Sumário: 1- Introdução. 2- A desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária. 3- A desapropriação por descumprimento da função sócio-ambiental. 4- Imunidade à desapropriação-sanção – O conceito jurídico-constitucional de propriedade "produtiva". 4.1- Acepção econômica de propriedade produtiva. 4.2- Acepção jurídica de propriedade produtiva. 5- Conclusão.
1- Introdução
O presente artigo tem como objetivo tecer breves considerações sobre o cabimento da desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária quando constatado que o imóvel rural descumpre a sua função social exclusivamente em sua vertente ambiental.
Nestas singelas linhas buscar-se-á compreender um pouco mais do regime jurídico-constitucional da desapropriação-sanção, verificando-se se a imunidade consagrada no art. 185, inc. II, da Carta Federal impede a expropriação do imóvel rural que degrada o meio ambiente visando obter grande quantidade de gêneros agropecuários e, por conseqüência, alcançar altos índices de lucratividade.
Sem a pretensão de esgotar o assunto, mas antes, de fomentar o debate, passamos à análise do tema.
2- A desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária
Quando tratou dos direitos e garantias fundamentais, a Constituição cuidou de prever em seu art. 5º, inc. XXIII, que a propriedade atenderá a sua função social. No mesmo giro, estabeleceu no art. 170, caput e inc. III, que a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, devendo observar, dentre outros, o princípio da função social da propriedade.
Dentro do título referente à ordem econômica, a política fundiária e a reforma agrária encontraram seu locus normativo, subordinando-se, por tal razão, aos ditames do citado art. 170 da Lei Fundamental. Visando dar concretude ao princípio da função social, o Poder Constituinte Originário definiu os requisitos para que a propriedade rural seja considerada socialmente útil, cominando, também, a sanção oponível àqueles que violem tal obrigação. Consta da norma, verbis:
"Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:
I - aproveitamento racional e adequado;
II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;
III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores" (grifo nosso).
"Art. 184. Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei" (grifo nosso).
O art. 186, acima transcrito, deixa claro que a função social do imóvel rural possui quatro elementos (ou sub-funções): a) uso racional; b) preservação ambiental; c) observância da legislação trabalhista; e d) bem-estar.
De igual modo, restou evidenciado que a função social somente é cumprida quando respeitados todos os elementos descritos nos incisos do art. 186, pois a Carta Magna utilizou o advérbio "simultaneamente", atrelando-os de forma definitiva. A contrario sensu, o imóvel que afronta alguma destas sub-funções não cumpre a sua função social.
Conforme expressas e inequívocas disposições constitucionais, a propriedade rural deve cumprir sua função social, sujeitando-se à desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária quando inadimplida esta obrigação.
Pode-se concluir então que: i) a propriedade imobiliária rural está obrigada a cumprir a função social; ii) a função social somente é realizada quando seus quatro elementos são respeitados simultaneamente; iii) a violação a qualquer sub-função descrita no art. 186 da CF implica descumprimento da função social; e iv) o não atendimento da função social autoriza a desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária, também chamada de desapropriação-sanção.
3- A desapropriação por descumprimento da função sócio-ambiental
Do que exposto acima, parece ser tranqüilo o cabimento da desapropriação-sanção do imóvel rural que causa degradação ambiental, pois restará maculada a função social, o que autoriza a incidência do art. 184.
Todavia, a questão não se resolve tão facilmente.
Muitos proprietários que causam degradação ambiental, notadamente o desmatamento das áreas de reserva legal e de preservação permanente previstas na Lei 4.771/65 (Código Florestal), conseguem, em razão disto, maior extensão de terra agricultável, logrando grande quantidade de gêneros agropecuários. Alegam então que seu imóvel é "produtivo", invocando a imunidade estatuída no art. 185, II, da CF/88, que dispõe:
"Art. 185. São insuscetíveis de desapropriação para fins de reforma agrária:
(...)
II - a propriedade produtiva".
Com a devida venia daqueles que defendem tal raciocínio, ousamos divergir. Conforme tentaremos demonstrar a seguir, a produtividade prevista na Constituição não se confunde com a obtenção de muitos elementos agropecuários (grãos, gado, etc.), mas revela verdadeira utilização adequada aos fins sociais e econômicos da nação brasileira.
