Trata o presente trabalho da impossibilidade da atualização dos valores das multas de trânsito da forma como está estabelecida no Código de Trânsito Brasileiro, CTB – Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997, art. 258 – in verbis:
Art. 258. As infrações punidas com multa classificam-se, de acordo com sua gravidade, em quatro categorias:
I - infração de natureza gravíssima, punida com multa de valor correspondente a 180 (cento e oitenta) UFIR;
II - infração de natureza grave, punida com multa de valor correspondente a 120 (cento e vinte) UFIR;
III - infração de natureza média, punida com multa de valor correspondente a 80 (oitenta) UFIR;
IV - infração de natureza leve, punida com multa de valor correspondente a 50 (cinqüenta) UFIR.
§ 1º Os valores das multas serão corrigidos no primeiro dia útil de cada mês pela variação da UFIR ou outro índice legal de correção dos débitos fiscais.
§ 2º Quando se tratar de multa agravada, o fator multiplicador ou índice adicional específico é o previsto neste Código.
Expressamente, o CTB definiu a Unidade Fiscal de Referência – Ufir – como indexador dos valores das multas de trânsito, visando manter a capacidade punitiva da Administração frente aos administrados, atualizando seus valores mês a mês por força do indexador. De outra forma, com o passar do tempo, o valor da pena pecuniária se deterioraria, deixando de se consubstanciar em elemento de desestímulo ao cometimento de infrações àquele regramento.
Instituída pelo art. 1º da Lei nº 8.383, de 30 de dezembro de 1991, a Ufir foi criada para garantir ao fisco a manutenção do poder arrecadatório da Administração Fazendária Federal, diante do agravamento do quadro inflacionário, e da efetiva punição pela aplicação de multas de qualquer natureza, mantendo o caráter desestimulador da penalidade. Vejamos:
Art. 1° Fica instituída a Unidade Fiscal de Referência (Ufir), como medida de valor e parâmetro de atualização monetária de tributos e de valores expressos em cruzeiros na legislação tributária federal, bem como os relativos a multas e penalidades de qualquer natureza.
Neste ponto cabe destacar a falha existente no CTB ao indicar que a atualização dos valores das multas se daria pela Ufir ou "outro índice legal de correção dos débitos fiscais". A Ufir não é um índice, é um indexador de natureza monetária que, frisando, tinha o objetivo de atualizar o valor monetário do tributo. A atualização da Ufir era obtida através de uma cesta de índices – INPC, IGP, IGP-DI e IPC – mas era expressa em forma de valor monetário, uma unidade monetária.
A diferenciação entre índice e indexador nasce justamente do fato do indexador ser expressão monetária de valor, enquanto o índice reflete uma variação de determinado valor ou valores. No caso em tela, o indexador Ufir era atualizado periodicamente por um índice definido, visando atualizar o valor monetário expresso.
Alterado o cenário econômico nacional, com o Plano Real, a Ufir teve seu fim em 26 de outubro de 2000, pela Medida Provisória nº 1.973-67, quando a sua expressão monetária era de R$ 1,0641 (um real e seiscentos e quarenta e um milésimos). Os valores expressos em Ufir deveriam ser convertidos para Real com base neste último quantum.
Assim, as multas previstas no CTB passaram a ser valoradas da seguinte forma: gravíssima, R$ 191,54; grave, R$ 127,69; média, 85,13; leve, R$ 53,20. Estes valores foram positivados pela Resolução nº 136, de 2 de abril de 2002, do Contran. Nada mais fez o Contran que converter os valores previstos no CTB, em Ufir, para o valor em moeda corrente.
O problema surge então da necessidade legal de atualização destes valores, como determina o art. 258, §1º, do CTB. Isto deveria se dar pelo índice legal de atualização de débitos fiscais, mensalmente, índice este que não está definido claramente na legislação.
Para a identificação de qual seria este índice, devemos compreender o mens legislatori que revestiu a determinação de atualização por outro parâmetro na ausência da Ufir. Cabe esclarecer que a interpretação via mens legislatori procura entender o que o legislador queria dizer, independente do que realmente acabou registrando no texto da norma jurídica.
Sendo a Ufir indexador que buscava a correção monetária dos valores das multas, o interesse do legislador seria o de salvaguardar o instrumento punitivo da desvalorização da moeda. Violaria este interesse estabelecer a correção por qualquer outro índice que implicasse, além de corrigir seu valor, em aumento real do montante da penalidade, considerado adequado pelo legislador quando da feitura do CTB.
