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Novo julgamento pelo júri: só pela qualificadora

01/10/2000 às 00:00
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Segundo Adolf Wach, o fim do processo não é teórico, mas prático.

Imaginemos as seguintes hipóteses:

- 1a hipótese. O réu é denunciado e pronunciado por homicídio qualificado, mas o júri não reconhece a qualificadora. Irresignado, apela o Ministério Público, entendendo que o não-acolhimento da qualificadora constituiu decisão manifestamente contrária à prova dos autos. A defesa deixa de apelar. Ou apela intempestivamente.

- 2a hipótese. O réu é denunciado e pronunciado por homicídio qualificado, mas o júri não reconhece a forma qualificada. Apela a defesa entendendo que a decisão do júri, ao não acolher a tese de legítima defesa, p. ex, decidiu manifestamente contra a prova dos autos. Também apela o Ministério Público, entendendo que o não-acolhimento da qualificadora afrontou a prova dos autos. O Tribunal entende estar com razão só o Ministério Público.

- 3a hipótese. O réu é denunciado, pronunciado e condenado por homicídio qualificado. O Ministério Público deixa de recorrer, mas a defesa recorre, insurgindo-se tão-somente quanto à qualificadora acolhida pelos jurados.

Nesses casos, ainda é entendimento doutrinário e jurisprudencial majoritário que o réu deve ser julgado pela integralidade dos fatos. Entretanto, sustento posição diferente. Entendo que nesses casos o júri deve examinar tão-só a qualificadora.

Passo a examinar cada um dos casos. Mas em todos eles há um traço comum: o réu, pronunciado por delito qualificado, resta condenado pelo Júri na forma simples; em recurso, o Tribunal entende que a decisão quanto à qualificadora não acolhida desgarrou-se da prova.


1a hipótese

Suponhamos que o réu seja denunciado e pronunciado por homicídio qualificado. Mas o órgão julgador popular acaba condenando o réu somente por homicídio simples, afastando, pois, a qualificadora.

A defesa conforma-se com a condenação por homicídio simples: não apela. Ou apela intempestivamente, o que acarreta a mesma conseqüência. Entretanto, a acusação oficial recorre, e tempestivamente, postulando que o Tribunal de Justiça determine novo julgamento porque o Júri, ao não acolher a qualificadora, decidiu manifestamente contra a prova dos autos.

Ao contrário do que tem decidido a jurisprudência, entendo que julgando e provendo o recurso ministerial, a Câmara Criminal deve determinar o novo julgamento tão-somente para que seja examinada a qualificadora, não devendo o processo ser examinado novamente pelo Júri na sua integralidade (com exame de mérito), isto porque nem mesmo a defesa discutiu a condenação. Restou, pois, indiscutível e soberana a decisão condenatória. Apenas o Ministério Público é que não se conformou com o não-reconhecimento da qualificadora. Portanto, não há que se discutir a condenação quando até a defesa conformou-se com o homicídio simples. Caso seja determinado o julgamento pela integralidade do processo, poderá o réu até resultar absolvido pelo fato, o qual não foi objeto da decisão da superior instância.

De rigor, não houve sucumbência com relação à condenação, pois "a sucumbência nada mais é senão aquela desconformidade entre o que foi pedido e o que foi concedido"(1).

Aliás, a 4a Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, de forma inédita, já decidiu neste sentido:

JÚRI. NÃO RECONHECIMENTO DAS QUALIFICADORAS DO MEIO CRUEL E DA SURPRESA. DETERMINAÇÃO DE NOVO JÚRI PARA QUESTIONAMENTO TÃO-SÓ DO MEIO CRUEL. É manifestamente contrária à prova dos autos a decisão que não reconhece o meio cruel, quando o homicídio é praticado mediante brutal espancamento, com pontapés e pisoteios na cabeça da vítima. Constantes discussões e brigas do casal possibilitam o afastamento da qualificadora do recurso que dificultou a defesa da vítima. Determinação de novo júri apenas para o exame da qualificadora do meio cruel (grifo é meu). Recurso ministerial provido por unanimidade.

Dr. Érico Barone Pires - (...) Então, o nobre Conselho de Sentença, ao desacolher a qualificadora do meio cruel, pela escassa maioria de quatro votos, decidiu manifestamente contra a prova dos autos, o que impõe o provimento do recurso para que o réu seja submetido a novo julgamento pelo júri de Estância Velha, embora mantida a condenação pelo homicídio simples. (...)

Daí por que dou provimento à apelação para que o réu seja submetido a novo júri, tão-somente para exame e novo questionamento da qualificadora do meio cruel.

