divisor de águas para a adoção da abstrativização do controle difuso. O Tribunal, naquela ocasião, "explicitou que a declaração incidental de inconstitucionalidade do preceito legal em questão não gerará conseqüências jurídicas com relação às penas já extintas nesta data" [11]. Complementou ainda, afirmando que "esta decisão plenária envolve, unicamente, o afastamento do óbice representado pela norma ora declarada inconstitucional, sem prejuízo da apreciação, caso a caso, pelo magistrado competente, dos demais requisitos pertinentes ao reconhecimento da possibilidade de progressão." [12]

No mesmo sentido foi o voto do Ministro Gilmar Mendes, tendo este realçado, na ocasião, que "esse efeito ex nunc deve ser entendido como aplicável às condenações que envolvam situações ainda suscetíveis de serem submetidas aos regimes de progressão." [13]

Observa-se, portanto, que o Supremo Tribunal Federal no julgamento do HC 82.959/SP, ao menos aparentemente, passou a adotar a teoria da abstrativização do controle difuso [14].

Isto porque, em julgamento de habeas corpus, onde a inconstitucionalidade era alegada como causa de pedir – portanto o controle era difuso – o Supremo Tribunal Federal afirmou expressamente que a progressão de regime deveria, a partir daquele momento, ser apreciada casuisticamente pelos magistrados.

Com fundamento nesta decisão, foi interposta a Reclamação 4335/AC [15], posto que o Juiz de Direito da Vara de Execuções Penais da Comarca de Rio Branco/AC indeferira pedido de progressão de regime em favor de condenado a pena de reclusão em regime integralmente fechado, sob a alegação que a decisão proferida pelo Supremo ocorreu em sede de controle difuso, com efeitos, portanto, inter partes.

O julgamento de tal Reclamação ainda encontra-se em andamento, contudo, pode-se identificar o desenvolvimento de duas teses no Supremo.

Uma primeira corrente defendida pelo Ministro Gilmar Mendes, relator da reclamação, e acompanhado pelo Ministro Eros Grau, afirmou, inicialmente, o cabimento da reclamação no caso em espécie.

Aduziu-se que, de acordo com a doutrina tradicional, a suspensão da execução pelo Senado do ato declarado inconstitucional pelo Supremo seria ato político que empresta eficácia erga omnes às decisões definitivas sobre inconstitucionalidade proferidas em caso concreto. No entanto, que a amplitude conferida ao controle abstrato de normas e a possibilidade de se suspender, liminarmente, a eficácia de leis ou atos normativos, com eficácia geral, no contexto da CF/88, concorreram para infirmar a crença na própria justificativa do instituto da suspensão da execução do ato pelo Senado, inspirado numa concepção de separação de poderes que hoje estaria ultrapassada. Ressaltou, ademais, que ao alargar, de forma significativa, o rol de entes e órgãos legitimados a provocar o Supremo Tribunal Federal, no processo de controle abstrato de normas, o constituinte restringiu a amplitude do controle difuso de constitucionalidade.

Considerou o relator que, em razão disso, bem como da multiplicação de decisões dotadas de eficácia geral e do advento da Lei 9.882/99, alterou-se de forma radical a concepção que dominava sobre a divisão de poderes, tornando comum no sistema a decisão com eficácia geral, que era excepcional sob a EC 16/65 e a CF 67/69. Salientou serem inevitáveis, portanto, as reinterpretações dos institutos vinculados ao controle incidental de inconstitucionalidade, notadamente o da exigência da maioria absoluta para declaração de inconstitucionalidade e o da suspensão de execução da lei pelo Senado Federal. Reputou ser legítimo entender que, atualmente, a fórmula relativa à suspensão de execução da lei pelo Senado há de ter simples efeito de publicidade, ou seja, se o STF, em sede de controle incidental, declarar, definitivamente, que a lei é inconstitucional, essa decisão terá efeitos gerais, fazendo-se a comunicação àquela Casa legislativa para que publique a decisão no Diário do Congresso. Concluiu, assim, que as decisões proferidas pelo juízo reclamado desrespeitaram a eficácia erga omnes que deve ser atribuída à decisão do Supremo no HC 82959/SP.

Por essa corrente, portanto, ocorreu uma mutação constitucional na interpretação da norma extraída do art. 52, inciso X, da Constituição Federal.

Em divergência, os Ministros Sepúlveda Pertences e Joaquim Barbosa entenderam não ser cabível a reclamação, contudo, concederam, de ofício, ordem de habeas corpus.

