Estamos presenciando, nos últimos anos, um inaudito crescimento do crime organizado e da violência urbana, principalmente nos Estados do Rio de Janeiro e de São Paulo, mas também com tentáculos estendidos sobre muitas outras unidades da Federação. Recentemente, a revista Veja publicou extensa reportagem especial de 40 páginas sobre "a criminalidade no Brasil, hoje em proporções muito acima das suportáveis em um país que se pretende civilizado" [1]. Inocentes mortos por balas perdidas nas lutas entre gangues e facções rivais; "arrastões" em vias públicas, com a utilização de armas e técnicas de ação altamente sofisticadas; execução de rivais, policiais militares e simples pessoas da população civil com requintes de violência e sadismo; rebeliões conjugadas e sincronizadas em presídios situados em locais muito distantes, patenteando a existência de um comando único – tudo isso está se tornando rotina no Brasil. Paradoxalmente, em nosso País, o traço psicológico fundamental, ensinou o Mestre Sérgio Buarque de Holanda, é, "se Deus quiser sempre será, a cordialidade [...]".
Configura-se, segundo muitos analistas, a existência de um Estado dentro do Estado. O crime organizado vem atingindo paroxismos tais que permitiram ao Presidente Lula e ao Governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral Filho, a utilização inadequada, do termo "terrorismo".
Compreende-se.
Que diferença há entre um homem-bomba que explode um ônibus cheio de mulheres e crianças em Israel ou no Líbano e um integrante de gangue que incendeia um ônibus cheio de vítimas inocentes nos subúrbios da Cidade Maravilhosa? O exemplo carioca talvez seja pior porque a morte que se impõe às vítimas é mais lenta, mais cruel e, se não fosse contradictio in terminis, diríamos que mais friamente provocada.
Essa situação calamitosa enseja propostas, freqüentemente repetidas, de que as Forças Armadas deveriam ser utilizadas no combate direto ao crime organizado. Algumas experiências foram feitas no passado (especialmente durante a ECO-92, no Rio de Janeiro) e, mesmo no momento presente, no Estado do Rio, estão atuando contingentes da chamada Força Nacional de Segurança (FNS), com apoio logístico e instrumental do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, a pedido do Governo estadual atendido pelo Presidente da República. De ver-se também que, nos Estados do Espírito Santo e de Mato Grosso, a FNS já atuou a pedido dos respectivos Governadores. Em São Paulo, durante os graves incidentes ocorridos há cerca de um ano, apesar dos insistentes oferecimentos de Brasília, o então Governador Cláudio Lembo recusou a oferta do Presidente da República.
Que pensar disso?
À primeira vista, dada a gravidade da situação, pareceria conveniente a participação das Forças Armadas na prevenção e repressão às atividades das organizações criminosas. De fato, pela Constituição Federal (art. 142), as Forças Armadas (compostas pelo Exército, Marinha e Aeronáutica) destinam-se "à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem". A defesa externa, portanto, pode ser a principal finalidade das Forças Armadas, mas não é a única. Secundariamente, também lhe compete assegurar o cumprimento da lei e a ordem interna do País.
Sem dúvida, a segurança pública, que, de acordo com o art. 144 da nossa Carta Magna, constitui "dever do Estado, direito e responsabilidade de todos", é atribuição da Polícia Federal, da Polícia Rodoviária Federal, da Polícia Ferroviária Federal, das Polícias Civis estaduais, das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros Militares. No momento, porém, essas instituições, obviamente, não estão dando conta do recado. Pareceria indicado, portanto, pelo menos subsidiariamente e a título excepcional, recorrer às Forças Armadas, já que o citado art. 142 da Constituição lhes atribui também a manutenção da ordem interna do País. Esse é o grande argumento a favor da tese de que as Forças Armadas devem ser utilizadas na repressão ao crime organizado [2].
Sed contra... há um fortíssimo argumento que, a nosso ver, é decisivo e nos leva à posição contrária, a qual, venia concessa, passamos a justificar. Deixamos claro, de plano, que não nos move qualquer preconceito antimilitar ao formulá-la. Pelo contrário, temos excelentes amigos nas Forças Armadas e sabemos avaliar todo o imenso mérito do nosso glorioso Exército, como também das nossas não menos gloriosas Marinha e Aeronáutica.
