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Metas climáticas e luto agrícola:

o impacto da mobilização dos agricultores da UE

08/02/2024 às 19:40

Resumo:


  • Agricultores europeus protestaram contra regulamentações ambientais rígidas, incluindo uma proposta da UE para reduzir o uso de pesticidas, preocupados com o aumento de custos e viabilidade econômica.

  • Desafios adicionais enfrentados pelos agricultores incluem competição com importações de grãos ucranianos e potenciais acordos comerciais com o Mercosul, aumentando a pressão sobre os preços locais e a sustentabilidade da agricultura.

  • A Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, anunciou a retirada do Regulamento de Uso Sustentável (SUR), indicando a necessidade de uma abordagem mais equilibrada entre objetivos ambientais e práticas agrícolas sustentáveis.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Além das preocupações internas sobre as regulamentações ambientais, o setor agrícola da UE enfrenta desafios externos significativos, como as implicações do potencial acordo comercial com o Mercosul.

Introdução

Os recentes protestos de agricultores por toda a Europa lançaram luz sobre uma verdade incontestável: há um profundo descontentamento no coração do setor agrícola em relação às mudanças impostas pelas legislações europeias e nacionais dos Estados-membros. A União Europeia, com seus objetivos ambientais e de saúde altamente ambiciosos, aspirava uma proposta de regulamentação sobre o uso sustentável de pesticidas, incluindo medidas rigorosas que exigem que todos os agricultores adotem métodos de controle de pragas ecologicamente corretos e impondo restrições severas ao uso de pesticidas em áreas vulneráveis.

Contudo, essa proposta encontrou uma resistência significativa, catalisando uma série de protestos em todo o continente. As preocupações dos agricultores são variadas e profundas, abrangendo desde o aumento dos custos operacionais e a necessidade de cumprir metas de redução de carbono até as pressões adicionais trazidas pelos preços dos combustíveis, inflação e a concorrência acirrada das importações de grãos ucranianos.

O ponto culminante dessa resistência foi o anúncio feito pela Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, sobre a retirada do Regulamento de Uso Sustentável (SUR), uma medida que visava cortar pela metade o uso de pesticidas até 2030. Essa reviravolta representou um golpe considerável para a proposta inicial de regulamentação sobre o uso sustentável de produtos de proteção às plantas.

A controvérsia em torno dessa questão sublinha o dilema entre alcançar objetivos ambientais e enfrentar os desafios práticos do setor agrícola. Destaca-se a necessidade premente de uma abordagem mais equilibrada, que não apenas atenda às preocupações ambientais, mas também assegure a sustentabilidade econômica da agricultura europeia. Este contexto estabelece o cenário para uma análise profunda das dinâmicas em jogo entre a política ambiental da UE e a sustentabilidade agrícola, explorando as implicações da mobilização dos agricultores para o futuro da agricultura europeia e as estratégias necessárias para alcançar um equilíbrio entre a proteção ambiental e a viabilidade econômica da agricultura na União Europeia.

1. A Proposta de Regulamento sobre o Uso Sustentável de Produtos de Proteção às Plantas

1.1 Metas Vinculativas para Redução de Pesticidas

Em 23 de Junho de 2022 a Comissão Europeia adotou a Proposta de Regulamento 2021/2115, que trata sobre o uso sustentável de produtos fitossanitários. Central para a proposta são as metas vinculativas estabelecidas para a redução do uso e risco de pesticidas químicos em toda a UE, com um objetivo ambicioso de redução de 50% até 2030[1]. Essas buscam incentivar os Estados-Membros a adotarem práticas agrícolas mais sustentáveis e também garantem uma abordagem uniforme em toda a União, assegurando que todos os países contribuam para o esforço coletivo de redução.