Dr. José Antônio Paganella Boschi – "Com muita propriedade Geraldo Batista de Siqueira, Raimundo Pedreira Martini e Maria da Silva Siqueira defendem a tese de que, na hipótese de sucumbência da parte, apenas quanto à matéria secundária, o apelo deve versar somente sobre esta, que lhe foi adversa, permanecendo intocado o restante da decisão que lhe foi favorável. Assim, por exemplo, a acusação pode apelar, alegando decisão manifestamente contrária à prova dos autos pelo não-reconhecimento de uma qualificadora, permanecendo intocada a condenação por homicídio simples, parte em que não é sucumbente" (Mirabete, Processo Penal, Atlas, p. 614). Com esse acréscimo, acompanho V. Exa.(2)


2a hipótese

Suponhamos que o réu tenha sido pronunciado e julgado por homicídio qualificado, mas o Júri o tenha condenado por homicídio simples. A defesa apela, insurgindo-se contra o não-reconhecimento da tese de legítima defesa própria, por exemplo, e o Ministério Público, por não terem os jurados acolhido a qualificadora.

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Quanto ao recurso defensivo, a segunda instância entende que a decisão do Júri, ao não acolher a defesa legítima, está correta – o Júri tinha prova para afastá-la. Portanto, está mantida a soberania do Júri. Já quanto ao recurso ministerial, decide mandar o réu a novo julgamento, por entender que a decisão do júri, que não acolheu a qualificadora, é manifestamente contrária à prova dos autos.

Neste caso, ainda é entendimento jurisprudencial dominante que o réu deve ir a novo julgamento na integralidade do processo, ou seja, haverá novo exame de mérito, podendo inclusive ser absolvido.

Entretanto, essa orientação é contraditória, pois ao mesmo tempo em que o Tribunal entende estar correta a condenação, ao afastar a tese defensiva, manda-o a novo julgamento, a fim de que seja novamente julgado o mérito. É como se dissesse: "o réu foi corretamente condenado, mas o júri deve examinar novamente a tese defensiva".

Não há razão para que o júri examine mais uma vez o mérito, pois este já foi decidido pelos jurados ao afastar a tese da defesa, e confirmado pela Câmara quando, examinando o recurso defensivo, entendeu que a decisão do Júri não é manifestamente contrária à prova dos autos.

Por isso entendo que o réu deve ir a novo julgamento popular, mas tão-só pela qualificadora excluída, e não pela integralidade do processo, como comumente tem-se decidido.


3a hipótese

Suponhamos que o réu tenha sido denunciado, pronunciado e finalmente condenado pelo júri por crime de homicídio qualificado.

A defesa recorre somente da qualificadora, aduzindo que a decisão que a acolheu foi manifestamente contrária à prova carreada aos autos.

Como se sabe, a apelação pode ser ampla ou restrita (limitada). Naquela espécie, é devolvida ao Tribunal toda matéria anteriormente decidida; nesta, somente é analisado o que é indicado pelo recorrente. Vale o princípio nemo judex sine actore, que impede seja apreciada a parte da decisão da qual não apelou o interessado. Vale também o princípio tantum devolutum quantum apellatum.

A hipótese em testilha é caso de apelação limitada. A defesa restou conformada com a condenação, tendo se insurgido somente em relação à qualificadora acolhida. Destarte, se nem a defesa quer discutir o homicídio, por que deve o Tribunal mandar o réu a novo julgamento por esse motivo? Mais uma vez a posição tradicional cria uma contradição.


CONCLUSÃO

Como antes referido, o fim do processo não é teórico, mas prático. Por isso desconsidero qualquer celeuma em relação à discussão sobre se a qualificadora integra ou não o tipo. Desimporta.

Tanto é verdade que é obrigatória a formulação de quesito do excesso culposo na tentativa de homicídio. Mas isso é juridicamente contraditório. Se for dada resposta afirmativa ao quesito, resta o réu condenado pela esdrúxula figura da tentativa culposa de homicídio, aplicando-se-lhe a pena correspondente.

O fato é que, sendo um réu pronunciado por delito qualificado, e restar condenado pelo Júri na forma simples, o Tribunal, entendendo que a decisão quanto à qualificadora não acolhida desgarrou-se da prova, deverá mandar o réu a novo julgamento, mas tão-só para o exame da qualificadora. Isto é ser prático; assim é que se alcança a verdadeira finalidade do processo.


NOTAS

1. Tourinho Filho, in Processo Penal, Ed. Saraiva, SP, 1990, vol. 4o/284. Mirabete. Processo Penal, 1992, pág. 585

2. Revista de Jurisprudência do TJRGS 173/136. Apelação-Crime n. 695026393 – 4a Câmara Criminal – Estância Velha. Relator Des. Érico Barone Pires.

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Sobre o autor
Saulo Brum Leal

desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, professor da Escola Superior da Magistratura do Rio Grande do Sul (AJURIS)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LEAL, Saulo Brum. Novo julgamento pelo júri: só pela qualificadora. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 46, 1 out. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1077. Acesso em: 25 nov. 2024.

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