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A lei “não é não” e o os cultos religiosos

Leia nesta página:

A necessidade de proteger a integridade das mulheres deve prevalecer sobre a liberdade religiosa, exigindo uma ponderação entre princípios constitucionais.

Introdução

“Lei que cria protocolo "Não é Não" para proteger mulheres é sancionada" 1, é a notícia mais recente do meio jurídico e político.

A lei em questão, conforme será demonstrado, é extremamente relevante e atual, pois, nos exatos termos do seu artigo 1º, “cria o protocolo “Não é Não”, para prevenção ao constrangimento e à violência contra a mulher e para proteção à vítima, bem como institui o selo “Não é Não - Mulheres Seguras”.

Entretanto, um dispositivo da referida lei chama a atenção. O Parágrafo único do seu artigo 2º assim prevê: “O disposto nesta Lei não se aplica a cultos nem a outros eventos realizados em locais de natureza religiosa”.

Sendo assim, a dúvida que surge é: seria a referida ressalva constitucional? É o que se pretende analisar no presente artigo por meio de uma metodologia descritiva e exploratória.


1. Da violência contra a mulher

Combater a violência contra a mulher é uma questão urgente e extremamente relevante, pois 1/3 das mulheres em todo mundo com mais de 15 anos já sofreu algum tipo de violência física ou sexual por parte de um parceiro íntimo e em média 137 mulheres morrem por dia em todo mundo assassinadas por seu parceiro ou membro da família2. Especificamente no Brasil, a cada quatro horas uma mulher é vítima de violência3.

Para piorar a situação, segundo pesquisas do IPEA, há aproximadamente 90% de subnotificações, pois apenas 8,5% dos casos chegam aos estabelecimentos policiais e apenas 4,2% são identificados pelo sistema de saúde4.

Desse modo, a lei 14.786/2023 vem em excelente momento, tanto pelo seu valor simbólico como pelo seu valor prático, a começar por trazer o conceito de constrangimento e violência contra a mulher nos seguintes termos:

“Art. 3º Para os fins desta Lei, considera-se:

I - constrangimento: qualquer insistência, física ou verbal, sofrida pela mulher depois de manifestada a sua discordância com a interação;

II - violência: uso da força que tenha como resultado lesão, morte ou dano, entre outros, conforme legislação penal em vigor”.

Em seguida, o artigo 5º da lei traz uma série de direitos da mulher aos ser constrangida ou violentada, a começar pelo direito de “ser prontamente protegida pela equipe do estabelecimento a fim de que possa relatar o constrangimento ou a violência sofridos”.

Além disso, o artigo 10º da lei prevê penalidades para os estabelecimentos que não cumprirem as determinações legais, sem prejuízo de “outras penalidades previstas em lei”.

Assim, como disse Luiz Guilherme Vieira “A criação do protocolo “Não é Não” é um avanço na proteção das mulheres. É um progresso pequeno — os maiores cabem à cultura, não à legislação —, mas na direção certa. Há de chegar o dia em que as mulheres não precisarão mais ter medo de ser abusadas pelos homens”5.

Entretanto, conforme foi visto na nossa introdução, causa estranheza a exclusão das entidades religiosas do referido protocolo, o que foi uma consequência da influência da bancada evangélica6. Seria, assim, a referida exclusão constitucional? É o que veremos no próximo tópico.


2. Da influência religiosa no Estado.

A Constituição brasileira de 1824 trazia a Religião Católica como religião oficial. Entretanto, no ano de 1890 veio o decreto 119-A, que passou a prever ser o Brasil um Estado Laico, o que foi mantido pela Constituição de 1891, permanecendo a referia situação até os dias atuais7.

No mais, apesar de laico, a influência política da Religião Católica no Brasil ainda é muito forte até os dias atuais, o que pode ser verificado pelos inúmeros feriados religiosos fazendo referência especificamente à Igreja Católica e deixando de lado as outras religiões presentes no território brasileiro, inclusive religiões tipicamente brasileiras, como a Umbanda e o Santo Daime.

Por outro lado, a religião evangélica no Brasil vem crescendo de forma exponencial, o que acaba gerando efeitos políticos, existindo até mesmo na Câmara Federal do Brasil uma bancada de deputados autointitulada de Bancada Evangélica8, sendo atualmente a segunda maior bancada do Congresso Nacional Brasileiro.