O Manejo Integrado de Pragas (MIP) é destacado como um pilar fundamental da proposta, promovendo uma abordagem sustentável ao uso de pesticidas. O MIP enfatiza a prevenção de pragas através de práticas agrícolas inteligentes, como a rotação de culturas, o uso de variedades resistentes e o fomento de inimigos naturais das pragas. Quando o controle de pragas se faz necessário, a preferência é dada a métodos não químicos, como controles biológicos, mecânicos e físicos, recorrendo a pesticidas químicos apenas como último recurso e de maneira mais direcionada possível[2].

Se tratando da proteção de áreas particularmente vulneráveis, a proposta introduz restrições rigorosas ao uso de pesticidas em locais sensíveis. Isso inclui áreas urbanas verdes, como parques públicos, jardins, playgrounds, campos de recreação ou esportes, caminhos públicos e outras áreas ecologicamente sensíveis essenciais para a preservação de polinizadores ameaçados.

2. Oposição e Protestos: Queixas dos Agricultores

Todavia, os agricultores europeus têm expressado sua insatisfação com as mudanças recentes nas legislações, tanto a nível da UE quanto nacional. As políticas ambientais destinadas a reduzir o uso de pesticidas até 2030, exigem uma difícil adaptação e impõem diversas restrições. Essas medidas, embora fundamentadas em preocupações ambientais legítimas, levantam questões sobre a viabilidade econômica das práticas agrícolas existentes e a capacidade dos agricultores de se adaptarem sem comprometer a produção.

2.1 O Impacto das Importações de Grãos Ucranianos

A preocupação com as importações de grãos ucranianos adiciona outra camada de complexidade ao cenário[3]. A facilitação dessas importações pela UE, embora parte de um esforço de apoio à Ucrânia, tem o potencial de saturar o mercado europeu, pressionando ainda mais os preços dos grãos e afetando a competitividade dos agricultores locais. Esse cenário ressalta a necessidade de políticas que considerem os impactos mais amplos no setor agrícola europeu, equilibrando apoio geopolítico com a proteção econômica dos agricultores da UE.

Um exemplo disso fora o descontentamento do governo da Polônia com o acordo de grãos da Ucrânia. Em Setembro de 2023, a Polônia, juntamente com a Hungria e a Eslováquia, manteve uma proibição às importações de grãos ucranianos, argumentando que isso prejudica os interesses de seus agricultores. Essa disputa sobre se o grão ucraniano deveria ser permitido entrar nos mercados domésticos desses países da União Europeia levou as relações entre Kiev e Varsóvia ao ponto mais baixo desde o início da invasão russa à Ucrânia[4].

2.2 Retirada do Subsídio do Diesel na Alemanha

Paralelamente, o governo alemão está tentando cortar subsídios para o diesel usado em máquinas agrícolas, uma medida que tem provocado protestos significativos dos agricultores em todo o país. Atualmente, os agricultores recebem um reembolso parcial da taxa de energia, especificamente 21,48 centavos por litro de diesel utilizado, o que representa uma economia média de aproximadamente 2.900 euros por empresa agrícola por ano. Além disso, veículos agrícolas, como tratores e colheitadeiras, que podem ter motores de até doze litros e produzir 500 cavalos de potência, estão isentos do imposto sobre veículos. Se essa isenção fosse removida, as taxas anuais de imposto sobre veículos poderiam chegar a 1.200 euros por veículo[5].

A retirada do subsídio do diesel na Alemanha é vista pelos agricultores como mais um obstáculo em um ambiente já desafiador. Essa medida, ao aumentar os custos de operação, especialmente para aqueles que dependem de maquinário pesado, destaca a tensão entre as políticas governamentais e as realidades econômicas do setor agrícola. A decisão provocou protestos em diversas cidades da Alemanha como Frankfurt, Berlim e Hamburgo e é um ponto crítico na discussão sobre como as políticas podem ser estruturadas para apoiar a transição para práticas mais sustentáveis sem prejudicar indevidamente aqueles no front da produção de alimentos[6].

