Duas notícias publicadas nos últimos dias aumentaram o abismo que separa Donald Trump de Jair Bolsonaro e os EUA do Brasil. A primeira refere-se ao depoimento na PF do general Freire Gomes. A segunda diz respeito à vitória que o candidato a presidente norte-americano obteve na Suprema Corte dos EUA.
As implicações das duas notícias me parecem evidentes, mas elas demonstram que o Brasil e os EUA caminham em direções diametralmente opostas.
O depoimento do general Freire Gomes definirá o destino de Jair Bolsonaro e de dos comandantes militares ligados a ele. Os crimes imputados aos golpistas (artigos 359-l e 359-m, do Código Penal, quais sejam: abolição violenta do Estado Democrático de Direito e golpe de Estado) foram consumados durante a conspiração e preparação da Intentona de 08 de janeiro de 2023. O fato do golpe ter falhado é juridicamente irrelevante.
Inelegível, Bolsonaro não conseguirá reverter no STF a decisão proferida pelo TSE no caso da convocação dos diplomatas. O mais provável é que ele seja rapidamente denunciado e condenado com base no depoimento do general e nos precedentes já firmados sobre a questão pela Suprema Corte.
A situação de Trump é muito diferente. Para entender a decisão da Suprema Corte dos EUA não é preciso fazer um grande esforço teórico, bastando recorrer à História do Direito.
"O rei não pode fazer errado", Direito Medieval. "O Führer está sempre certo", princípio jurídico estruturante do III Reich. "Um presidente norte-americano não deve ser processado por crimes que cometeu durante o mandato", Suprema Corte dos EUA.
Um observador desapaixonado rapidamente chega à conclusão de que ao manter Donald Trump na disputa eleitoral a Suprema Corte desdemocratizou os EUA. A seção 4 do artigo II da Constituição Americana é bastante preciso:
“Seção 4 O Presidente, o Vice- Presidente, e todos os funcionários civis dos Estados Unidos serão afastados de suas funções quando indiciados e condenados por traição, suborno, ou outros delitos ou crimes graves.”
Assim como pode perder o mandato se for condenado por delito ou crime grave durante o mandato, o presidente dos EUA não deve deixar de ser processado e eventualmente condenado por delito ou crime grave depois que deixou a Casa Branca. O texto constitucional norte-americano é incompatível com os princípios medieval e nazista de total irresponsabilidade do chefe de Estado e de governo.
Ademais, a seção 2 do artigo III da Constituição Americana consagra o princípio da sujeição de todos, cidadãos e autoridades, ao julgamentos do poder judiciário:
“Seção 2 A competência do Poder Judiciário se estenderá a todos os casos de aplicação da Lei e da Eqüidade ocorridos sob a presente Constituição, as leis dos Estados Unidos, e os tratados concluídos ou que se concluírem sob sua autoridade; a todos os casos que afetem os embaixadores, outros ministros e cônsules; a todas as questões do almirantado e de jurisdição marítima; às controvérsias em que os Estados Unidos sejam parte; às controvérsias entre dois ou mais Estados, entre um Estado e cidadãos de outro Estado, entre cidadãos de diferentes Estados, entre cidadãos do mesmo Estado reivindicando terras em virtude de concessões feitas por outros Estados, enfim, entre um Estado, ou os seus cidadãos, e potências, cidadãos, ou súditos estrangeiros.
Em todas as questões relativas a embaixadores, outros ministros e cônsules, e naquelas em que se achar envolvido um Estado, a Suprema Corte exercerá jurisdição originária. Nos demais casos supracitados, a Suprema Corte terá jurisdição em grau de recurso, pronunciando-se tanto sobre os fatos como sobre o direito, observando as exceções e normas que o Congresso estabelecer.
O julgamento de todos os crimes, exceto em casos de impeachment, será feito por júri, tendo lugar o julgamento no mesmo Estado em que houverem ocorrido os crimes; e, se não houverem ocorrido em nenhum dos Estados, o julgamento terá lugar na localidade que o Congresso designar por lei.”
Não é possível dizer que um ex-presidente dos EUA é totalmente imune a julgamento por crime cometido durante o mandato porque isso levaria à inevitável revogação da competência atribuída ao Judiciário e da obrigatoriedade de julgamento de todos os crimes por juri. Como ex-presidente, Trump não pode sofrer impeachment. Mas isso não exclui necessariamente o julgamento dele por delitos e crimes que ele tenha cometido antes do mandato, durante o mandato ou depois dele.
Trump não pode fazer errado ou está sempre certo, o crime que ele cometeu não poderá ser julgado antes da eleição. Ao proferir uma decisão sem precedentes para beneficiar o candidato republicano, a Suprema Corte decretou o fim da democracia nos EUA. Os norte-americanos já estão vivendo sob um regime feudal com uma camada de verniz nazista.
Ao responsabilizar criminalmente os golpistas, o Brasil caminha na direção oposta. Entre nós a democracia e o Estado de Direito estão sendo fortalecidos pela Suprema Corte. Não me parece que o STF possa fazer algo semelhante ao que foi feito nos EUA para beneficiar o ex-presidente.
Nos últimos anos se tornou comum Ministros do STF citarem decisões da Suprema Corte dos EUA. Antes de conferir um privilégio inconstitucional a Donald Trump, os juízes daquele Tribunal poderiam ter observado o que está ocorrendo no Brasil. Mas eles preferiram ignorar o Brasil e o STF. O atalho que eles pegaram certamente levará a uma fragilização ainda maior do regime político norte-americano.
Em se tratando de Direito Constitucional pequenas brechas geralmente provocam grandes consequências. Se for novamente eleito, além de totalmente imune por crimes cometidos no passado Donald Trump cometerá crimes ainda maiores certo de que está acima de qualquer poder como se fosse o escolhido por deus. Assim como a Suprema Corte dos EUA rasgou um pedacinho da Constituição Americana para beneficiá-lo, o novo Rei ou Führer do American Reich poderá rasgar o que resta dela com evidente prejuízo para os cidadãos norte-americanos.
Com Trump no poder a pressão da Casa Branca em favor de Jair Bolsonaro se tornará inevitável e eventualmente irresistível. Portanto, convém o STF liquidar a fatura do ex-capitão antes da eleição norte-americana. Depois dela pode ficar difícil processar, julgar e condenar o chefe da familícia pelos crimes cometidos em 08 de janeiro de 2023.