O e. Supremo Tribunal Federal, embora não tenha enfrentado de forma direta a questão do cabimento da desapropriação com fundamento exclusivo no descumprimento da função sócio-ambiental, manifestou-se pela sua possibilidade, verbis:
Pantanal mato-grossense (cf, art. 225, par. 4) - possibilidade jurídica de expropriação de imóveis rurais nele situados, para fins de reforma agraria.
A norma inscrita no art. 225, parágrafo 4, da constituição não atua, em tese, como impedimento jurídico a efetivação, pela União Federal, de atividade expropriatória destinada a promover e a executar projetos de reforma agrária nas áreas referidas nesse preceito constitucional, notadamente nos imóveis rurais situados no pantanal mato-grossense. A própria Constituição da República, ao impor ao Poder Público dever de fazer respeitar a integridade do patrimônio ambiental, não o inibe, quando necessária a intervenção estatal na esfera dominial privada, de promover a desapropriação de imóveis rurais para fins de reforma agrária, especialmente porque um dos instrumentos de realização da função social da propriedade consiste, precisamente, na submissão do domínio a necessidade de o seu titular utilizar adequadamente os recursos naturais disponíveis e de fazer preservar o equilíbrio do meio ambiente (cf, art. 186, II), sob pena de, em descumprindo esses encargos, expor-se a desapropriação-sanção a que se refere o art. 184 da Lei Fundamental (MS 22.164, DJ 17.11.95, Rel. Min. Celso de Mello, Plenário).
Ao sentenciar a ação ordinária 2004.43.00.001111-0/TO, ajuizada contra o INCRA, que visava declarar a nulidade de processo administrativo, o MM. Juiz Federal Dr. José Godinho Filho julgou improcedente o pedido, afirmando:
"É inadmissível qualquer supressão da vegetação nativa da reserva legal, sob pena de violação do dever de defesa e de preservação do meio ambiente ecologicamente equilibrado, imposto não só ao poder público, como a toda coletividade pela Constituição Federal (art. 225) e, em especial, ao proprietário do imóvel rural em que a reserva florestal se encontra inserida (Lei 4.771/65).
Em suma, a Fazenda Bacaba revelou índices satisfatórios de utilização da terra (93%) e de exploração econômica (599%), mas não está imune à desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária porque não cumpre a sua função social, especialmente no que tange ao requisito de preservação do meio ambiente".
(...)
"Assim, a Fazenda Bacaba, não obstante possua graus de utilização da terra e exploração econômica superiores aos estabelecidos em lei, NÃO SE ENQUADRA NO CONCEITO DE PROPRIEDADE PRODUTIVA insuscetível de expropriação previsto no art. 185, II, da CF/88, porque não atende ao requisito do art. 186, II, da Lei Maior" (grifo nosso).
Igual entendimento é externado por VALDEZ ADRIANI FARIAS e JOAQUIM MODESTO PINTO JÚNIOR em publicação intitulada "Função Social da Propriedade – Dimensões Ambiental e Trabalhista", encartada na "Série Debate Nead, nº 2"[1].
De nossa parte, defendemos de igual modo que a propriedade rural que não respeita, simultaneamente, todos os elementos da função social contidos no art. 186 da CF/88 pode ser desapropriada para fins de reforma agrária.
A Constituição Federal, art. 184, caput, primeira parte, outorgou à União o poder-dever de desapropriar para fins de reforma agrária o imóvel rural que não estiver cumprindo sua função social.
Complementando a estrutura do sistema constitucional de reforma agrária, a Carta Cidadã estabeleceu no art. 186 os quatro elementos da função social da propriedade rural: i) aproveitamento racional e adequado; ii) preservação do meio ambiente; iii) respeito às normas trabalhistas; e iv) bem-estar.
Como dito alhures, merece destaque a expressa disposição constitucional que vincula o cumprimento da função social ao atendimento simultâneo dos elementos funcionais ali estabelecidos. Não basta que o imóvel rural atenda um ou alguns dos requisitos impostos. Somente com a presença de todos poderá afirmar-se que o imóvel está adequado ao interesse coletivo.
