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O bom juiz inglês

20/03/2024 às 20:03
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O conto satiriza um sistema judicial que ignora a ciência e a justiça em favor de condenações apressadas, comparando-o à perseguição às bruxas de Pendle.

“Quando a justiça vira uma piada é preciso ridicularizar os juízes.”

Confortavelmente instalado na poltrona de seu gabinete, o velho juiz começa a reler um livro sobre o caso das Bruxas de Pendle em 1612. Ele sempre fica comovido ao fazer isso, porque aquele caso trágico acarretou uma verdadeira revolução nas técnicas de coletar e apreciar evidências em casos criminais. Todo mundo sabe que o caso das Bruxas de Pendle marca um divisor de águas nos processos criminais ingleses e nenhum juiz inglês pode deixar de estudá-lo de maneira cuidadosa.

Ele estava concentrado na leitura, quando o alarme do celular começou a apitar avisando-o que faltava uma hora para se dirigir à sala de audiências. Um novo caso importante teria que ser instruído e julgado. Primeiro o juiz foi até o banheiro aliviar a bexiga e o intestino. Depois ele lavou as mãos e o rosto.

De volta ao gabinete, o juiz vestiu a toga e a peruca e foi se olhar no espelho e começar a incorporar seu personagem. Mas a imagem refletida dos livros na estante o distraiu. Ele sentia bastante orgulho de sua biblioteca e não escondia isso de ninguém, nem de si mesmo. Após arrumar a peruca e pentear as sobrancelhas, o juiz sentou-se novamente na sua poltrona e voltou a ler o livro sobre o caso das Bruxas de Pendle. Quando o assistente bateu à porta ele tomou uma taça de vinho do Porto, se levantou e se dirigiu à sala de audiências.

- O que nós temos para hoje?

- Caso 09876.5.4.3.2.1.2024, a coroa inglesa contra.... crime de trespass agravado por destruição parcial de propriedade. Essa audiência é a continuação daquela em que foram apresentadas as evidências ofertadas pela acusação.

Os jurados foram selecionados e fizeram o juramento de praxe. O juiz se dirigiu aos jurados com firmeza exigindo deles que cumprissem sua obrigação de maneira honrada. Depois ele deu a palavra ao promotor.

- A acusação já encerrou o trabalho dela no caso, excelência, e não tem mais nada a provar aqui. Assim, vou requerer apenas e tão somente a condenação dos réus com base nas evidências que foram apresentadas e pedir a vossa excelência que não admita qualquer prova baseada na ciência ou na crença que os acusados tinham de que deviam participar da manifestação contra um genocídio no dia dos fatos.

- O que os acusados têm a dizer sobre os fatos apresentados a Corte e em sua própria defesa? - perguntou o juiz.

O advogado se levantou e disse que pretendia fazer prova de que os acusados não tinham intenção de cometer nenhum crime e se sentiram compelidos a participar daquela manifestação porque estavam convencidos de que a mudança climática provocará um genocídio se nada for feito pelas autoridades políticas. Ele também disse que pretendia apresentar provas científicas irrefutáveis no sentido de que a mudança climática é um fato e que suas consequências desse fenômeno serão catastróficas, com a destruição de patrimônio e a perda de vidas numa escala comparável à de uma Guerra Nuclear.

- E por fim, eu também quero ouvir testemunhas para provar o caráter bom e generoso dos meus clientes, cujas ações não foram originadas por malícia ou pela intenção de cometer crime de trespass agravado por destruição parcial de propriedade. Nada teria ocorrido se a polícia não tivesse reprimido com violência excessiva a manifestação, excelência.

- Eu sei, eu sei... mas o senhor não poderá fazer isso. A defesa não pode apresentar essas provas e elas são irrelevantes para o caso. E o senhor sabe bem disso, senhor advogado. Não insista, caso contrário eu teria que considerar isso um contempt of Court. A defesa tem algo mais a dizer?

- A defesa protesta e invoca o direito de provar que a conduta dos réus foi legítima. Vossa excelência não pode revogar o devido processo legal e o direito do acusado de ofertar evidências em sua defesa ameaçando o advogado dos réus.

- Eu sei, eu sei... o senhor pode muito possivelmente dizer isso, mas o caso está encerrado e nós passaremos imediatamente ao julgamento.

E se voltando para o juri, o juiz disse:

- Tudo o que vocês ouviram hoje acerca da ciência e da sensibilidade dos acusados acerca do suposto genocídio são coisas irrelevantes e não podem ser levadas em consideração durante o julgamento. Apenas as evidências apresentadas pela acusação poderão ser consideradas durante o julgamento desse caso. As testemunhas de acusação colocaram os réus no local do crime, a prova do tresspass agravado por destruição de propriedade foi apresentada pelo promotor de maneira incontestável. A missão dos senhores é julgar com base nas evidências e não nas suas preferências pessoais.

- Protesto, Excelência. - gritou o advogado, demonstrando extrema irritação, acrescentando. Ao suprimir o direito de defesa dos réus, você está praticamente obrigando os jurados a aceitarem a tese da acusação. Esta é uma caça às bruxas muito inadequada que pode muito bem ser comparada ao caso das Bruxas de Pendle.

- Não mencione para mim esse caso histórico, senhor advogado. Eu sou um especialista na matéria e ninguém melhor do que eu está em condições de dizer aqui o que é ou não lícito. Retirem-no da sala.

Nesse ponto, os jurados se levantaram e apontaram para o velho juiz. O nosso veredito no caso dos réus já está formado: eles são inocentes. Mas o nosso veredito no caso do senhor é muito diferente. O senhor é culpado de praticar deliberadamente uma injustiça conduzindo um indevido processo ilegal que somente poderia resultar na condenação. Felizmente quem decide este caso somos nós e não o senhor. O senhor pode agora se retirar do nosso Tribunal, por favor. Libertem os réus.

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Bem... pelo menos esse foi o delírio que invadiu a consciência do advogado ao receber uma forte pancada na cabeça após tentar reagir a ação dos policiais que o removiam da sala de audiência.

PS: Esse conto foi escrito por causa do documento que eu recebi hoje de um colega inglês que prova o estado adiantado de putrefação do Estado de Direito na Inglaterra.


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Sobre o autor
Fábio de Oliveira Ribeiro

Advogado em Osasco (SP)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RIBEIRO, Fábio Oliveira. O bom juiz inglês. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7567, 20 mar. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/108768. Acesso em: 27 abr. 2024.

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