Capa da publicação O caso Aritana: da psicopatologia ao delito?
Capa: DepositPhotos
Artigo Destaque dos editores

O caso Aritana: da psicopatologia ao delito?

Exibindo página 1 de 4
Leia nesta página:

Estudo de caso sobre indivíduos com problemas mentais e a relação entre culpa, punição e saúde mental na análise jurídica e psiquiátrica.

Resumo: O presente ensaio se direciona ao estudo da tratativa conferida a indivíduos que não possuem condições mentais para retornar ao convívio em sociedade, considerando os ditames legais e da segurança pública, bem como àqueles que são submetidos equivocadamente ao cárcere ou destinados à margem relegada socialmente, inclusive ao longo da história de Minas Gerais, tais como as instituições descritas no livro “Holocausto Brasileiro” de Daniela Arbex, mormente correlatas à segregação humana e eugenia. Pretende, ainda, elucidar a pesquisa monográfica para avaliação da solução judicial exarada no caso concreto nominado Aritana e os desdobramentos. Ao longo do desenvolvimento, a reflexão acerca das disposições de confinamento de um indivíduo considerado alienado moral ou que apresente outros fatores de turbação mental que o impele à criminalidade, por periculosidade, cuja amplitude é analisada pela seara da Psiquiatria Forense e Psicologia, extrai-se o viés de estudo, uma vez que a análise reducionista do Direito Penal restrita ao critério de imputabilidade e sua subjetividade acarretam dissensões de julgamento quando se tratam de desvios de padrões comportamentais e prática de crimes, sobretudo hediondos.Todavia, o terreno é volúvel: a avaliação do princípio da culpabilidade e a margem de conceituação do instituto corroboram as distintas classificações existentes e as inúmeras hipóteses que se amoldam a casos concretos.

Palavras-chave: Culpabilidade. Imputabilidade. Louco infrator. Cárcere. Medida de segurança.


INTRODUÇÃO

O presente ensaio baseia-se na análise científica e prática de institutos jurídicos que se confluem intermitentemente às searas da psiquiatria e psicologia forenses quando da tratativa de crimes que sobrepõem às fronteiras comuns, perpassando pela culpabilidade, imputabilidade, punição (cárcere ou hospital de custódia) e efeitos sociais do julgamento de determinado indivíduo infrator a lei e possível alienado mental.

Nessa linha de pensamento, a problemática ilumina-se pela relação entre a reprovação jurídica valorada pela culpabilidade, exteriorizada pelo ato do indivíduo delinquente, e a criminalidade acentuada; a avaliação do determinismo psíquico e desordens comportamentais/mentais pelo julgador centrado na mens legis (imputação penal) e a desconsideração da multidisciplinariedade psiquiátrica e psicológica nos casos de maior complexidade e obscuridade patológica, com risco à ordem pública.

Como resposta aos simbólicos pontos de interrogação originários da pesquisa, surge a hipótese, voltada pela necessidade salutar de cautela estatal no jus puniendi quando da averiguação e aplicação da penalidade adequada ao autor pelo ilícito, se imputável, semi-imputável ou inimputável, haja vista a falibilidade do sistema e risco social dos erros judiciários, confrontado com as inúmeras classificações psiquiátricas e mensurações distintas da culpa.

No tocante à relevância do estudo, pela justificativa, afirma-se que a pesquisa fortalece o anseio de entendimento do animus do agente pelo julgador, sua capacidade psíquica quando do delito e histórico de higidez mental, assim como os prejuízos pelo encarceramento inadequado do indivíduo ou a submissão à medida de segurança, ineficazmente, o que pode implicar em reincidência criminosa.

Dessa feita, o presente estudo tem o propósito de colaborar com a reflexão crítica quanto ao tema e pretende sinalizar para a necessidade de partilhar questionamentos inerentes, não se omitindo ao crivo científico relativo à atuação do Direito, pois imperativo reconhecer que esse paradigma perpassa os efeitos deletérios à segurança e saúde pública. Devido à potencialidade da violência intrínseca à reincidência do crime pelo agente isento de controle de sua periculosidade, torna-se neural o zelo dos agentes do Sistema de Justiça.