A presença de grupos evangélicos no Brasil ganhou força logo após o fim da ditadura militar na década de 80, com os evangélicos enxergando na política um mecanismo para inviabilizar projetos de leis contrários aos seus preceitos, o que fez a Igreja Assembleia de Deus lançar boatos sobre aprovação de temas polêmicos como casamento entre pessoas do mesmo sexo, liberalização das drogas e a possibilidade da realização de aborto9. A Igreja Universal do Reino de Deus, por outro lado, procurou lançar candidaturas políticas de membros da igreja, estimulando os fiéis a votarem neles, inclusive organizando o alistamento dos fiéis que já completaram 16 anos10. Sendo assim, a influência política da referida bancada é extremamente grande a ponto de Marcos Feliciano, pastor da Assembleia de Deus, ter chegado a presidir a Comissão Parlamentar de Direitos Humanos.

Frise-se que a referida realidade não se resume ao legislativo federal. Marcelo Natividade, analisando a situação da Baixada Fluminense, traz o descontentamento de movimentos sociais com o fato de alguns políticos vinculados a instituições religiosas dificultarem a aprovação de projetos de âmbito local favoráveis ao grupo LGBTQIAP+11.

Ademais, existe uma influência política também da religião evangélica no executivo brasileiro, a ponto do Ex-Presidente da República do Brasil ter escolhido um ministro para o Supremo Tribunal Federal-STF “terrivelmente evangélico”12.

Ademais, a influência da religião na política brasileira não acontece apenas na ala mais conservadora da sociedade. A título de exemplo, entre os anos 1960 e 1970 alguns bairros de São Paulo tinham sua organização política mediada ao mesmo tempo por sindicatos e pastorais da Igreja Católica ligadas à Teologia da Libertação, que é uma ala Católica mais progressista, sendo o referido trabalho realizado com base em discurso coletivos e de classe, o que colaborou com a criação do Partido dos Trabalhadores; diferentemente do Rio, onde a luta da classe trabalhadora era menos intensa e a Igreja Católica tinha lideranças não adeptas à Teologia da Libertação, o que se alinhava mais aos políticos com características mais personalistas13. Assim, existe no Brasil influência da religião tanto em políticos de esquerda como em políticos de Direita.

Desse modo, a exclusão de cultos e outros eventos realizados em locais de natureza religiosa da lei 14.786/2023 é uma decorrência da influência da religião no executivo e no legislativo brasileiro, o que, entretanto, é, no nosso entendimento, inconstitucional, tendo em vista o Brasil ser um Estado Laico. No mais, tal como a mulher deve ser protegida em bares e shows, ela da mesma forma deve ser protegida em estabelecimentos religiosos e de qualquer outra natureza.

No caso, existe uma nítida colisão de princípios, de um lado a liberdade de religião e do outro a necessidade da importância de preservar a violência contra as mulheres. Diante de uma colisão de princípios e seguindo a linha de Robert Alexy, devemos fazer uma ponderação de qual princípio vai prevalecer no caso concreto14 e entre preservar a liberdade de religião e preservar a integridade das mulheres, não parece existir dúvidas que essas últimas merecem maior proteção.


Conclusão

O protocolo “Não é Não”, trazido pela lei 14.786/2023, é extremamente importante e atual, tem enorme valor simbólico e pode ter efeitos práticos extremamente relevantes. Não vai resolver o problema da violência contra a mulher, mas é uma forma de se tentar minorar a situação de medo vivida pelas mulheres em nosso país.

Entretanto, em nosso entendimento, a exclusão das entidades religiosas do referido protocolo é inconstitucional e não se justifica, pois vivemos em um Estado Laico e a mulher deve ser protegida em todo e qualquer espaço.

De qualquer forma, apesar da ressalva prevista na lei 14.786/2023, a mulher deve ser protegida e respeitada em todo e qualquer lugar, pois, independentemente de previsão legal, Não é Não!

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REFERÊNCIAS

AGOSTINHO, Luís Otávio Vicenzi de. “Análise Constitucional acerca da crise entre estado liberdade de crença e estado laico”. Revista do programa de Mestrado em Ciência Jurídica da FUNDINOPI, número 9, 2008. [p.133-146].

ALEXY, Robert - Teoría de los derechos fundamentales, 2ªed, Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2008. p.70-71.