A violação de apenas uma sub-função é suficiente para configurar o descumprimento da função social, caso em que a União estará autorizada a promover a desapropriação-sanção.
Conforme afirmado pelo e. Supremo Tribunal na ADIn 2213, sobre o direito de propriedade recai verdadeira hipoteca social. O Estado assegura o jus domini ao cidadão, ao passo que este assume quatro obrigações para com a coletividade (elementos da função social), sendo responsável pelo inadimplemento de qualquer delas, fato que autoriza o Estado a executar sua garantia, assumindo a propriedade do bem e imprimindo-lhe destinação socialmente aceita.
Esta a essência jurídica constante dos artigos 184 e 186 da Constituição. Assim, o proprietário que explora seu imóvel causando degradação ao meio ambiente ou desrespeitando as leis de proteção à natureza fica sujeito à desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária.
Superado o ponto atinente ao cabimento da desapropriação-sanção por descumprimento da função sócio-ambiental, há que se perquirir acerca da compatibilidade entre os dispositivos analisados (art. 184 e 186) e aqueloutro que prevê a imunidade à desapropriação (art. 185, II).
4- Imunidade à desapropriação-sanção - Conceito jurídico-constitucional de propriedade "produtiva"
A questão principal a ser dirimida restringe-se à escorreita interpretação do art. 185, II, em face dos artigos 184 e 186, todos da CF/88. Em auxílio ao leitor, vale transcrever novamente o dispositivo constitucional que prevê a imunidade à desapropriação:
"Art. 185. São insuscetíveis de desapropriação para fins de reforma agrária:
(...)
II - a propriedade produtiva".
Há que se perquirir, então, qual o conceito jurídico-constitucional de "propriedade produtiva". Somente a partir de tal definição será possível aferir a constitucionalidade do ordenamento infraconstitucional. Tal conceituação deverá ser extraída da própria Constituição, em verdadeira interpretação horizontal, analisando-se todos os dispositivos pertinentes ao assunto, evitando-se a "interpretação por tiras".
4.1– Acepção econômica de propriedade produtiva
Afirmam uns que a expressão "propriedade produtiva" deve receber interpretação fechada, considerando-se como tal o imóvel rural que gera muitos produtos agropecuários (eficiência) aproveitando-se de fração razoável do solo (utilização). Diz-se que tal interpretação é fechada porque exclui de seu âmbito os elementos da função social (racionalidade, ambiente, trabalho e bem-estar). Trata-se, portanto, de uma acepção econômica de propriedade produtiva.
Adeptos desta interpretação afirmam que a produtividade restringe-se ao inc. I do art. 186 (uso racional e adequado). Asseveram, ainda, que a propriedade economicamente produtiva pode descumprir a função social, v.g., degradando o ambiente e/ou explorando trabalho escravo, e mesmo assim não sofrerá a desapropriação para reforma agrária.
Em suma, propriedade produtiva, imune à desapropriação, é aquela que gera muitos gêneros agropecuários, o que se confundiria com aproveitamento racional e adequado (art. 186, I, CF).
Data venia, tal interpretação não pode prevalecer por quatro razões fundamentais.
A primeira, de ordem normativa, porque "produtividade" (art. 185, II) e "aproveitamento racional e adequado" (art. 186, I) não se confundem. Aqueles que defendem tratar-se da mesma coisa pecam por não estarem atualizados à inovação jurídico-normativa perpetrada em 05 de outubro de 1988. O Estatuto da Terra (Lei 4.504/64), de fato, colocava a "produtividade" como elemento da função social, verbis:
Art. 2° É assegurada a todos a oportunidade de acesso à propriedade da terra, condicionada pela sua função social, na forma prevista nesta Lei.
§ 1° A propriedade da terra desempenha integralmente a sua função social quando, simultaneamente:
a) favorece o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores que nela labutam, assim como de suas famílias;
b) mantém níveis satisfatórios de PRODUTIVIDADE;
c) assegura a conservação dos recursos naturais;
d) observa as disposições legais que regulam as justas relações de trabalho entre os que a possuem e a cultivem.