No âmbito da metodologia, o tipo de pesquisa teórica foi baseada em fontes primárias (legislação e jurisprudência) e secundárias (livros e artigos em geral), através da busca bibliográfica acerca do tema. A avaliação da influência midiática mediante dados de reportagens sobre o Caso Aritana também complementou as informações, visando, sobretudo, à pesquisa empírica, na tentativa de catalisar o tratamento mais próximo do adequado em relação ao inimputável e sua classificação.

Ainda, quanto aos procedimentos metodológicos, discriminam-se na presente pesquisa o hipotético-dedutivo, histórico, tipológico e monográfico. Quanto ao método de abordagem, foi o hipotético-dedutivo, segundo proposto por Popper, visto que coexiste no início da pesquisa um problema, que guia o pesquisador aos fatos relevantes e destes às hipóteses, com emprego racional e crítico da dialética na construção de conjecturas, que foram submetidas a testes, à crítica intersubjetiva e ao confronto com os fatos.

Por sua vez, o que se identifica como Estudo de Caso também ingressará na metodologia qualitativa, caracterizando o método monográfico, com a investigação do processo crime sob nº 0035.07.107.232-2, que contextualiza o significado próprio da pesquisa, pois se trata da realidade como elemento básico do projeto para refutabilidade ou verificabilidade das conjecturas levantadas.

Destarte, essa monografia divide-se em quatro capítulos, assim expostos:

  • Cotejando questionamentos que envolvem a temática em apreço, inicialmente, o primeiro capítulo (Capítulo 1) formula a proposta da definição do fundamento da reprovabilidade da conduta delituosa, pelos critérios da racionalidade, moralidade e justiça: a culpabilidade. Assim, é destinado à conceituação da culpa dentro da teoria delitiva, aliada à consideração da capacidade psíquica do agente de compreensão da norma de determinação (norma de conduta) e a possibilidade de assim atuar como efeito do juízo de desvalor do fato, demonstrado pela responsabilidade normativa.

  • Em sequência, o segundo capítulo (Capítulo 2) demonstra a imputação penal no ordenamento pátrio, com os critérios de definição da responsabilidade pelo delito, definição de inimputabilidade e a tratativa do alienado mental criminoso, pelo que se percebe a importância de descrição do instituto da medida de segurança, seus fundamentos, pressupostos e efeitos, não mitigando, pois, o enfoque do cárcere e a vituperação dos ideais epistemológicos da pena, pois, sob o caráter naturalístico, tem-se um genuíno mosaico de maledicências propagadas, amiúde desumanização.

  • Por sua vez, no campo das psicopatologias, o terceiro capítulo (Capítulo 3) se propõe à exposição das facetas da loucura infracional, inter-relacionando à criminalidade, à linha tênue entre o dito normal e patológico, bem como, as dificuldades de aferição científica e jurídica dos prognósticos de um incapaz e os métodos de investigação usufruídos nos hospitais psiquiátricos incumbidos dos laudos.

  • No quarto e derradeiro capítulo (Capítulo 4), com o escopo de exemplificar a celeuma das dissensões judiciais frente ao caso concreto, alinhavam-se comentários ao emblemático Caso Aritana, ocorrido em 31 de agosto de 2007, na Comarca de Araguari/MG, concebido pela acusação como nítido ato de vontade revestido de crueldade, discernimento e livre-arbítrio do autor, ao violar sexualmente e ceifar a vida de uma infante de 04 (quatro) anos.

Opostamente, pela defesa, é apresentado um acusado inteiramente incapaz de determinar-se perante o injusto, portanto, inimputável e sujeito à medida de segurança, tese que lhe ensejou a absolvição sumária e ulterior recurso do Ministério Público ao Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Adianta-se que o limbo se dissolveu com o reconhecimento das condições psíquicas na aprática do delito, por Aritana, e a determinação de submissão ao Tribunal do Júri, juízo natural, onde o réu foi reconhecido semi-imputável e condenado a 17 (dezessete) anos de prisão, em regime fechado.


1. DA CULPABILIDADE: CRIME, CULPA E RESPONSABILIDADE

Os atos de um indivíduo não são isentos de efeitos e consequências, seja para si, seja para terceiros, e, na existência do delito, se faz imprescindível situar a posição de quem o executa, considerando propriamente o fato e a culpa pela Justiça penal.