Ambos afirmaram que não se poderia reduzir-se o papel do Senado, que quase todos os textos constitucionais subseqüentes a 1934 mantiveram. Igualmente, ressaltaram ser evidente que a convivência paralela, desde a EC 16/65, dos dois sistemas de controle tem levado a uma prevalência do controle concentrado, e que o mecanismo, no controle difuso, de outorga ao Senado da competência para a suspensão da execução da lei tem se tornado cada vez mais obsoleto, mas afirmou que combatê-lo, por meio do que chamou de "projeto de decreto de mutação constitucional" [16], já não seria mais necessário.

Importante foi a afirmativa de que a EC 45/2004 dotou o Supremo de um poder que, praticamente, sem reduzir o Senado a um órgão de publicidade de suas decisões, dispensaria essa intervenção, qual seja, o instituto da súmula vinculante (CF, art. 103-A). A suspensão da execução da lei pelo Senado, portanto, não representaria obstáculo à ampla efetividade das decisões do Supremo, mas complemento. Dessa forma, haveria de ser mantida a leitura tradicional do art. 52, X, da Constituição Federal, que trata de uma autorização ao Senado de determinar a suspensão de execução do dispositivo tido por inconstitucional e não de uma faculdade de cercear a autoridade do Supremo.

Esse posicionamento afasta a tese de mutação constitucional, posto que a mutação é a atribuição de uma nova norma ao mesmo texto constitucional. Contudo, pelos argumentos apresentados favoráveis a abstrativização do controle difuso, ocorreria, sim, a substituição de um texto por outro texto, construído pelo próprio Supremo Tribunal Federal.


5.CRÍTICA A TEORIA DA ABSTRATIVIZAÇÃO

Os votos proferidos pelos Ministros Gilmar Mendes e Eros Grau foram duramente criticados e atacados pela doutrina mais resistente a tese da abstrativização.

Afirmam que caso a abstrativização venha a prevalecer na jurisprudência do Supremo haverá uma nova concepção, não somente do controle de constitucionalidade no Brasil, mas também de Poder Constituinte, de equilíbrio entre os Poderes da República e do próprio sistema federativo [17]. Ocorreria uma verdadeira ruptura paradigmática no plano da jurisdição constitucional.

Os argumentos contrários a abstrativização podem ser resumidos nos seguintes.

No controle de constitucionalidade abstrato há a participação da sociedade no chamado processo objetivo. Tal fato ocorre por meio da figura do amicus curiae, o que legitimaria a eficácia erga omnes e vinculante das decisões em sede desse tipo de controle.

Contudo, no controle difuso de constitucionalidade, a participação democrática da sociedade somente ocorreria, de forma indireta, por meio mesmo da participação política do Senado Federal na suspensão da execução da lei declarada inconstitucional – art. 52, inciso X, da Constituição Federal. Excluir, ou mesmo diminuir, a função do Senado Federal no controle de constitucionalidade difuso significaria retirar do controle difuso de constitucionalidade a legitimidade democrática.

Data máxima venia, tais argumentos não nos parecem acertados para o sistema de controle de constitucionalidade adotado pelo direito brasileiro. É certo que tais argumentos são plenamente válidos para países que adotam unicamente o controle difuso. Eventual ausência de legitimidade dos órgãos jurisdicionais, posto que não foram eleitos pelo povo, deve ser compensada pelo poder legislativo, verdadeiros representantes do povo. Contudo, vale lembrar que o direito brasileiro adotou um sistema de controle de constitucionalidade híbrido, eclético ou misto, posto que se utiliza tanto do sistema abstrato, quanto do difuso.

Nessa medida, pelo fato do direito brasileiro utilizar também o sistema abstrato e concentrado de controle de constitucionalidade, perde um pouco de sentido tal discussão. Isto porque, nada impede a utilização no controle de constitucionalidade difuso, quanto a matéria objeto de exame for afeta ao plenário do Supremo, da figura do amicus curiae. O argumento da ilegitimidade estaria superado, portanto.

Outrossim, a própria argumentação de que o Senado Federal, pelo fato de seus integrantes serem eleitos pelo povo, possuiria maior legitimidade democrática que os membros do Judiciário, em especial do próprio Supremo Tribunal Federal, merece uma maior reflexão, tendo em vista a especial crise que atinge o Brasil.

Infelizmente, a realidade, ao menos nesse ponto, encontra-se dissociada da teoria. O Legislativo, com seus atos cobertos pela legitimidade democrática que lhes atribui o mandato eletivo, não vem demonstrando cumprindo adequadamente suas funções. Atualmente, há uma enorme carência em reformas que necessitam da participação direta do Legislativo, seja pela necessidade de Emendas a Constituição, seja pela elaboração ou reforma da legislação infraconstitucional. Enquanto isso, o legislativo permanece paralisado em CPIs infindáveis, tal qual espetáculos pirotécnicos, merecedores mesmo de premiações cinematográficas.