Historicamente, no Brasil, a distinção entre civis e militares só pouco a pouco foi se firmando, em termos de perspectiva histórica. [3] No início do processo colonizador, todos os cidadãos livres participavam do esforço de defesa do território brasileiro contra índios, de um lado, e a cobiça dos invasores estrangeiros (holandeses, franceses e espanhóis), de outro. Os forais concedidos na instituição das capitanias hereditárias, por D. João III, de março de 1534 até meados de 1536, e o Regimento dado em 1549, pelo mesmo Rei, ao primeiro Governador-Geral do Brasil, Tomé de Souza, o qual muitos historiadores do Direito consideram a primeiríssima e ainda embrionária constituição política do Brasil, contêm referências muito claras a esse propósito [4].
De considerar que, diversamente do que muitas pessoas supõem, os habitantes do Brasil pagavam, nos tempos coloniais, menos impostos que os reinóis, pois a Coroa lusa tinha interesse em atrair, para o povoamento do Brasil, o maior número possível de candidatos. Até a descoberta do ouro em Minas Gerais, que ocorreu apenas nos últimos anos do século XVII, o grande atrativo que o Brasil podia exercer para os lusos que aqui vinham tentar a sorte era, precisamente, o pagamento de impostos muito baixos. Os que para cá se mudavam, contudo, deviam, em contrapartida, manter armamento em ordem para qualquer necessidade.
Aos poucos, com o crescimento da população e a maior institucionalização administrativa, foram sistematizadas as milícias, que eram – exprimindo-nos em uma linguagem um tanto simplificadora – uma espécie de Polícia Militar da época. Mais tarde, já no século XIX, foi instituída a famosa Guarda Nacional, constituída por civis, a par das Forças Públicas, inicialmente fundadas pelo célebre Brigadeiro Rafael Tobias de Aguiar.
Foi somente a partir da Guerra do Paraguai (1864/1870) que se firmou a tendência de o Exército constituir uma força política influente e autônoma no panorama nacional. Essa força consolidou-se nas duas últimas décadas da Monarquia, até que, em 1889, com a proclamação da República, o Exército, pela primeira vez, impôs-se ao Estado. O Governo Provisório, chefiado pelo Marechal Deodoro da Fonseca, foi, na realidade, uma primeira ditadura militar. Já na segunda semana do novo regime, o Decreto n. 85-A, de 23 de dezembro de 1889 (apelidado pelo bom humor dos cariocas, na época, de "decreto-rolha"), não somente cerceou a liberdade de imprensa mas também instituiu lei marcial com julgamento sumário e possibilidade até de pena de morte para os descontentes críticos do novo regime. Mesmo após a entrada em vigor da primeira Constituição republicana, em 1891, ainda prosseguiu o regime de arbítrio durante o governo militar de Floriano, tendo havido numerosas execuções no Paraná e em Santa Catarina. E, mesmo após a subida ao poder do civil Prudente de Moraes, ainda ocorreu, em 1896, o desnecessário e cruel massacre de Canudos [5].
Essa nova posição do Exército inseria-se em um contexto geral latino-americano, no qual, depois da Independência, proliferaram caudilhos e ditadores. Desde a proclamação da República, pode-se dizer que as Forças Armadas exerceram longamente, no Brasil, papel análogo ao do Poder Moderador do Império. Foi nos ambientes militares que surgiu o movimento do Tenentismo, o qual promoveu sucessivos levantes e intentonas na década de 1920, até chegar ao poder em 1930, com a ascensão de Getúlio Vargas, que sempre procurou, nas várias fases de seu extenso consulado, apoiar-se nas Forças Armadas, personificadas de modo especial em três personagens característicos, os quais exprimiam tendências muito diversas do Exército brasileiro: Juarez Távora, Góes Monteiro e Eurico Gaspar Dutra.
Em 1946, a eleição de Dutra para primeiro Presidente da nova República redemocratizada assinalava bem o papel que as Forças Armadas continuariam a exercer no Brasil. Depois do golpe de 1964, seguiu-se o período da chamada ditadura militar (1964/1985), ao fim do qual se fez sentir uma reação de fazer os militares retornarem ao seu papel primordial, que é o da defesa da soberania nacional contra ameaças externas. Os constituintes de 1987/88 tiveram a atenção voltada para esse ponto e o deixaram assente na nossa Lei Maior. Só excepcionalmente, muito e muito excepcionalmente, pode caber às Forças Armadas um papel na política interna, para assegurar o bom funcionamento das instituições do Estado de Direito.