Todavia, a Constituição Federal inovou na estruturação da função social, dizendo que a mesma será cumprida quando a propriedade for "utilizada racional e adequadamente". A produtividade deixou de ser elemento da função social e foi erigida constitucionalmente a fator imunizante à desapropriação-sanção, passando a ter conteúdo amplo e abrangente, interpretado em harmonia com os demais dispositivos constitucionais, cuja essência não se extrai da legislação ordinária, mas do próprio seio da Carta Mãe, conforme se verá no tópico seguinte.
A segunda, de ordem fática, porque esta interpretação econômica, que tem como produtiva a propriedade que utiliza fração razoável do solo e gera muitos produtos agrícolas, não estabelece perfeita correspondência entre "produtividade" e "uso racional e adequado". A título de exemplo, aquele que se vale de trabalho escravo para atingir os níveis mínimos de exploração e lucratividade não exerce uso racional. Pelo contrário, o uso é irracional, bestial, promovendo a escravização do homem pelo homem, degeneração humana a muito superada em nosso país, pelo menos do ponto de vista jurídico (Lei Áurea). Ou seja, o imóvel será economicamente produtivo, mas não será utilizado de forma racional e adequada. Resta evidente que os conceitos não se confundem. Assim, a adoção da conceituação econômica permite concluir que existirão propriedades ‘produtivas’ cujo uso do imóvel é irracional e inadequado, o que não pode ser admitido.
Terceira. A prevalecer tal interpretação fechada (econômica), o proprietário que tornar seu imóvel ‘produtivo’ de modo anti-social, valendo-se para tanto de trabalho escravo e danos ambientais, será premiado com a indenização prévia em dinheiro, vez que somente será cabível a desapropriação com base no art. 5º, XXIV, da CF. Ou seja, o proprietário anti-social será beneficiado por sua própria torpeza, o que é vedado pelos princípios gerais do direito.
A quarta razão para ser refutada a acepção econômica de propriedade produtiva é o esvaziamento da norma constitucional (art. 184 e 186). Como dito, ao ser acolhida tal conceituação poderá afirmar-se que o proprietário rural está autorizado a descumprir por completo o princípio da função social, sem que por isto seja penalizado com a desapropriação-sanção. Seguindo, então, as regras de hermenêutica, deve ser descartada a interpretação que retira a eficácia da norma.
Por oportuno, cabe destacar que a maior parte do desmatamento praticado na Amazônia-Legal volta-se à expansão da fronteira agrícola, com plantio de soja e outros grãos em grande escala, hipóteses em que, segundo esta acepção econômica, o imóvel que assolou o meio ambiente será considerado ‘produtivo’ e imune à desapropriação-sanção. Certamente não era este o objetivo do Poder Constituinte.
Apresentados os fundamentos para a rejeição da tese econômica, passe-se a analisar o real sentido constitucional de propriedade produtiva.
4.2– Acepção jurídica de propriedade produtiva
Para que se preserve o ‘princípio da máxima efetividade da norma constitucional’ é necessário atribuir-se um conceito jurídico-constitucional à "propriedade produtiva".
O conceito de propriedade produtiva deve ser extraído a partir de uma interpretação aberta, incluindo em seu âmbito os elementos da função social da propriedade. Deste modo, propriedade produtiva é aquela que, ALÉM DE CUMPRIR A FUNÇÃO SOCIAL, atinge índices mínimos de quantidade, qualidade, tecnologia, lucratividade, geração de empregos, distribuição de renda, etc.
Este é um conceito jurídico-constitucional, pois agrega aos elementos econômicos (utilização e eficiência) os elementos jurídicos da função social da propriedade.
Justifique-se a adoção de tal acepção jurídica.
A primeira das razões reside justamente no fato de que tal interpretação preserva o ‘princípio da máxima efetividade da norma constitucional’, fazendo com que os artigos 184 e 186 da CF/88 possam produzir efeitos em sua máxima amplitude, evitando o esvaziamento da força normativa destes dispositivos em face da adoção de uma interpretação puramente econômica.