Não nos parece que essa seja a vontade popular; não nos parece que as negociatas com o Poder Executivo, objetivando a aprovação de emendas parlamentares, seja a vontade do povo. Atualmente, é verdade, o Poder Legislativo vive uma verdadeira crise de personalidade, posto que muitas utiliza a retórica de servir aos interesses do povo, para servir seus próprios interesses.

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Se não fosse o fato dessa crise de legitimidade do próprio Poder Legislativo, o qual com sua inércia vem causando um vácuo legislativo, talvez o Supremo Tribunal Federal não necessitasse com cada vez mais freqüência atuar positivamente objetivando preencher essa ausência.

Foi assim, como exemplo, com o direito de greve dos servidores públicos. Tal garantia, pendente de regulamentação desde a Emenda Constitucional 4/98, somente veio a ser regulamentada com o julgamento do Mandado de Injunção de 712-8 do Pará, bem como a alteração de posicionamento do Supremo sobre o papel do Mandado de Injunção da prestação e efetivação da jurisdição constitucional.

Não foi outra a postura sobre a recente decisão sobre infidelidade partidária e mandato, MS 26602, em que se decidiu que o mandato pertence ao partido político. Mais uma vez, frente à inércia legislativa em se promover a tão esperada reforma política, o Supremo Tribunal Federal emite louvável decisão, respondendo, sim, as necessidades do povo.

Nos parece que é o Supremo Tribunal Federal, ao menos atualmente, que efetivamente vem respondendo às necessidades do povo, apesar da teórica ausência de legitimidade democrática.


CONCLUSÃO:

É fato que Supremo, atualmente, encontra-se assoberbado de processos que, muitas vezes, somente atingem interesses meramente privados, o que demanda uma real restrição de tais litígios à sua apreciação.

É fato, também, que o próprio papel do Senado Federal no controle difuso sem mostra um tanto anacrônico, frente à coexistência do controle concentrado, posto que se a decisão do Supremo, em sede de controle concentrado, possui efeitos erga omnes e vinculantes, não se mostra razoável que a mesma decisão emitida pelo Supremo (diga-se, plenário) ao julgar determinada matéria, causa de pedir em um controle difuso, tenha apenas eficácia inter partes.

É certo que tais hipóteses são excepcionais, na medida em que somente quando a Turma afetar a análise da matéria ao plenário do Supremo Tribunal Federal é que se suscita a tese da abstrativização do controle difuso.

O argumento da desnecessidade de se chegar a mutação constitucional do art. 52, inciso X, da Constituição Federal, dispensando-se, portanto, a abstrativização do controle difuso, na medida em que o Poder Constituinte Derivado disponibilizou o instrumento da Súmula Vinculante é sedutor, posto que ambos os institutos (abstrativização do controle difuso e Súmula Vinculante) geram os mesmos efeitos – erga omnes e vinculante.

Contudo, tal argumento não soluciona o problema, posto que o quorum para se aprovar Súmula Vinculante é de dois terços, diverso daquele para se declarar a inconstitucionalidade – maioria absoluta. O Poder Constituinte Derivado teria sido mais feliz se estabelecesse o mesmo quorum de maioria absoluta para a Súmula Vinculante.

Sem embargo, portanto, das críticas dirigidas a mutação constitucional do art. 52, inciso X, da Constituição Federal, vemos na adoção da abstrativização do controle difuso o caminho para uma melhor prestação da jurisdição constitucional, na medida em que diminuirá, certamente, a interposição de inúmeros recursos/ações autônomas de impugnação objetivando reformar decisões dos tribunais/juízes, tendo em vista que a matéria já foi pacificada pelo plenário.

Não se mostra acertada, data maxima vênia, ao menos frente à realidade brasileira, sobre eventual quebra de separação dos poderes, muito menos sobre ausência de legitimidade democrática nas decisões do Judiciário.

Isto porque, tal alteração de paradigma é resultado das tantas crises enfrentadas pelo Poder Legislativo – diga-se nesse ponto, crise de (im)probidade – bem como da inércia legislativa, tão repelida pela sociedade.

Tais argumentos, rechaçando a tese da abstrativização do controle difuso, caso tivéssemos um legislativo um pouco mais probo e eficaz, exercendo mesmo as funções esperadas de um poder de Estado. Contudo, este não é o caso do Brasil, ao menos atualmente.

Com isso, acreditamos que a abstrativização do controle difuso de constitucionalidade, caso venha a se firmar na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, será um grande passo, mas não o único, a conferir maio efetividade a prestação da Jurisdição Constitucional.

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Sobre o autor
Marcus Vinícius Lopes Montez

bacharel em Direito, pós-graduando pela Universidade Estácio de Sá

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MONTEZ, Marcus Vinícius Lopes. A abstrativização do controle difuso. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1627, 15 dez. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10711. Acesso em: 24 abr. 2024.

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