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A Defensoria Pública e o problema da "pertinência temática"

23/01/2008 às 00:00
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Estaria a atuação da Defensoria Pública condicionada à demonstração, no caso concreto, de que somente o interesse dos hipossuficientes (precisamente delimitados) estaria sendo tutelado por meio da medida judicial?

Questão da mais alta relevância, que ultimamente tem despertado debates aprofundados, diz respeito à suposta necessidade de demonstração por parte da Defensoria Pública (quando esta atua em conflitos meta-individuais) da relação direta entre a pretensão veiculada na inicial e o benefício das pessoas comprovadamente necessitadas. Em outras palavras: estaria a atuação do Órgão condicionada à demonstração, no caso concreto, de que somente o interesse dos hipossuficientes (precisamente delimitados) estaria sendo tutelado por meio da medida judicial?

Mas seria útil discutir sobre pertinência temática em sede de ação civil pública? A análise se justifica, pois a legitimidade da instituição, para defesa dos interesses difusos, foi questionada por meio da ADI 3.943. A entidade postulante (CONAMP) alegou que a Lei Federal nº 11.448/07 (que alterou o art. 5º da Lei Federal nº 7.347/85) padece de "vício material de inconstitucionalidade" por suposta afronta aos artigos 5º, LXXIV, e 134 da Constituição Federal, uma vez que a Defensoria Pública teria sua atuação condicionada à individualização precisa de seus assistidos.

Não desconsideramos que o conceito de "necessitado" não se confunde com o de "pobre", ou economicamente hipossuficiente. O adjetivo remete àquela pessoa que padece de algum tipo de vulnerabilidade (econômica, técnica, fática, etc), capaz de colocá-la em situação de desvantagem, seja na relação de direito material ou processual (o consumidor, o idoso, o deficiente, dentre outros). Entretanto, vamos nos ater, para fins desta pesquisa, à figura do hipossuficiente econômico, por duas razões: sua defesa é objeto da maior parte da atividade da Defensoria Pública e, após extrair conclusões sobre a pertinência temática, tendo como enfoque a pessoa pobre, torna-se muito mais fácil solucionar questões ligadas a grupos sociais diversos.

Inicialmente, cumpre fazer algumas considerações sobre a origem e a razão de ser da denominada "pertinência temática".

Trata-se de um artifício criado e utilizado originalmente pelo Supremo Tribunal Federal para restringir a utilização das ações diretas de inconstitucionalidade, ante a alegada incapacidade da Corte de lidar com o número inesperado de demandas ajuizadas para impugnar a constitucionalidade de atos normativos.

O fato é que a jurisdição concentrada surgiu efetivamente no Brasil com o advento da representação de inconstitucionalidade, através da Emenda nº 16/65, à Constituição de 1946. Nessa época, o único autorizado à propositura era o Procurador-Geral da República, cargo de livre nomeação que funcionava, ao invés de um advogado da sociedade, como um representante dos interesses da ditadura militar. [01] Conforme anota Oswaldo Luiz Palu, "O monopólio da iniciativa da representação ao Procurador Geral da República (dominus litis) levou, em ocasiões, à não propositura da ação direta, como a conhecida omissão que gerou a Rcl 849 (RTJ 59/333) julgada em 10 de março de 1971." [02]

Desta feita, o constituinte de 1988, almejando pluralizar o debate constitucional (pluralização limitada, diga-se de passagem, pois a opção legislativa não contemplou o cidadão comum, conforme se verifica no modelo de jurisdição concentrada alemão) [03], expandiu o rol de legitimados à propositura da ADI, o que se verifica no artigo 103 da Constituição Federal. Ocorre que a ampliação da legitimidade ativa, se por um lado atendeu aos reclames da redemocratização, aparentemente provocou um estrangulamento dos órgãos de cúpula, seja em nível federal ou estadual, pois, segundo ensina Palu, "é inútil permitir o ingresso a excessivo número de agentes e entidades quando o número de juízes encarregados do julgamento é o mesmo e se não podem estes julgar somente as ações relevantes." [04]

O termo "pertinência temática" foi cunhado pelo Ministro Celso de Melo [05] que, ao que tudo indica, associou o conceito de legitimidade ad causam (pertinência subjetiva da ação) a um segundo requisito de natureza processual, qual seja, o interesse de agir (necessidade e utilidade da prestação jurisdicional), isso num processo de natureza objetiva:

"Um outro aspecto merece referência e diz respeito ao interesse de agir das entidades de classe, a envolver a necessidade de que demonstrem, objetivamente, a relação de pertinência entre a finalidade institucional que motivou a sua criação e o conteúdo e a natureza da lei ou ato normativo impugnado. A descoincidência temática entre esses dois elementos referenciais – finalidade da associação e conteúdo material da lei ou ato normativo – descaracterizará o interesse de agir e ensejará a carência da ação direta." [06]

Logo, certas instituições elencadas no art. 103 da Carta Magna, não obstante serem formalmente legitimadas para proporem ADI, têm sua atuação condicionada à demonstração da relação de pertinência entre o ato impugnado e a atividade por ela desempenhada.

