Existe mercado de venda de petições produzidas pela inteligência artificial. Proliferam os advogados que trocam a dignidade do saber jurídico pelo ofício de atravessadores de peças supostamente científicas. Há sentenças produzidas em série, o que faz de juízes simplórios operários de uma indústria de parágrafos nunca lidos.
(Extrato de conferência no 20º Encontro Internacional de Juristas realizado em San José da Costa Rica – janeiro de 2024.)
Ao eleger a perspectiva de justiça como peça de abertura desse evento com dignidade internacional, registro um episódio do qual foi protagonista o eminente ministro José Augusto Delgado, falecido em 2021. Narrou, bem humorado, o dia em que passava o fim de semana na sua casa em Natal, no Rio Grande do Norte, e mirava os olhos no texto de um livro quando a neta perguntou: “Vovô, o que o senhor está a ler?” Ele respondeu: “Uma obra sobre justiça”.
A menina mostrou surpresa: “O vovô me disse que foi juiz desde os 22 anos; foi desembargador em tribunal federal; é ministro de uma das mais altas Cortes do país. E o senhor ainda não apreendeu o que é justiça?”.
“E alguém sabe?” – teria replicado aquele que honrou a magistratura do Brasil. De fato, quem domina esse saber? O leigo, por intuição ou interesse, aponta aquilo que na certeza íntima se lhe afigura como a expressão do justo. Mas os juristas, os filósofos e os estadistas não têm sintonia sobre o que seja esse substantivo feminino.
Justiça seria um conceito? Uma ideia? Uma meta? Um trabalho que o Estado entrega por demanda? Um projeto social? Um enigma religioso? Seria uma sensação? Um alívio para aquele que tem a alma em desassossego? Uma esperança para quem busca a satisfação de algo que assegura ser seu?
Os intelectualmente responsáveis perseguem a explicação sobre o que seja verdadeiramente a justiça, mas sem, até hoje, compreenderem exatamente o que é.
Por seu turno, aos cidadãos não concerne decifrar o que teriam dito Platão, Santo Tomás de Aquino, Max Weber ou Voltaire. As pessoas querem a justiça simplesmente, o algo que não se transporta nos braços, mas que chega ao coração de quem se encontra em angústia. E como sabermos o que é isso? Como fazer a entrega desse produto imaterial, todavia necessário como o ar que se respira?
O Papa João Paulo II, ao realizar a primeira visita ao Brasil em 1981, entre outros sítios, esteve em Recife. Um locutor entusiasmado que fazia a transmissão do evento bradou: “Sua Santidade chega ao Recife, essa cidade de encantos, que é metade terra, metade céu e metade mar”. Conta-se que foi o primeiro milagre a garantir a mais rápida canonização da história (em apenas oito anos após a morte do iluminado pontífice). Em contradição à física, à matemática e à lógica, o papa conseguira dividir algo em três metades. Então é lícito que se faça uma divisão didática a partir das três metades da justiça:
A Justiça (com “J” maiúsculo) como um serviço público que, de tão essencial, o Estado concede a áurea de Poder.
A justiça como um direito subjetivo das pessoas, quando, no dizer de Ulpiano, elas têm a vontade constante e perpétua de receber aquilo que lhes pertence.
E justiça como objetivo social. A Constituição brasileira, por exemplo, acentua como um dos primados da República a construção de uma sociedade solidária e justa. É por isso que se fala em “justiça social”.
Entretanto todo esse desenho pertence à galeria de quadros abstratos.
Um jurista de São Paulo, renomado administrativista, é, também, um exímio pintor. Os seus quadros expressam o imaterial, são contemplativos; interpretativos como diria um marchand. Perguntado por que não retratava o concreto, uma imagem de fácil percepção, explicou que era questão de mercado: havia quatro possibilidades de vender a obra. Se não negociava em um mês, o curador da mostra mudava a posição da tela. E assim repetia, até que, na terceira ou quarta volta, alguém se identificava com os traços exóticos e ali percebia um sentido que sequer o artista reparara.
Na prática, a justiça é assim. Subjetiva, metafísica. Exige-se habilidade intelectual, impressionabilidade, a capacidade de surpreender-se, para se encontrar o sentido de acordo com a posição que se apresenta em tela.
Tomemos o critério de um magistrado da Suprema Corte dos Estados Unidos. Inquirido sobre o que é moral, declarou, “Não sei, mas me mostrem uma imoralidade e logo a reconheço”. Um homem simplório da vida rural diria: “eu não boto ovo, mas sei quando está podre”.
Portanto se não temos a capacidade de explicar objetiva e conclusivamente o que é a justiça, não é difícil ao pensamento sagaz perceber aquilo que é incompatível com a moralidade, com a prudência, com o razoável e até com a essência divina, que se pressupõe identificada com o altruísmo; não será de justeza aquilo que a inocência da criança renega; será espúria qualquer ação ou reação que uma pessoa de boa-fé naturalmente aponte como inadequada.
Nessa arenga que chega ao fim, a conclusão particular é a de que, seja lá a forma que a justiça tenha, ela só é percebida pela inteligência emocional. A inteligência artificial acelera a informação do direito em tese, mas serão as conexões neurais que farão o trabalho que está diretamente vinculado a uma ciência humana e social. E, assim, figura-se para reflexão: já existe mercado de venda de petições produzidas pela inteligência artificial. Proliferam os advogados que trocam a dignidade do saber jurídico pelo ofício de atravessadores de peças supostamente científicas. Há sentenças produzidas em série, o que faz de juízes simplórios operários de uma indústria de parágrafos nunca lidos.
Poucos sabem: Saddan Hussein formou-se em direito em 1962 pela Universidade do Cairo. Em 1989 discorreu sobre a aplicação da justiça em um livreto distribuído em várias línguas. E até ele, psicopata e genocida, escreveu que é a mão do juiz que nos conduz aos caminhos de Deus.
Portanto, é temerária toda decisão proferida sem o pensamento do magistrado, ainda que este seja maculado pelo equívoco ou por qualquer circunstância associada à falibilidade humana. E em tal heresia se converte qualquer peça de profissional do direito que renegue o próprio conhecimento a favor dos artifícios numéricos que vêm de uma lâmina miniaturizada feita de silício.
Fora da contemplação particular não há decisão jurídica; há um produto insosso criado artificialmente para o préstimo da burocracia inútil.
A comodidade sempre tem custo. Nesse itinerário de aparente conforto, logo seremos dispensáveis, desnecessários. Os tribunais serão castelos mal assombrados. E nós – e o que seria a nova geração de juristas – seremos almas a penar por corredores mal assombrados. E a justiça? A justiça como serviço, como direito e como ideal, será um rótulo de mercadoria a ser produzida por máquinas para a utilidade de não se sabem de quem.