Segundo Adolf Wach, o fim do processo não é teórico, mas prático.
Imaginemos as seguintes hipóteses:
- 1a hipótese. O réu é denunciado e pronunciado por homicídio qualificado, mas o júri não reconhece a qualificadora. Irresignado, apela o Ministério Público, entendendo que o não-acolhimento da qualificadora constituiu decisão manifestamente contrária à prova dos autos. A defesa deixa de apelar. Ou apela intempestivamente.
- 2a hipótese. O réu é denunciado e pronunciado por homicídio qualificado, mas o júri não reconhece a forma qualificada. Apela a defesa entendendo que a decisão do júri, ao não acolher a tese de legítima defesa, p. ex, decidiu manifestamente contra a prova dos autos. Também apela o Ministério Público, entendendo que o não-acolhimento da qualificadora afrontou a prova dos autos. O Tribunal entende estar com razão só o Ministério Público.
- 3a hipótese. O réu é denunciado, pronunciado e condenado por homicídio qualificado. O Ministério Público deixa de recorrer, mas a defesa recorre, insurgindo-se tão-somente quanto à qualificadora acolhida pelos jurados.
Nesses casos, ainda é entendimento doutrinário e jurisprudencial majoritário que o réu deve ser julgado pela integralidade dos fatos. Entretanto, sustento posição diferente. Entendo que nesses casos o júri deve examinar tão-só a qualificadora.
Passo a examinar cada um dos casos. Mas em todos eles há um traço comum: o réu, pronunciado por delito qualificado, resta condenado pelo Júri na forma simples; em recurso, o Tribunal entende que a decisão quanto à qualificadora não acolhida desgarrou-se da prova.
1a hipótese
Suponhamos que o réu seja denunciado e pronunciado por homicídio qualificado. Mas o órgão julgador popular acaba condenando o réu somente por homicídio simples, afastando, pois, a qualificadora.
A defesa conforma-se com a condenação por homicídio simples: não apela. Ou apela intempestivamente, o que acarreta a mesma conseqüência. Entretanto, a acusação oficial recorre, e tempestivamente, postulando que o Tribunal de Justiça determine novo julgamento porque o Júri, ao não acolher a qualificadora, decidiu manifestamente contra a prova dos autos.
Ao contrário do que tem decidido a jurisprudência, entendo que julgando e provendo o recurso ministerial, a Câmara Criminal deve determinar o novo julgamento tão-somente para que seja examinada a qualificadora, não devendo o processo ser examinado novamente pelo Júri na sua integralidade (com exame de mérito), isto porque nem mesmo a defesa discutiu a condenação. Restou, pois, indiscutível e soberana a decisão condenatória. Apenas o Ministério Público é que não se conformou com o não-reconhecimento da qualificadora. Portanto, não há que se discutir a condenação quando até a defesa conformou-se com o homicídio simples. Caso seja determinado o julgamento pela integralidade do processo, poderá o réu até resultar absolvido pelo fato, o qual não foi objeto da decisão da superior instância.
De rigor, não houve sucumbência com relação à condenação, pois "a sucumbência nada mais é senão aquela desconformidade entre o que foi pedido e o que foi concedido"(1).
Aliás, a 4a Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, de forma inédita, já decidiu neste sentido:
JÚRI. NÃO RECONHECIMENTO DAS QUALIFICADORAS DO MEIO CRUEL E DA SURPRESA. DETERMINAÇÃO DE NOVO JÚRI PARA QUESTIONAMENTO TÃO-SÓ DO MEIO CRUEL. É manifestamente contrária à prova dos autos a decisão que não reconhece o meio cruel, quando o homicídio é praticado mediante brutal espancamento, com pontapés e pisoteios na cabeça da vítima. Constantes discussões e brigas do casal possibilitam o afastamento da qualificadora do recurso que dificultou a defesa da vítima. Determinação de novo júri apenas para o exame da qualificadora do meio cruel (grifo é meu). Recurso ministerial provido por unanimidade.
Dr. Érico Barone Pires - (...) Então, o nobre Conselho de Sentença, ao desacolher a qualificadora do meio cruel, pela escassa maioria de quatro votos, decidiu manifestamente contra a prova dos autos, o que impõe o provimento do recurso para que o réu seja submetido a novo julgamento pelo júri de Estância Velha, embora mantida a condenação pelo homicídio simples. (...)
Daí por que dou provimento à apelação para que o réu seja submetido a novo júri, tão-somente para exame e novo questionamento da qualificadora do meio cruel.