O índice utilizado para a correção dos débitos fiscais hoje é a taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e Custódia – Selic. Sua aplicação na atualização dos valores das multas de trânsito é inviável por sua definição. Vejamos [01]:
É a taxa apurada no Selic, obtida mediante o cálculo da taxa média ponderada e ajustada das operações de financiamento por um dia, lastreadas em títulos públicos federais e cursadas no referido sistema ou em câmaras de compensação e liquidação de ativos, na forma de operações compromissadas. Esclarecemos que, neste caso, as operações compromissadas são operações de venda de títulos com compromisso de recompra assumido pelo vendedor, concomitante com compromisso de revenda assumido pelo comprador, para liquidação no dia útil seguinte. Ressaltamos, ainda, que estão aptas a realizar operações compromissadas, por um dia útil, fundamentalmente as instituições financeiras habilitadas, tais como bancos, caixas econômicas, sociedades corretoras de títulos e valores mobiliários e sociedades distribuidoras de títulos e valores mobiliários.
A compra e venda compromissada funciona quando uma instituição financeira vende, pelo Selic, títulos públicos comprometendo-se a recomprá-los em prazo determinado, por um preço maior do que o da venda. Daí a denominação da operação. O ágio existente entre o valor da venda e o da recompra é a remuneração do capital empregado pelo comprador.
Verifica-se, portanto, que a Selic possui natureza de juros remuneratórios que representam a retribuição pela utilização do capital alheio, não servindo como parâmetro para a atualização monetária de valores. A idéia desta taxa seria desestimular o contribuinte a aplicar nas operações em bolsa o valor que deveria ser recolhido aos cofres públicos, cuja multa pelo não pagamento seria menor do que os lucros que poderiam ser auferidos no mercado.
Sob esta ótica, incabível a utilização da Taxa Selic na atualização dos valores das multas previstas no CTB, entendendo que a função da atualização prevista no Código seria a de manter o caráter punitivo da penalidade, impedindo a sua perda de valor frente à desvalorização da moeda.
No contexto histórico da feitura do CTB – alta inflação e constante desvalorização da moeda – uma das medidas para atualizar os valores cobrados pela Administração, mantendo seu valor real, era a indexação. Contudo, não se faz mais presente o cenário que motivou tal iniciativa. Houve a chamada "desindexação da economia" desaparecendo o indexador que atualizava o valor das penalidades.
Neste ponto devemos atentar para o fato de que a proposta colocada pelo legislador na norma era a da indexação para garantir o efetivo valor da multa, impedindo que, por conta da desvalorização da moeda, seu valor caísse a um nível a partir do qual o Administrado não teria qualquer pudor em desrespeitar a legislação, pois o custo pelo desrespeito seria de tal forma baixo que ele se sentiria disposto a pagar. Citando Foucault "encontrar para um crime o castigo que convém é encontrar a desvantagem cuja idéia seja tal que torne definitivamente sem atração a idéia de um delito".
Assim, as normas punitivas têm que estar apoiadas na efetividade da punição e no impacto que esta punição terá sobre o infrator. Se ao infringir a norma o infrator tem consciência de que a possibilidade de punição é pequena, não há desestímulo, ainda que a pena seja alta. Na mesma vereda, se, infringida a norma, a probabilidade de punição seja alta, porém os efeitos da punição sejam baixos, a conduta reprovável prevalece, pois o preço do descumprimento é baixo e não desmotivador.
Sob está celeuma, entendo desnecessário o debate sobre o valor do índice de reajuste dos valores das multas. Não há índice possível a ser aplicado sobre os valores definidos no Código, pois o parâmetro indicado por aquela norma não reflete hoje a idéia de atualização monetária antes exercida pela Ufir.
Repisando, o índice que corrige o débito fiscal é a Taxa Selic. A utilização de qualquer outro atualizador – IGP-M, IPCA etc. – que não a Ufir ou a Taxa Selic é ilegal, pois a Lei manda que seja a Ufir ou o índice que atualiza os débitos fiscais. Mas a Selic já foi demonstrada como incabível, sob a ótica da atualização monetária.
Diante disto, não há como alterar os valores, atualizando-os. Não cabe ao Contran determinar o valor das multas ou qual seria o índice de sua atualização. Não cabe ao órgão regulamentador definir novos valores e/ou novo índice – já que inexistente na atual conjuntura econômica os indexadores – que incidirão para majorar aquilo que foi firmado pela norma legal.
Ex positis, devido à natureza do instrumento jurídico utilizado para o estabelecimento dos valores das penas, é inadmissível outra via senão a da edição de lei em sentido formal. A concretização de novos valores deve, obrigatoriamente, passar pela modificação do artigo 258 do Código de Trânsito.
Aproveitando a oportunidade e a conveniência, deveria ser observada a efetividade dos valores das multas no eficaz desestímulo ao infrator. Após dez anos da instituição do CTB caberia até mesmo avaliar se o valor das penalidades, que se pretende simplesmente atualizar, é viável para cumprir o papel de afastar a idéia da infração.
Tratar-se-ia da reavaliação e da adequação dos valores das multas, não de simples reajuste. Sabe-se que esta é a tarefa mais árdua e necessitará de amplo debate, com ânimos acirrados tanto no sentido de endurecer as penas, quanto no de minorá-las. Contudo, possivelmente seria a mais legítima e tecnicamente correta.
Nota
01 http://www.bcb.gov.br/?SELICDESCRICAO. Disponível em 23/11/2007.