2.3 Insatisfação com o acordo com o Mercosul na França

De maneira similar, após trabalhadores do setor agrícola fecharem diversas estradas, incluindo um bloqueio a Paris, a França anunciou que a Comissão Europeia interrompeu as negociações de um acordo comercial com o grupo de países do Mercosul[7]. A oposição da França ao acordo EU-Mercosul não é recente, e o país tem reiterado sua posição contrária à medida que os protestos se intensificam. Os agricultores franceses estão preocupados com o impacto que um acordo de livre comércio com o Mercosul poderia ter sobre a agricultura local, temendo que a entrada de produtos agrícolas sul-americanos no mercado europeu possa prejudicar os produtores locais.

Esses produtos, provenientes de Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, poderiam ser vendidos a preços mais baixos, desestabilizando o mercado interno europeu e colocando em risco a subsistência dos agricultores locais. O presidente francês, Emmanuel Macron, planeja reiterar sua oposição ao pacto durante uma cúpula de líderes da UE em Bruxelas, bem como em uma reunião bilateral com a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen.

2.4 Descontentamento com importações na Itália

Em Viterbo, Itália, no dia 5 de fevereiro, agricultores iniciaram protestos contra entraves burocráticos e a entrada de importações baratas de fora da União Europeia, marcando um momento significativo de descontentamento dentro do setor agrícola. Originários de regiões menos povoadas, esses agricultores carregavam cartazes proclamando "Sem agricultor, Sem comida", sinalizando seu papel crítico na produção de alimentos e suas atuais queixas[8]. Os agricultores italianos também estão defendendo a reintrodução de uma isenção fiscal de renda introduzida em 2017, mas descontinuada na lei orçamentária de 2024.

3. A Retirada do Regulamento de Uso Sustentável (SUR)

Diante dos fatos apresentados, no dia 6 de Fevereiro a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, anunciou que retirará o a Proposta de Regulamento de Uso Sustentável[9].  A retirada do Regulamento de Uso Sustentável (SUR) pela Presidente da Comissão Europeia marca um ponto de inflexão significativo na política ambiental da União Europeia.

A retirada do SUR tem implicações para o Pacto Ecológico Europeu, a estratégia da UE para tornar sua economia sustentável e alcançar a neutralidade climática até 2050. O SUR era visto como um componente crítico da estratégia Do Prado ao Prato, destinada a tornar os sistemas alimentares da UE saudáveis e ecologicamente corretos[10]. Logo, a decisão de retirar o regulamento levanta questões sobre a viabilidade de alcançar os objetivos ambientais da UE sem impor restrições significativas ao uso de pesticidas.

Além disso, a retirada do SUR pode afetar a credibilidade da UE em liderar globalmente em questões ambientais e climáticas. Portanto, isso demonstrou as dificuldades de equilibrar objetivos ambientais ambiciosos com interesses econômicos e sociais, especialmente em setores tão vitais e sensíveis como a agricultura.

3.1 Reações de Grupos Ambientais e Partidos Políticos

A reação à retirada do SUR foi imediata e polarizada. Grupos ambientais, que há muito tempo defendem uma redução drástica no uso de pesticidas para proteger a biodiversidade e a saúde humana, expressaram profunda decepção e preocupação. Organizações como a Rede de Ação contra Pesticidas (PAN Europe) descreveram o dia do anúncio como um "dia negro para a saúde e a biodiversidade"[11].

Por outro lado, partidos políticos e associações de agricultores que se opuseram ao regulamento original saudaram a decisão como um reconhecimento necessário das realidades práticas enfrentadas pelos agricultores europeus. Eles argumentam que as metas de redução de pesticidas propostas eram irrealistas e ameaçavam a produção de alimentos na UE, especialmente em um momento de crescente insegurança alimentar global. O Partido Popular Europeu (PPE), por exemplo, considerou a retirada do SUR como "atrasada, razoável e aliviadora", enfatizando a necessidade de trabalhar com os agricultores para combater as mudanças climáticas, em vez de contra eles[12].