Dr. José Antônio Paganella Boschi "Com muita propriedade Geraldo Batista de Siqueira, Raimundo Pedreira Martini e Maria da Silva Siqueira defendem a tese de que, na hipótese de sucumbência da parte, apenas quanto à matéria secundária, o apelo deve versar somente sobre esta, que lhe foi adversa, permanecendo intocado o restante da decisão que lhe foi favorável. Assim, por exemplo, a acusação pode apelar, alegando decisão manifestamente contrária à prova dos autos pelo não-reconhecimento de uma qualificadora, permanecendo intocada a condenação por homicídio simples, parte em que não é sucumbente" (Mirabete, Processo Penal, Atlas, p. 614). Com esse acréscimo, acompanho V. Exa.(2)
2a hipótese
Suponhamos que o réu tenha sido pronunciado e julgado por homicídio qualificado, mas o Júri o tenha condenado por homicídio simples. A defesa apela, insurgindo-se contra o não-reconhecimento da tese de legítima defesa própria, por exemplo, e o Ministério Público, por não terem os jurados acolhido a qualificadora.
Quanto ao recurso defensivo, a segunda instância entende que a decisão do Júri, ao não acolher a defesa legítima, está correta o Júri tinha prova para afastá-la. Portanto, está mantida a soberania do Júri. Já quanto ao recurso ministerial, decide mandar o réu a novo julgamento, por entender que a decisão do júri, que não acolheu a qualificadora, é manifestamente contrária à prova dos autos.
Neste caso, ainda é entendimento jurisprudencial dominante que o réu deve ir a novo julgamento na integralidade do processo, ou seja, haverá novo exame de mérito, podendo inclusive ser absolvido.
Entretanto, essa orientação é contraditória, pois ao mesmo tempo em que o Tribunal entende estar correta a condenação, ao afastar a tese defensiva, manda-o a novo julgamento, a fim de que seja novamente julgado o mérito. É como se dissesse: "o réu foi corretamente condenado, mas o júri deve examinar novamente a tese defensiva".
Não há razão para que o júri examine mais uma vez o mérito, pois este já foi decidido pelos jurados ao afastar a tese da defesa, e confirmado pela Câmara quando, examinando o recurso defensivo, entendeu que a decisão do Júri não é manifestamente contrária à prova dos autos.
Por isso entendo que o réu deve ir a novo julgamento popular, mas tão-só pela qualificadora excluída, e não pela integralidade do processo, como comumente tem-se decidido.
3a hipótese
Suponhamos que o réu tenha sido denunciado, pronunciado e finalmente condenado pelo júri por crime de homicídio qualificado.
A defesa recorre somente da qualificadora, aduzindo que a decisão que a acolheu foi manifestamente contrária à prova carreada aos autos.
Como se sabe, a apelação pode ser ampla ou restrita (limitada). Naquela espécie, é devolvida ao Tribunal toda matéria anteriormente decidida; nesta, somente é analisado o que é indicado pelo recorrente. Vale o princípio nemo judex sine actore, que impede seja apreciada a parte da decisão da qual não apelou o interessado. Vale também o princípio tantum devolutum quantum apellatum.
A hipótese em testilha é caso de apelação limitada. A defesa restou conformada com a condenação, tendo se insurgido somente em relação à qualificadora acolhida. Destarte, se nem a defesa quer discutir o homicídio, por que deve o Tribunal mandar o réu a novo julgamento por esse motivo? Mais uma vez a posição tradicional cria uma contradição.
CONCLUSÃO
Como antes referido, o fim do processo não é teórico, mas prático. Por isso desconsidero qualquer celeuma em relação à discussão sobre se a qualificadora integra ou não o tipo. Desimporta.
Tanto é verdade que é obrigatória a formulação de quesito do excesso culposo na tentativa de homicídio. Mas isso é juridicamente contraditório. Se for dada resposta afirmativa ao quesito, resta o réu condenado pela esdrúxula figura da tentativa culposa de homicídio, aplicando-se-lhe a pena correspondente.
O fato é que, sendo um réu pronunciado por delito qualificado, e restar condenado pelo Júri na forma simples, o Tribunal, entendendo que a decisão quanto à qualificadora não acolhida desgarrou-se da prova, deverá mandar o réu a novo julgamento, mas tão-só para o exame da qualificadora. Isto é ser prático; assim é que se alcança a verdadeira finalidade do processo.
NOTAS
1. Tourinho Filho, in Processo Penal, Ed. Saraiva, SP, 1990, vol. 4o/284. Mirabete. Processo Penal, 1992, pág. 585
2. Revista de Jurisprudência do TJRGS 173/136. Apelação-Crime n. 695026393 4a Câmara Criminal Estância Velha. Relator Des. Érico Barone Pires.