O segundo motivo para a adoção da acepção jurídica, semelhantemente ao anterior, está em preservar-se um princípio de interpretação constitucional: ‘o princípio da unidade da Constituição’. Pelo conceito jurídico de propriedade produtiva permite-se que convivam harmonicamente os artigos 184 e 186 com o art. 185, afastando a perplexidade existente na afirmativa de que a propriedade economicamente produtiva (acepção econômica) pode descumprir a função social sem ser desapropriada, quando, na verdade, o art. 184 manda desapropriar toda e qualquer propriedade que a descumpra. Resta atendida, com isto, a lição de Canotilho, apud Alexandre de Moraes[2], segundo o qual o ‘princípio da unidade’ impõe que a "interpretação constitucional deve ser realizada de maneira a evitar contradições entre suas normas".
Em terceiro lugar, deve-se ressaltar que a função social foi erigida à categoria de direito coletivo fundamental (art. 5º, XXIII) e de princípio da ordem econômica (art. 170, III). Com isto, a Carta Cidadã consagrou a superação do sistema anterior em que se privilegiava o caráter individual, patrimonial e absoluto do direito de propriedade, instituindo verdadeiro sistema socializante das relações regidas tanto pelo direito público quanto pelo direito privado. Em razão desta nova dogmática, vista expressamente na CF/88 e no CC/02, fala-se hodiernamente em função social da propriedade, do contrato, da empresa, do processo, do tributo, do trabalho, etc. Diante deste prisma constitucional, deve-se privilegiar a interpretação segundo a qual imóvel produtivo é aquele que cumpre sua função social e, além disso, atende a níveis mínimos de produção economicamente relevante.
Lembre-se que a Constituição estabeleceu em seu art. 3º os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, "cuja consecução deve figurar como vetor interpretativo de toda a atuação dos órgãos públicos"[3]. Desta forma, os institutos constitucionais devem ser interpretados de modo a permitir que o Estado brasileiro alcance os objetivos estatuídos na Carta Magna. Afinado neste diapasão, VALDEZ ADRIANI e JOAQUIM MODESTO[4] afirmam:
"De fato, vislumbramos a necessidade de realização da reforma agrária como imperativo constitucional. Vale dizer, decorre de uma interpretação sistemática da Constituição que o Estado Brasileiro deverá fazê-la. Ou seja, não existe opção para não fazê-la. Com efeito, quando a Constituição declara como objetivos fundamentais do Estado Brasileiro, de um lado, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, e, de outro lado, a promoção do desenvolvimento nacional, bem como a erradicação da pobreza e da marginalização, com a redução das desigualdades sociais e regionais (art. 3º), é óbvio que ela está determinando, implicitamente, a realização pelo Estado, em todos os seus níveis – federal, estadual e municipal -, também de uma ampla política de distribuição eqüitativa das propriedades, sobretudo de imóveis rurais próprios à exploração agrícola e de imóveis urbanos adequados à construção de moradias. A não realização dessa política pública representa, indubitavelmente, uma inconstitucionalidade por omissão".
Valendo-se desta mesma interpretação sistemática, buscando sempre harmonizar os dispositivos constitucionais em questão, RENATA ALMEIDA D’ÁVILA[5] entende que propriedade produtiva é somente aquela que cumpre a função social. Verbis:
"A redação do artigo 185, inc. II, ao estabelecer que a propriedade produtiva é insuscetível de desapropriação para fins de reforma agrária, aparentemente teria esvaziado o conteúdo do princípio da função social, uma vez que, nestes termos, a propriedade produtiva (que atendesse, portanto, somente ao inc. I do art. 186) estaria imune à desapropriação-sanção, ainda que não cumprisse as demais especificações elencadas no artigo 186.
Esta polêmica foi muito bem tratado por Marcelo Dias Varella (1998) que, utilizando-se das regras ensinadas por Norberto Bobbio, explicou os critérios para a superação da incompatibilidade entre os dois dispositivos constitucionais (art. 185, inc. II e art. 186).
