Ainda não cessaram as polêmicas geradas pelo filme "Tropa de Elite", de José Padilha. Cada um dá sua versão: (a) é um filme que apenas mostra a realidade brasileira (um país em Estado de exceção permanente); (b) faz descarada apologia "fascista" do Estado de polícia; (c) induz a uma propaganda da violência, etc.
Contardo Calligaris (Folha de S. Paulo, 11/10/07, p. E16) nos transmitiu sua impressão psicanalítica: as classes privilegiadas brasileiras (supostamente "ordeiras") ostentam um forte e difuso sentimento de culpa social, que não produz ação, e sim, descarrego. Diante de um filme que escancara a violência e corrupção nossa de cada dia, "somos autorizados a fazer pouco ou nada para que a situação mude porque o sofrimento de nossa consciência nos absolve" ("nóis goza" – de muitos privilégios –, mas "nóis sofre" de muita culpa, diria José Simão).
Na verdade, tanto o sentimento coletivo de culpa (pelas injustiças do país, pela desigualdade, etc), que caracteriza os "privilegiados", como o sentimento de injustiça (que domina os marginalizados, excluídos, etc) pode gerar múltiplos e específicos descarregos.
Em relação ao primeiro (sentimento de culpa), o descarrego pode adotar várias formas: (a) omissiva (não precisamos fazer nada para mudar a situação porque já estamos sofrendo muito); (b) ativa (o sujeito vai à missa aos domingos e pede perdão pelas culpas que carrega; pode, às vezes, ir a uma sessão própria de descarrego).
Mas de todas as possíveis, há uma modalidade muito especial de descarrego que consiste em castigar e reprimir, nos outros, a culpa que o sujeito carrega dentro de si.
Cuida-se de um descarrego punitivista, que pode assumir várias faces: dentro da lei, por meio da lei ou fora da lei. O descarrego punitivista dentro da lei se faz por intermédio da aplicação do Direito penal (enquanto razoável, é legítimo). O que está fora da lei pertence ao Estado de polícia e de anomia (Estado sem lei). E o que é celebrado por meio da lei é uma aberração praticada pelo legislador que, mediante formas legais, aprova coisas absolutamente inadmissíveis e incompatíveis com o Estado constitucional de Direito (penas excessivas, cortes de direitos fundamentais etc).
O descarrego fora da lei ou mediante a aprovação de uma lei explica a existência do PPIB (poder punitivo interno bruto), que nada tem a ver, diga-se de passagem, com o poder punitivo legítimo decorrente do Direito penal: o primeiro é ilegal e se exprime de várias maneiras; o segundo é feito dentro da lei e da razoabilidade. Quando o descarrego punitivista perde a referência comum da lei (e do justo Direito) ele se transforma em poder punitivo interno bruto típico do Estado de polícia e de anomia.
A diferença entre o descarrego não punitivista e o punitivista é a seguinte: no primeiro o "privilegiado" diz: "nóis goza" (de muitos privilégios), mas "nóis sofre" (de muita culpa); no segundo, o agente punitivista (polícia, Ministério Público, juiz, legislador, etc) goza duas vezes: goza porque conta com múltiplos "privilégios" e goza porque pune, nos outros, o sentimento de culpa que carrega dentro de si.
E quando esse agente público (policial, juiz, desembargador ou ministro) adentra os meandros da criminalidade (fraudulenta ou violenta, como no caso do "Tropa de Elite") ele goza três vezes: (a) com seus "privilégios", (b) porque reprime, nos outros, os sentimentos próprios de culpa, e (c) porque desfruta de um novo sentimento, o do prazer.
Os privilegiados parlamentares que se acham mergulhados em corrupção, lavagem de dinheiro, falcatruas de toda espécie, falsificações, sonegações e negociatas (parlamentares do mensalão, do sanguessuga etc.) constituem exemplos dos que desfrutam (a) do prazer que o crime oferece, (b) dos seus "privilégios" republicanos e ainda conseguem (c) fazer seus descarregos no momento em que aprovam novas leis penais, punindo severamente os outros e nos outros os sentimentos próprios de culpa (ou seja: as culpas que carregam). Todas as vezes que vemos uma nova lei penal dura, implacável ou moralizadora, cabe sempre examinar o quanto de descarrego punitivista há nela.
A origem do sentimento de culpa (de um agente punitivista fora da lei ou por meio da lei) tanto pode ser social (a situação geral do país, a desigualdade, injustiça frente às classes baixas) como individual. Neste último caso, ele decorre dos atos ilícitos que o sujeito praticou ou está praticando, ou ainda dos incontáveis ilícitos que ele está se reprimindo (por não ter ainda praticado).
Do ponto de vista dos injustiçados (que carregam o sentimento de injustiça, diante dos culpados) a perspectiva é outra: normalmente ele se omite diante das injustiças (carrega seu sofrimento resignadamente, sem nada reclamar); mas seu descarrego pode assumir tanto (a) a postura ativa (protestos, movimentos de reforma, etc – eles dizem: "nóis sofre" mas nós protestamos!) como (b) a postura criminosa (essa é a atitude dos chamados "correrias", segundo Ferréz, que dizem: "nóis sofre", porque somos marginalizados e excluídos, mas "nóis também goza", perturbando ou se apropriando da tranqüilidade, da vida ou do patrimônio dos que estão "no andar de cima").
Ou seja: no estado de "desigualdade social degradada" (Roberto Schwarz) ninguém mais tem sossego, nem os privilegiados, nem os descamisados. Todos sofrem (os segundos mais que os primeiros, lógico, mas todos pagam sua cota de sacrifício). A ninguém é dado o direito de desfrutar tranqüilamente a vida!
Mas o descarrego criminoso, de qualquer modo (seja dos "correrias", seja das "tropas de elite", seja, enfim, das "piratarias" ou das "Ciscos" da vida), com bem pondera Contardo Calligaris, é estapafúrdio, porque deriva de uma "contabilidade pela qual há cidadãos que devem e outros aos quais é devido, sem a mediação de lei alguma" (Folha de S. Paulo, 11/10/07, p. E16). Claro que devemos combater as injustiças e as desigualdades sociais, mas nunca podemos aprovar ou incrementar o Estado de polícia ou de anomia.
A que conclusão chegamos? À seguinte: quando o sentimento de culpa ou de injustiça organiza nossa visão do mundo (Calligaris), todo tipo de descarrego criminoso seria permitido: roubar, ser corrupto, sonegar, extorquir, dirigir embriagado e matar gente no trânsito etc.
No atual contexto de desmoralização generalizada, o argumento principal seria o seguinte: "se Renan Calheiros é presidente do Senado, eu posso tudo".
O que acaba de ser exposto não só retrata um Estado de anomia como pode conduzir a uma guerra de todos contra todos (Bellium omnium contra omnes). Bem diria Jorge Ben Jor: "se malandro soubesse como é bom ser honesto seria honesto só por malandragem".