Ante um fato criminoso, as legislações aplicáveis em vigência em determinado ordenamento jurídico determinam a eventual culpabilidade do acusado e a punição cabível, ou castigo, conforme terminologia clássica, a incidir na conduta antijurídica praticada pelo sujeito no caso concreto.

Para a seara judiciária penal, o estado de consciência e a premeditação unem-se, dentre outros conceitos, para formar o grau de responsabilidade do criminoso analisado no ato que resvala na ofensa à norma.

Entretanto, a responsabilidade pautada pelo Direito, invocada pela legislação penal, não representa a mesma quando sob prisma da Psiquiatria e Psicologia, cujas ambiguidades práticas relacionam-se ao objeto de estudo desta monografia.

É cediço que inexiste sociedade em que o vínculo fático entre o crime e a lei não se conduza ao castigo, porém, toda esfera social exige do apenado uma aceitação subjetiva do ato criminoso cometido e de sua punibilidade.

A responsabilidade e a culpa configuram dois patamares basilares na avaliação no Direito e inclusive tais regras são classificadas como princípios psicanalíticos fundamentais, embora cumpra mencionar que a valoração nos dois âmbitos é desigual e destoante, se não a razão de tantas divergências judiciais.

Neste sentido, é relevante distinguir, por um lado, os contextos de análise do crime: o do acusado/criminoso, o do profissional psiquiatra e do juiz, e pelo outro aspecto, a culpa, a responsabilidade, a sentença e a pena/castigo, todos considerados tanto pelos juristas quanto pelos profissionais clínicos de saúde mental por perspectivas diferentes.

1.1. Culpa: fenômeno e estrutura

A culpa constitui um conceito revestido por complexidades, visto que seu significado varia notadamente conforme a perspectiva usufruída, jurídica, psiquiátrica e/ou psicanalítica.

Segundo a autora Silvia Elena Tenderlaz (TENDERLAZ, 2013, p. 25), em si mesma, a culpa é tema solar nas religiões inerentes à sociedade humana como um todo, sendo que naquelas, a culpa remete a uma forma de vínculo do sujeito com a verdade como causa, como no cristianismo. Acrescenta:

Em seu estudo A ciência e a verdade, Lacan diferencia três sujeitos: o religioso, o da ciência e o do sofrimento. O sujeito religioso conduz ao racionalismo, que organiza o pensamento teológico e a função desempenhada pela revelação. A análise do sujeito da ciência faz presente, em forma inescapável, nos mecanismos de obsessão e os paradoxos do sentimento de culpa que Freud comparou com a religião. O sujeito do sofrimento, o da consulta psicanalítica, é o que se declara culpável.

No mundo contemporâneo, a Igreja vem se pronunciando no sentido de reconhecer uma fragmentação global gerada pela desigualdade, os antagonismos ideológicos e a discriminação, entre outras razões. A raiz dessas divisões é uma ferida no mais íntimo do homem, segundo as palavras do Papa João Paulo II: Essa ferida é chamada de pecado à luz da fé que cada um carrega, desde o seu nascimento, como uma herança recebida por seus progenitores, até o pecado que cada um comete.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Todo documento da Igreja parte do pressuposto da fé, formando parte do racionalismo organizador do pensamento teológico. A fé cristã não é uma crença vacilante do neurótico, mas a certeza da crença de que a verdade está e se faz presente nas coisas sensíveis. Segundo Santo Tomás de Aquino, a certeza da crença é o que produz o ato de fé.

A verdade do sofrimento neurótico faz referência a tomar a verdade como causa; por isso, fenomenologicamente, coincide com a verdade cristã, em que a culpa aparece como hipótese causal da desgraça. O neurótico, sujeito do sofrimento, vacila, em diferentes momentos, entre atribuir a culpa a outro ou atribuí-la a si mesmo. Ambos coincidem em algo: a verdade de culpa residiria na culpa em si.