Neste aspecto, adotamos o entendimento pelo qual as normas constitucionais devem ser interpretadas de forma a coexistirem no ordenamento jurídico, mantendo-se a aplicabilidade de ambos os artigos, o que resultaria numa antinomia apenas aparente. Desta feita, para ser considerada produtiva (na forma do art. 185, inc. II), a propriedade deve, além de ser produtiva (no sentido puramente economicista – inc. I, do art. 186), observar os outros três critérios impostos para o cumprimento da função social da propriedade, atendendo ao meio ambiente, possuindo boas relações de trabalho e promovendo o bem-estar social" (sic).
Embora não seja de todo explícito, o profº. Alexandre de Moraes parece compartilhar de tal entendimento, pois afirma que "a Constituição veda a desapropriação da propriedade produtiva que cumpra sua função social"[6] (g.n.).
Nesta linha, a produtividade não pode ser tomada em um sentido puramente econômico, significativo de rentabilidade ou lucratividade, pois a busca desenfreada pelo lucro pode gerar esgotamento do solo, desertificação, assoreamento, etc. Assim, a produtividade deve ser racional, agregando algo mais ao conteúdo econômico, fazendo com que a propriedade produtiva tenha conteúdo axiológico. Estes valores agregados são justamente os elementos da função social.
Todos estes argumentos impõem seja imprimida uma conceituação jurídico-constitucional à propriedade produtiva.
Privilegiar uma interpretação meramente econômica implicaria reduzir o art. 184 da Constituição a simples discurso de retórica, verdadeira letra morta, porque não poderia ser desapropriado o imóvel que descumprisse a função social, mas somente o imóvel economicamente improdutivo. Aceitar a acepção econômica de propriedade produtiva significa dizer:
a) o imóvel rural com uso irracional e inadequado que for ‘economicamente produtivo’ não será desapropriado;
b) o imóvel rural que degradar o meio ambiente, mas for ‘economicamente produtivo’ não será desapropriado;
c) o imóvel com trabalho escravo que for ‘economicamente produtivo’ está imune à desapropriação;
d) o imóvel que propiciar mal-estar aos trabalhadores, mas que for ‘economicamente produtivo’ não poderá ser desapropriado.
Em todas estas hipóteses o imóvel rural descumpre a sua função social. Todavia, em nenhuma delas será cabível a desapropriação. Tal orientação torna inócuo o art. 184, que afirma ser dever da União desapropriar o imóvel rural que não estiver cumprindo sua função social.
Advirta-se que a adoção da acepção econômica de propriedade produtiva configura incentivo à prática de atos ilícitos, pois o proprietário rural será estimulado a alcançar a produtividade econômica a qualquer custo, visando com isto proteger-se contra a desapropriação-sanção. Ora, a Constituição estabelece garantias aos cidadãos na medida em que estas não alberguem práticas ilícitas ou abusivas, e entender que o art. 185 protege o agricultor que viola a função social é admitir que a Lei Fundamental faz apologia ao ilícito, institucionalizando o adágio maquiavélico de que os fins justificam os meios[7].
Quanto a este ponto, socorremo-nos, mais uma vez, das considerações de VALDEZ ADRIANI e JOAQUIM MODESTO[8], expressadas nos seguintes termos:
"Pois bem, a desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária de imóveis rurais que não estejam cumprindo a função social é imperativo constitucional, decorrente do art. 184 da CF/88. Vale dizer, de acordo com o art. 186 da própria Constituição, o imóvel que deverá ser desapropriado e destinado para a reforma agrária será aquele que, em conjunto ou separadamente, não tenha aproveitamento racional e adequado, não apresente utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e nem preserve o meio ambiente, não observe as regulamentações trabalhistas, e cuja exploração não favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.
Como poderia, então, o art. 185 da CF/88 ignorar tais disposições e autorizar a proteção de uma propriedade territorial rural que, embora sendo produtiva do ponto de vista economicista, desconsiderasse a legislação ambiental, a legislação trabalhista e existisse em desacordo com o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores?" (grifo no original).
Toda esta interpretação é reforçada pelo disposto no parágrafo único do art. 185 da CF/88, que determina seja dispensado tratamento especial à propriedade produtiva. Ora, dar tratamento especial é fomentar o crédito, diminuir a tributação, conceder privilégios, etc., somente se admitindo que tais benesses sejam concedidas ao imóvel que, por cumprir a função social, revela-se produtivo. O tratamento especial é concedido justamente porque cumpre a função social e é economicamente sustentável. Considerar que a Constituição está concedendo tratamento especial à propriedade que descumpre a função social, sendo produtiva apenas do ponto de vista econômico, é um verdadeiro absurdo, pois faz da Constituição uma norma que premiaria injustiças sociais.
Desta feita, pode-se concluir que a única interpretação que preserva a sistemática constitucional é aquela que entende ser "propriedade produtiva" aquela que, além de cumprir a função social, atinge índices mínimos desenvolvimento econômico.
Os alicerces até aqui erigidos constituem base sólida a apoiar a adoção do conceito jurídico de propriedade produtiva. A partir da fixação deste entendimento deverá ser moldado o sistema infraconstitucional, dando-se, inclusive, interpretação conforme a Constituição ao art. 6º da Lei 8.629/93, de modo que a norma seja interpretada nos seguintes termos:
Art. 6º Considera-se propriedade produtiva aquela que ALÉM DE CUMPRIR OS DEMAIS ELEMENTOS DA FUNÇÃO SOCIAL, É explorada econômica e racionalmente, ATINGINDO, simultaneamente, graus de utilização da terra e de eficiência na exploração, segundo índices fixados pelo órgão federal competente (os grifos não constam da norma).
Feitas estas digressões, concluímos pela viabilidade da desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária dos imóveis que, apesar de atingirem índices mínimos de utilização e eficiência, descumprem a função social da propriedade mediante violação de qualquer uma das suas sub-fuções, a saber: i) função sócio-racionalidade; ii) função sócio-ambiental; ii) função sócio-trabalhista; ou iii) função sócio-conforto.
5- Conclusão
Com base nestas assertivas concluímos que:
a) a propriedade imobiliária rural está obrigada a cumprir a função social;
b) a função social somente é realizada quando seus quatro elementos são respeitados simultaneamente;
c) a violação a qualquer sub-função descrita no art. 186 da CF implica descumprimento da função social;
d) o não atendimento da função social autoriza a desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária;
e) a imunidade prevista no art. 185, II, da CF incide somente sobre a propriedade produtiva, entendendo-se como tal aquela que além de cumprir a função social, atinge índices mínimos de quantidade, qualidade, tecnologia, lucratividade, geração de empregos, distribuição de renda, etc.;
f) não pode ser acolhida a interpretação pela qual a produtividade é tomada exclusivamente sob o ponto de vista econômico;
g) o imóvel rural que causa degradação ambiental, ainda que seja economicamente relevante, pode ser desapropriado para fins de reforma agrária; e
h) o art. 6º da Lei 8.629/93 deve receber interpretação conforme a Constituição para ajustar-se aos ditames do art. 186.
NOTAS
1- Valdez Adriani Farias e Joaquim Modesto Pinto Júnior. Função Social da Propriedade – Dimensões Ambiental e Trabalhista. Brasília: NEAD/MDA, 2005, Série Debate, nº 2.
2- Direito Constitucional. Atlas, 20ª ed., 2006, p. 10.
3- Valdez Adriani Farias e Joaquim Modesto Pinto Júnior. Op. cit., p. 44.
4- Op cit., p. 44.
5- O Princípio da Função Socioambiental da Propriedade Rural e a Desapropriação por Interesse Social para Fins de Reforma Agrária. Monografia de Especialização. UnB-CDS. Brasília, 2005, p. 13/14.
6- Op. cit., p. 753.
7- Valdez Adriani Farias e Joaquim Modesto Pinto Júnior. Op. cit., p. 28.
8- Op. cit., p. 17.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
D’ÁVILA, Renata Almeida. O Princípio da Função Socioambiental da Propriedade Rural e a Desapropriação por Interesse Social para Fins de Reforma Agrária. Monografia de Especialização. Brasília: UnB-CDS, 2005.
FARIAS, Valdez Adriani; PINTO JÚNIOR, Joaquim Modesto. Função Social da Propriedade – Dimensões Ambiental e Trabalhista. Brasília: NEAD/MDA, 2005, Série Debate, nº 2.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 20ª edição. São Paulo: Atlas, 2006.