DANTAS, Bruna Suruagy do Amaral. Religião e Política: ideologia e ação da bancada evangélica Câmara Federal. Tese apresentada no Doutorado em Psicologia Social da Pontifica Universidade Católica de São Paulo. São Paulo: Pontifica Universidade Católica de São Paulo-PUC/SP, 2014.

MANSO, Bruno Paes. A República das milícias: dos equadrões da morte à era Bolsonaro. São Paulo: Todavia, 2021.

NATIVIDADE, Marcelo. Margens da Política: Estado, Direitos Sexuais e Religiões. Rio de Janeiro: Garamond, 2016.

ORO, Ari Pedro. A política da Igreja Universal e seus reflexos nos campos religiosos e políticos brasileiros. Revista Brasileira de Ciências Sociais-RBCS. v. 18 nº. 53 outubro/2003.


Notas

1Fonte: https://www.migalhas.com.br/quentes/399722/lei-que-cria-protocolo-nao-e-nao-para-proteger-mulheres-e-sancionada

2Fonte: https://bvsms.saude.gov.br/25-11-dia-internacional-para-a-eliminacao-da-violencia-contra-as-mulheres-alaranjar-o-mundo-acabar-com-a-violencia-contra-as-mulheres-agora/

3Fonte: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2023-03/no-brasil-uma-mulher-e-vitima-de-violencia-cada-quatro-horas

4Fonte: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/artigo/242/atlas-2022-policy-brief

5Fonte: https://www.conjur.com.br/2023-dez-30/nao-e-nao-criacao-de-protocolo-ajuda-a-combater-assedio-a-mulheres/

6Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2024/01/bancada-evangelica-defendeu-exclusao-de-cultos-na-lei-nao-e-nao-sancionada-por-lula.shtml

7AGOSTINHO, Luís Otávio Vicenzi de. “Análise Constitucional acerca da crise entre estado liberdade de crença e estado laico”. Revista do programa de Mestrado em Ciência Jurídica da FUNDINOPI, número 9, 2008. [p.133-146].p.138.

8DANTAS, Bruna Suruagy do Amaral. Religião e Política: ideologia e ação da bancada evangélica Câmara Federal. Tese apresentada no Doutorado em Psicologia Social da Pontifica Universidade Católica de São Paulo. São Paulo: Pontifica Universidade Católica de São Paulo-PUC/SP, 2014. p.23.

9DANTAS, Bruna Suruagy do Amaral. Religião e Política: ideologia e ação da bancada evangélica Câmara Federal. Tese apresentada no Doutorado em Psicologia Social da Pontifica Universidade Católica de São Paulo. São Paulo: Pontifica Universidade Católica de São Paulo-PUC/SP, 2014. p.24.

10ORO, Ari Pedro. A política da Igreja Universal e seus reflexos nos campos religiosos e políticos brasileiros. Revista Brasileira de Ciências Sociais-RBCS. v. 18 nº. 53 outubro/2003.p.55.

11NATIVIDADE, Marcelo. Margens da Política: Estado, Direitos Sexuais e Religiões. Rio de Janeiro: Garamond, 2016. p.45.

12Fonte:<https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/07/10/bolsonaro-diz-que-vai-indicar-ministro-terrivelmente-evangelico-para-o-stf.ghtml.> Acesso em: 05 maio de 2024.

13MANSO, Bruno Paes. A República das milícias: dos equadrões da morte à era Bolsonaro. São Paulo: Todavia, 2021

14ALEXY, Robert - Teoría de los derechos fundamentales, 2ªed, Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2008. p.70-71.

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Sobre o autor
Ricardo Russell Brandão Cavalcanti

Doutor em Ciências Jurídicas-Públicas pela Universidade do Minho, Braga, Portugal (subárea: Direito Administrativo) com título reconhecido no Brasil pela Universidade de Marília. Mestre em Direito, Processo e Cidadania pela Universidade Católica de Pernambuco. Especialista em Ciência Política pela Faculdade Prominas. Especialista em Direito Administrativo, Constitucional e Tributário pela ESMAPE/FMN. Especialista em Filosofia e Sociologia pela FAVENI. Especialista em Educação Profissional e Tecnologia pela Faculdade Dom Alberto. Capacitado em Gestão Pública pela FAVENI. Defensor Público Federal. Professor efetivo de Ciências Jurídicas do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Pernambuco - IFPE.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAVALCANTI, Ricardo Russell Brandão. A lei “não é não” e o os cultos religiosos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7499, 12 jan. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/108012. Acesso em: 19 mai. 2024.

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