Por isso, na teoria lacaniana, a culpabilidade se transforma em sentimento de alcance epistemológico, dado que a causa no cristianismo assuma a forma de culpa. O neurótico faz o mesmo ao atribuir à culpa um valor de verdade. O psicanalista questiona a relação da neurose com a culpa uma vez que esta não ocupa o lugar da verdade, nem da causa (TENDERLAZ, 2013, p. 25).

Essa confusão e superposição decorrem da psicanálise em si, da afirmação freudiana de que alguns deliquentes não são culpáveis pelo delito que cometem, pois se trata de uma culpa antecedente que os impulsiona a cometer o delito. A culpa torna-se assim a causa que precede o crime, e o castigo recebido pelo criminoso é o efeito buscado e desejado inconscientemente.

No entanto, embora a culpa freudiana tenha um caráter causal, também é inconsciente e desconhecida. Nesse ponto não coincide com a culpa cristã. A culpa, enquanto razão da estrutura resulta da constituição do sujeito do inconsciente. O padecimento neurótico da culpa é a forma sintomática com o que sujeito tenta finalizar tal culpa, como estrutura inextirpável.

Existem diversas formas de tratamento da culpa em nível fenomênico. Uma delas é a criação do sintoma. As diferentes estruturas clínicas seguem caminhos diversos no tocante ao processamento da culpa: na neurose, temos a vacilação em atribuí-la ao Outro ou ao Eu; na melancolia, a certeza psicótica de sua própria culpa; na paranoia, a certeza psicótica da culpa do Outro; e na perversão, a negação da culpa.

1.2. CONCEITO JURÍDICO DE CULPABILIDADE

Nas lições de Guilherme de Souza Nucci (NUCCI, 2014, p. 264), trata-se de um juízo de reprovação social, incidente sobre o fato e seu autor, devendo o agente ser imputável, atuar com consciência potencial de ilicitude, bem como ter a possibilidade e a exigibilidade de atuar de outro modo, seguindo as regras impostas pelo Direito (teoria normativa pura, proveniente do finalismo).

Assim, a culpabilidade é um juízo de valoração concreto, razão pela qual surge a importância de se ter o fato típico e antijurídico, indicando qual é o foco de realidade a ser objeto desse juízo de reprovação social, sendo que o conceito apresentou significativa evolução, podendo-se mencionar as seguintes principais teorias:

  1. psicológica (causalista): culpabilidade é importante elemento do crime, na medida em que representa o seu enfoque subjetivo, isto é, dolo e culpa. Para esta corrente, ao praticar o fato típico e antijurídico (aspectos objetivos do crime), somente se completaria a noção de infração penal se estivesse presente o dolo ou a culpa, que vinculariam, subjetivamente, o agente ao fato por ele praticado (aspecto subjetivo do crime). Em suma, culpabilidade é dolo ou culpa. A imputabilidade penal é pressuposto de culpabilidade, portanto, somente se analisa se alguém age com dolo ou culpa, caso se constate ser essa pessoa imputável (mentalmente sã e maior de 18 anos). A teoria psicológica apresenta falhas variadas, embora a principal, no entendimento de Nucci, seja a inviabilidade de se demonstrar a inexigibilidade de conduta diversa, uma vez que não se faz nenhum juízo de valor sobre a conduta típica e antijurídica. Assim, aquele que é imputável e atua com dolo, por exemplo, ainda que esteja sob coação moral irresistível poderia ser considerado culpável, o que se afigura ilógico;

  2. normativa ou psicológico-normativa (causalista): dando ênfase ao conteúdo normativo da culpabilidade, e não simplesmente ao aspecto psicológico (dolo e culpa), acrescentou-se o juízo de reprovação social (ou de censura), que se deve fazer em relação ao autor de fato típico e antijurídico, quando considerado imputável (a imputabilidade passa a ser elemento da culpabilidade e não mero pressuposto), bem como se tiver agido com dolo (que contém a consciência da ilicitude) ou culpa, além de dever haver prova da exigibilidade e da possibilidade de atuação conforme as regras do Direito. A teoria continua ideal para quem siga os passos do causalismo (por todos, cf. Aníbal Bruno, Direito penal, t. 2, p. 31). No entanto, deslocando-se o enfoque para a corrente finalista, deve-se migrar para a teoria que segue;