Conclusão

A intersecção entre a sustentabilidade ambiental e a viabilidade econômica no setor agrícola tem sido uma fonte de tensão crescente na União Europeia. Os protestos de agricultores em toda a Europa emergiram como um símbolo poderoso do descontentamento dentro do setor, desencadeado por legislações europeias e nacionais. Essas legislações incluem a proposta de regulamentação sobre o uso sustentável de produtos de proteção às plantas, com o objetivo de reduzir drasticamente o uso de pesticidas até 2030, promovendo práticas como o Manejo Integrado de Pragas (MIP) e impondo restrições ao uso de pesticidas em áreas sensíveis.

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Além das preocupações internas sobre as regulamentações ambientais, o setor agrícola da UE enfrenta desafios externos significativos, como as implicações do potencial acordo comercial com o Mercosul. Este acordo tem sido objeto de intensa preocupação entre os agricultores franceses, que temem que a entrada facilitada de produtos agrícolas sul-americanos possa saturar o mercado europeu, pressionando os preços e ameaçando a sustentabilidade das práticas agrícolas locais.

Na Alemanha, a tentativa do governo de cortar subsídios para o diesel usado em máquinas agrícolas adicionou outra camada de complexidade, provocando protestos significativos dos agricultores. Esses subsídios têm sido fundamentais para manter os custos operacionais dos agricultores gerenciáveis, e sua remoção ameaça aumentar ainda mais a pressão sobre um setor já desafiado por regulamentações ambientais rigorosas e incertezas de mercado.

Consequentemente, esses elementos, juntamente com a pressão adicional das importações de grãos ucranianos, culminaram na decisão da Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, de retirar o Regulamento de Uso Sustentável (SUR).

Olhando para o futuro, é essencial que a União Europeia adote uma abordagem mais equilibrada e flexível, que reconheça as contribuições vitais dos agricultores para a sociedade e a economia, ao mesmo tempo em que se esforça para proteger o meio ambiente. Isso pode incluir o desenvolvimento de novas tecnologias e métodos de cultivo, o aumento do investimento em pesquisa e desenvolvimento para práticas agrícolas sustentáveis, e a criação de incentivos econômicos que encorajem a adoção de tais práticas.

A retirada do SUR, embora represente um revés para as políticas ambientais da UE, também oferece uma oportunidade para repensar e reformular a abordagem da União e Estados Membros. Ao adotar uma estratégia que equilibre as necessidades ambientais, governamentais e econômicas, a UE pode garantir um futuro em que a agricultura não apenas sobreviva, mas também prospere em um equilíbrio necessário para o funcionamento do bloco.


Referências

[1] Procedure 2022/0196/COD

[2] Regulation (EU) 2021/2115

[3] Farmers across Bulgaria protest against Ukrainian grain as EU divide grows | AP News

[4] Grain spat drags Ukraine's ties with ally Poland to lowest point since start of Russian invasion | AP News

[5] Subventionsabbau: Wie es den deutschen Landwirten geht | tagesschau.de

[6] Onde os agricultores protestam | tagesschau.de

[7] EU stopped Mercosur talks, France says as French farmers ramp up protests – POLITICO

[8] Italy's farmers head to Rome in tractor convoy as European anger spreads | Reuters

[9] EU Commission chief to withdraw the contested pesticide regulation – Euractiv

[10] "Do prado ao prato" - Consilium (europa.eu)

[11] Black Day for Health and Biodiversity: EU Commission withdraws proposal for Pesticide Reduction | PAN Europe (pan-europe.info)

[12] Scrapping pesticides law is "overdue, reasonable and relieving" (eppgroup.eu)

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Sobre o autor
Pedro Vitor Serodio de Abreu

LL.M. em Direito Econômico Europeu, Comércio Exterior e Investimento pela Universität des Saarlandes. Legal Assistant na MarketVector Indexes.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ABREU, Pedro Vitor Serodio. Metas climáticas e luto agrícola:: o impacto da mobilização dos agricultores da UE. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7526, 8 fev. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/108363. Acesso em: 22 dez. 2024.

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