Esse é o fundo de quadro histórico que não podemos esquecer ao analisar a questão em foco. Assim postas as idéias, no momento atual, sobretudo quando as instituições políticas estão em tão grande crise, abaladas por contínuas denúncias de corrupção e malversação de recursos públicos, em que a classe política padece de tão grande descrédito [6], não cremos prudente abrir um precedente que poderá eventualmente ensejar, em um futuro mais remoto ou menos, o retorno das Forças Armadas ao centro das atividades políticas e, talvez, ao próprio poder federal. Em outros termos, admitimos que, em tese, podem ocorrer situações em que as Forças Armadas possam e devam intervir para garantir a segurança pública.
Acreditamos que, apesar da gravidade da situação atual, não é prudente a utilização das Forças Armadas no combate ao crime organizado.
Que fazer, então, diante da escalada do crime? Proceder a mudanças na legislação penal, instituindo penalidades mais severas e cogentes para os agentes delituosos? A nosso ver, isso não seria suficiente para coibir a criminalidade. Sob outro aspecto, estamos convencidos de censurável simplificação ao dizer que a causa maior do crime é a pobreza, decorrente das desigualdades sociais. Essa formulação, em primeiro lugar, afigura-se-nos um tanto preconceituosa, pois parte do princípio errôneo e injusto, muito disseminado em certas camadas da burguesia, de que todo pobre é um criminoso em potencial e, pois, deve ser visto com desconfiança e hostilidade pelas classes mais elevadas e pelos órgãos policiais. Na realidade, criminosos os há em todas as classes sociais, inclusive na média e na alta. E a imensa maioria da população de baixa renda em nosso País ainda é, felizmente, constituída por gente honesta, ordeira e trabalhadora. É possível que, considerando-se o número de delinqüentes de cada classe social proporcionalmente ao número de integrantes da mesma classe, a porcentagem de delinqüentes de condição social mais elevada seja igual ou até maior.
A nosso ver, deveríamos procurar a solução por meio de investimentos maciços no aparelhamento e – à medida que seja necessário – no saneamento dos meios policiais e policiais militares. Igualmente, seria preciso agilizar os procedimentos investigativos e judiciários, de modo a tornar o cumprimento da lei uma realidade, e a sua violação, sempre e invariavelmente, uma causa próxima e inevitável de punição justa e exemplar.
E, the last but not the least, não nos esqueçamos da importância das medidas de alcance educativo e social, com a adoção de uma ampla política social de geração de empregos, de lazer, de alimentação e estudo, de incentivo ao esporte e à prática artística. Essas medidas, sim, muito mais do que remédios e paliativos, serão sementes lançadas para germinar um futuro melhor, com o qual sonharam nossos antepassados, e que todos nós, brasileiros, desejamos transmitir aos nossos filhos e netos.
Notas
[1] Revista Veja, 10 jan. 2007.
[2] Cf., por exemplo, MORELLE, Ítalo (Juiz de Direito da 3.ª Vara de Botucatu/SP). Caos no Rio – Exército também deve zelar pela ordem interna no País. Consultor Jurídico, 16 abr. 2004. Disponível em: www.consultorjuridico.com.br.
[3] Intencionalmente, limitamos a exposição, neste artigo, à evolução histórica do Brasil. Vale lembrar que, no panorama internacional, análogo processo foi seguido. Depois das guerras napoleônicas, os exércitos, muito aumentados em seus efetivos, destacaram-se como força política, e os Estados soberanos passaram a se servir de exércitos permanentes como elemento de apoio para sua continuidade no poder. Uma interessante exposição histórico-jurídica sobre o papel das Forças Armadas nos Estados, no período moderno e contemporâneo, pode ser encontrada em MIGON, Eduardo Xavier Ferreira. O papel jurídico-constitucional das Forças Armadas do Cone Sul como fator de influência na integração militar regional. Disponível em: www.ambito-juridico.com.br. Acesso em: 2 jan. 2007.
[4] Cf., a respeito, FERREIRA, Waldemar. As capitanias coloniais de juro e herdade. São Paulo: Saraiva, 1962. v. 1. (Coleção História do Direito Brasileiro); e DIAS, Carlos Malheiro. O regime feudal das capitanias. Porto: Litografia Nacional, 1922. t. 3. (Coleção História da Colonização Portuguesa no Brasil).
[5] Cf., a respeito dos episódios recordados neste parágrafo, JANOTTI, Maria de Lourdes Mônaco. Os subversivos da República. São Paulo: Brasiliense, 1986; e SANTOS, Armando Alexandre dos. Parlamentarismo, sim! Mas à brasileira: com Monarca e com Poder Moderador eficaz e paternal. São Paulo: Artpress, 1992.
[6] Cf. Políticos – Pesquisa IBOPE – O que os brasileiros pensam deles: "desonestos, insensíveis, mentirosos...". In: Revista Veja, 31 jan. 2007.