  3. normativa pura (finalista): a conduta, sob a ótica do finalismo, é uma movimentação corpórea, voluntária e consciente, com uma finalidade. Logo, ao agir, o ser humano possui uma finalidade, que é analisada, desde logo, sob o prisma doloso ou culposo. Portanto, para tipificar uma conduta – conhecendo-se de antemão a finalidade da ação ou da omissão – já se ingressa na análise do dolo ou da culpa, que se situam, pois, na tipicidade – e não na culpabilidade. Nessa ótica, culpabilidade é um juízo de reprovação social, incidente sobre o fato típico e antijurídico e seu autor, agente esse que precisa ser imputável, ter agido com consciência potencial da ilicitude (esta não mais está inserida no dolo) e com exigibilidade e possibilidade de um comportamento conforme o Direito.

  4. funcionalista: embora sem consenso, autores denominados pós-finalistas passaram a sustentar um conceito de culpabilidade que se vinculasse às finalidades preventivo-gerais da pena, bem como à política criminal do Estado. Por isso, não poderia fundamentar-se exclusivamente numa concepção naturalística e improvável do livre-arbítrio (poder atuar, ou não, conforme as regras impostas pelo Direito):

Nas palavras de Günther Jakobs, a culpabilidade representa uma falta de fidelidade do agente com relação ao Direito (Derecho penal – Parte general, p. 566-567). Essa falta de motivação para seguir as normas jurídicas é um conceito determinado normativamente e por tal fundamento realiza-se o juízo de culpabilidade. Portanto, analisar se há ou não déficit motivacional por parte do agente, para seguir as normas jurídicas, é tarefa que independe de prova da exigibilidade ou inexigibilidade de poder agir conforme o Direito. Deduz-se a infidelidade ao Direito sem análise individualizada do agente, mas sob o prisma social, considerando-se os fins da pena. Exemplo: um doente mental, inimputável portanto, não tem condições de se motivar a agir conforme o Direito, pois encontra limitação física. Logo, não é culpável, pois incapaz de contestar a validez da norma.

Esse afastamento da atuação do livre-arbítrio do ser humano, voltando-se à mera verificação, sob critérios contestáveis, de ter sido o agente fiel ou infiel às regras jurídicas, de estar motivado ou imotivado, dentro de uma estrutura socialmente voltada às finalidades preventivas gerais da pena, torna-se incontrolável.

Da mesma forma que a infidelidade ao Direito pode ser vista com complacência, garantindo-se, até, por medida de política criminal, a não aplicação da pena, pode também servir a uma análise rigorosa, buscando a aplicação de sanções penais desmedidas, que possam servir de exemplo à sociedade. Ainda, segundo NUCCI (2014, p. 265):

Permanecemos fiéis à teoria normativa pura, que não nos parece defeituosa, ao contrário, é a única que congrega fatores de valoração com a concreta situação do ser humano e de sua capacidade inegável de agir de acordo com seu livre- arbítrio. Não concordamos com as posições que criticam essa utilização. Por todos, Jakobs diz que colocar o livre-arbítrio como pressuposto geral da culpabilidade, já que ele não comporta prova no caso concreto, fomenta um conceito carecedor de dimensão social. A culpabilidade não teria um efeito social, mas somente seria a desvalorização do indivíduo (ob. cit., p. 584-586). Não nos parece seja assim. A possibilidade e a exigibilidade de alguém agir conforme as regras impostas pelo ordenamento.

Outros autores, como Roxin, criticando a posição de Jakobs, mas sem refutá-la por completo, também não aceitam a concentração da análise da culpabilidade no livre-arbítrio humano (poder ou não agir conforme as regras do Direito), pois seria requisito não sujeito à demonstração empírica.

Assim, a capacidade humana de culpabilidade, em sua visão, deve ser uma verificação científico-empírica, valendo-se de critérios fornecidos pela psicologia e pela psiquiatria, medindo-se o autocontrole do agente através de dados técnicos e menos abstratos.

Sustenta que sua posição prescinde da disputa filosófica e das ciências naturais acerca do livre-arbítrio Permanece fiel ao conceito funcional de culpabilidade como resultado da política criminal do Estado e de uma justificação social para a fixação da pena.