A utilização de tal mecanismo foi e continua sendo duramente criticada pela doutrina. O primeiro argumento é que, sendo o processo da ADI tipicamente objetivo, ou seja, desprovido de uma lide (exercício de uma ação em busca de uma pretensão de um direito material resistido), faz-se incompatível a restrição ao direito de propositura com base em qualquer uma das condições da ação, institutos típicos do processo subjetivo. [07]

O segundo ponto, mais importante, diz respeito ao fato de que, exigindo do ente legitimado a prova da pertinência temática, o STF contraria a opção legislativa expressa e inequivocamente feita pelo Constituinte, burlando o objetivo do texto, que é tornar amplo o debate constitucional. O fato é que não há na nossa Carta qualquer ressalva com relação a algum legitimado!

O inconveniente é descrito com precisão por Souza Cruz, quando o mesmo aduz que "Foi o próprio Constituinte Originário quem ampliou o leque de legitimados sem qualquer distinção. Dizer que um partido político é essencial ao regime democrático, devendo ter ampla legitimidade para a propositura da ação e que um sindicato não deva ter tal legitimidade, nada mais é que manter/reconstruir a velha desconfiança do Supremo em relação aos sindicatos, socialistas e anarquistas do princípio do século XX. Reflete nada mais que uma preferência arbitrária do Supremo. É, pois, manifestação da ‘Jurisprudência de Valores’ no Brasil, tão cara às Cortes Constitucionais alemã e italiana." [08]E complementa o Professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais:

"O Estado Democrático de Direito radica uma concepção de igualdade que permite a inclusão nos discursos de justificação e de aplicação das normas, dando simétricos direitos a todos aqueles pré-selecionados pelo Poder Constituinte Originário à propositura da ADIn. Afigura-se arbitrária a exigência de demonstração de pertinência temática para Confederações Sindicais, impondo uma desigualação entre legitimados universais e legitimados especiais." [09]

Pois bem. Traçado este perfil inicial da pertinência temática e as críticas que decorrem de sua observância, no que diz respeito ao controle concentrado, fazemos uma transposição do problema para a esfera da ação civil pública, indagando novamente: estaria a atuação da Defensoria Pública condicionada à demonstração, no caso concreto, de que somente o interesse dos economicamente hipossuficientes estaria sendo tutelado por meio da medida judicial (individualização precisa de seus assistidos)? A resposta só pode ser negativa, senão vejamos.

Num primeiro momento, afirmamos sem receio, que não é possível antecipar, em sede de tutela coletiva, a qualidade sócio-econômica dos beneficiados pelo provimento (pobres, ricos, etc). Vejamos um exemplo: A Defensoria decide ajuizar ação civil pública contra diversas instituições financeiras para que adequem seus contratos de financiamento aos padrões estipulados no Código de Defesa do Consumidor. Óbvio que, num primeiro momento, a instituição estaria protegendo o interesse de seus assistidos (em estrita observância da atribuição descrita no art. 134, caput, da CR/88), pessoas pobres que sofrem com a súbita expansão de seu débito, bastando curto prazo em situação de mora. Porém, ao analisarmos quem seriam os beneficiados, efetivamente, com uma decisão judicial favorável, veremos que o leque se abre. Ou seja, o acolhimento da pretensão inicial traria vantagem para pobres, ricos e membros da classe média brasileira, indistintamente. A conclusão é óbvia, já que quase todos (independentemente da situação sócio-econômica) contratam com instituições financeiras, sujeitando-se aos mesmos ônus. A diferença é que a pessoa carente dificilmente consegue superar o problema e, na maioria das vezes, tem que recorrer ao Judiciário para rever as condições contratuais.

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Logo, parece claro a todas as luzes que tal exigência simplesmente inviabilizaria a atuação da Defensoria Pública para defender o interesse das pessoas carentes, o que frustraria o objetivo do Constituinte e acabaria por tornar o art. 134 da Carta letra morta.

Ademais, não é possível aplicar, no tocante à ação civil pública, a justificativa empregada pelo Judiciário para conter o número de ADI’s ajuizadas. Isso porque o sistema de controle concentrado pressupõe o julgamento das demandas por um órgão de cúpula, STF no âmbito federal e Tribunais de Justiça no âmbito estadual, com número reduzido de magistrados. Noutro pórtico, quando se observa o procedimento da ação civil pública, nota-se que a competência é ampla, cabendo ao juízo de 1º grau apreciar a questão. Logo, não se cogita aqui em estrangulamento da máquina judiciária. Muito pelo contrário. A restrição traria, na verdade, prejuízo para o Poder Judiciário, que seria forçado a criar mecanismos administrativos destinados a conter a enxurrada de ações individuais ajuizadas para resolver o problema. Como é sabido que soluções deste tipo demoram a ser implementadas no Brasil, o ônus recairia sobre os Magistrados e sobre a população carente.

Conforme dito anteriormente, a legitimidade para propositura da ação civil pública, conferida à Defensoria por meio da Lei Federal nº 11.448/07, denota a clara opção do legislador de tutelar de forma massificada o interesse da população carente, em estrito atendimento ao art. 134 da Constituição Federal. Se, por acaso, ao final do processo, uma sentença favorável venha a ampliar o grupo de beneficiados, englobando pessoas de diferente posição sócio-econômica, isso não pode ser tomado como justificativa para exigir uma limitação prévia (não prevista pelo legislador, lembramos) para atuação da Defensoria.

Resumindo: é intolerável a exigência de uma limitação de origem jurisprudencial (pertinência temática), no que toca à defesa dos interesses difusos em juízo, uma vez que o próprio Constituinte, legitimado para tanto, delimitou expressamente as atribuições da Defensoria Pública. E, caso o requisito constitucional seja atendido num primeiro momento, nada mais há que se questionar. Basta lembrar que o Ministério Público, órgão que há anos ocupa lugar de destaque na defesa dos interesses difusos, encontra no art. 127 da Constituição claro limite à sua atuação, restrita à defesa dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

Que fique bem claro que não estamos aqui defendendo o ajuizamento sem parâmetro e de forma irrefletida de ações civis públicas pela Defensoria Pública (o que certamente retiraria a credibilidade da instituição e banalizaria o instrumento processual). O que se busca é simplesmente a obediência à Constituição! Se o art. 134 dispõe que a "Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados", caberá ao órgão de execução encarregado da propositura observar sua atribuição.

O magistrado deverá, numa análise prima facie do pedido, apreciar se a pretensão veiculada na petição inicial guarda relação com o interesse das pessoas carentes. Sustentamos com veemência que o juiz não está autorizado, de forma alguma, a obstar o pedido com base na perspectiva de uma ampliação dos efeitos benéficos de uma sentença favorável, mesmo que essa perspectiva venha a se confirmar posteriormente. Ampliação, voltamos a lembrar, para beneficiar pessoas que não se encontram na mesma condições sócio-econômica das pessoas carentes.

O assunto é tormentoso e abre espaço para as mais diversas indagações, uma vez que, num País que lida com uma situação tão grave de distorção social, é muito tênue a linha que divide o interesse dos pobres, dos ricos e da classe média. Logo, o ajuizamento da ação civil pública exige bom senso e responsabilidade redobrada do Defensor, por razões óbvias. Mas o certo é que a reforma legislativa operada pela Lei Federal nº 11.448/07 significou um passo decisivo na inclusão jurídica e política dos pobres e isso, no Brasil, é algo para ser comemorado com redobrada satisfação.


Notas

01 Sobre o tema, conferir SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de. Jurisdição Constitucional Democrática. Belo Horizonte, Del Rey, 2004. Sobre a atuação do PGR no período de exceção, conferir JORDÃO, Fernando Pacheco. Dossiê Herzog: prisão, tortura e morte no Brasil. São Paulo, Editora Global, 2005.

02 PALU, Oswaldo Luiz. Controle de Constitucionalidade. 2ª ed. São Paulo: RT, 2001, p. 196.

3 Idem, ibidem.

04 Idem, ibidem.

05 ADI 913-3-DF, Rel. Min. Moreira Alves, RT 718/283.

06 ADI 42-DF, Rel. Min. Paulo Brossard, j. 24/09/1992.

07 Nesse sentido, MENDES, Gimar Ferreira. Jurisdição Constitucional: o controle abstrato de normas no Brasil e na Alemanha. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 145.

08 SOUZA CRUZ, Op. Cit., p. 381.

09 Idem, ibidem.

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Sobre o autor
Cirilo Augusto Vargas

Defensor Público do Estado de Minas Gerais. Mestre em Direito Processual Civil pela UFMG. Pós-Graduado em Direito Processual Civil pela PUC-MINAS. Ex-integrante do Projeto das Nações Unidas para Fortalecimento do Sistema de Justiça de Timor-Leste. Exerceu as funções de clerk perante a Suprema Corte do Estado do Alabama/EUA e de Defensor Público visitante perante a Defensoria Pública Federal do Estado do Alabama/EUA.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VARGAS, Cirilo Augusto. A Defensoria Pública e o problema da "pertinência temática". Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1666, 23 jan. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10875. Acesso em: 22 nov. 2024.

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