A culpabilidade não mais seria analisada sob o prisma individual, deixaria de servir de fundamento real para a pena e nem mais poderia ser útil ao limite da pena, pois tudo não passaria de critérios ligados à política criminal.

Portanto, separa-se do funcionalismo na medida em que defende a culpabilidade como fundamento e limite para a aplicação da pena, a fim de coibir abusos do Estado, que não pode valer-se do indivíduo, ao destinar-lhe uma sanção penal, como mero instrumento de reafirmação dos valores do Direito Penal.

1.3. CONCEITO DE RESPONSABILIDADE PELA PSICANÁLISE

O que se compreende assinalar que um indivíduo não é responsável por um delito que praticou? Que reflexos incidem na concepção como não responsável pelo crime? Por qual razão Lacan preconiza que desresponsabilizar conduz à ideia de desumanização de um sujeito? Tais indagações compõem o estudo dos autores Silvia Elena Tendlarz e Carlos Dante Garcia (2013) ao tratar de criminologia e controle das sanções penais na análise de criminosos violentos.

De uma maneira geral, coexiste o anseio de interação multidisciplinar entre as ciências do Direito e Psicologia em uníssono para tratamento e processo jurídicos eficazes da celeuma social, ideologia também compartilhada pela psicóloga Vânia Terezinha Soares, na coletânea de artigos de Fernanda Otoni de Barros (BARROS, 2001, p. 94):

Ao concluir este trabalho, penso na importância do papel da Psicologia no campo do Direito. Se pensarmos que o Direito trabalha com uma lei universal em que sem tem a ideia de que todas as pessoas se enquadrariam dentro das mesmas, seríamos uma sociedade harmônica e feliz. Porém, esta questão se faz complicar devido ao fato de a lei estar lidando com seres humanos, e acerca destes não se tem um conhecimento total, pois são seres e constante mudança, com questionamentos intermináveis. [...] uma lei geral é necessária, mas sem desconsiderar aqueles que necessitam mais do que uma lei, que necessitam de um olhar que faça com que eles se percebem sujeitos únicos nesta universalidade. A Psicologia, que vai além do Direito, busca o caso a caso, demonstrando que a lei que ordena alguns não faz sentido para outros, e portanto se deve pensar em outras saídas. [...]

Desta forma, as articulações que lidam com questões humanas não devem ser limitadas na medida em que dispõe sobre punição de condutas desviantes, somente previstas na legislação. Os subsídios e diferenças são relevantes, e a amplitude das particularidades não deve ser omitida na condução dos casos para punição do criminoso, em similitude, como preleciona Lacan (1998, p. 128):

Toda sociedade, por fim, manifesta a relação do crime com a lei através de castigos cuja realização, sejam quais forem suas modalidades, exige um assentimento subjetivo. Quer o criminoso, com efeito, se constitua ele mesmo o executor da punição que a lei dispõe como preço do crime.

No que lhe concerne, o jurista Fábio Guedes de Paula Machado (MACHADO, 2010, p. 32) acrescenta formulações acerca da culpabilidade do indivíduo e sua capacidade cognitiva para atos criminosos:

Hodiernamente, por este elemento compreende-se a ideia de que o indivíduo é normal, logo será capaz de sua culpabilidade por reunir condições para entender a natureza proibida de sua ação. Presume-se, assim, ser ele portador de desenvolvimento biológico e normalidade psíquica.

Com isto, apura-se que todos, de certa forma, são responsáveis por seus atos na medida de sua atuação delituosa.

Assuntos relacionados
Sobre a autora
Luana Cristina Rodrigues de Andrade

Especialista em "Direito Processual Civil e Ministério Público" (2020) e em "Compliance e Direito Penal Econômico" (2023), pela Escola Superior do Ministério Público do Estado de Goiás (ESUMP-GO). Graduada em Direito pela FPU (2014). Habilitada no XIV Exame da OAB (2014). Aluna especial do Programa de Mestrado em Direito da USP (2.2023).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ANDRADE, Luana Cristina Rodrigues. O caso Aritana: da psicopatologia ao delito?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7489, 2 jan. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/107869. Acesso em: 24 nov. 2024.

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos