Insolvência e Recuperação Judicial da Americanas

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27/03/2024 às 17:51
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Fraus omnia corrumpti [3]  

Sumário I. Quem é o acionista minoritário da Americanas? II. Prejuízos atuais e futuros dos minoritários. III. Nulidade do Plano de Recuperação Judicial. IV. Cláusulas do novo Plano. V. A experiência do “Mago de Omaha” sobre fraudes contábeis. VI. Fraude contábil não é uma “jabuticaba” brasileira. VII. O aforismo too big to fail. VIII. A opinião dos especialistas sobre a Recuperação da Americanas. IX. Litígios judiciais e extrajudiciais após o ajuizamento da Recuperação. X. Efeitos diretos e indiretos da Recuperação Judicial. XI. Viabilidade da Americanas. XII. Os acionistas minoritários após a Recuperação Judicial. XIII. O que é certo, o que é injustificável e o que é injusto. XIV. Direito do acionista a informações fidedignas. XV. Princípio da transparência. XVI. O bom funcionamento da B3 depende de informações verdadeiras. XVII. Subscrição de ações preferenciais pelos acionistas controladores da Companhia. XVIII. Conversão do crédito de R$ 12 bilhões em debêntures. XIX. Voto dos credores apoiadores na nova assembleia geral. XX. Poderes do juiz do processo de insolvência no Direito Comparado. A. Código de Comércio da França. B. Código de Falências dos Estados Unidos. C. Lei de Insolvência e de Governança Corporativa – 2020- (CIGA), do Reino Unido. D. Código da Crise Empresarial e Insolvência da Itália. E. Lei de Insolvência da Alemanha. F. Lei Concursal da Espanha. XXI. Aplicação do cram down pelo STJ. XXII. O juiz brasileiro no processo de recuperação judicial. XXIII. Causas da insolvência e consequências da Recuperação Judicial. XXIV. Síntese. XXV. Conclusões.

 

I – Quem é o acionista minoritário da Americanas?

                                                                       O minoritário da Americanas é um

                                                                       acionista passivo-rendeiro-poupador.

            O minoritário da Americanas é um acionista passivo; tem perfil conservador; faz, com moderação, investimentos defensivos para não perder capital; adota estratégicas de longo prazo por almejar lucros medianos, porém constantes; não compra ações tipo “Grupo X”, nem adquire criptomoedas; não participa de hedge funds, venture capital, day trade, “operações estruturadas”, no dizer de Gordon Gekko,  interpretado por Michael Douglas no filme “Wall Street: poder e cobiça”, uma complexa “sopa de letrinhas”, enfim, é um investidor rendeiro-poupador, que  confia em  empresas antigas, que, em se tratando de bolsa de valores, é sinônimo de seguras,  prósperas e resilientes a maxidesvalorização da  moeda; inflação; estagflação; recessão; volatilidade dos mercados de ações e de câmbio; redução de financiamentos e empréstimos pelo sistema bancário nacional e internacional; Plano Cruzado; Plano Collor;  epidemias; golpes de estado; renúncias e impeachments de presidentes[4] etc.

II – Prejuízos atuais e futuros dos minoritários

O free float da Companhia, hoje 69,9% [5], será reduzido a 2,5%.

            O acionista da Americanas foi vitimado por uma constante e desmesurada fraude contábil, a maior do país; pela prática sorrateira e criminosa de adulterar  a escrituração mercantil e manipular os resultados operacionais da Companhia, que, refletida no balanço patrimonial  e nas demonstrações financeiras, transformou lucros bilionários em bilionários prejuízos e teve decisiva influência no valor bursátil da AMER3: em 07/08/2020, a ação valia R$ 121,00; no momento em que escrevo,  R$ 0,55.

            Além dos atuais prejuízos, representados pela desvalorização de suas ações[6], os minoritários – 146.366 pessoas físicas, 2.089 pessoas jurídicas e 563 fundos de pensão[7]  –, titulares de relevantes 69,9% das ações em que se divide o capital social, passarão a ter minguados 2,5%.

III – Nulidade do Plano de Recuperação Judicial

É nula a cláusula 5.1.4. do Plano

            No Proc. nº 0803087-20.2023.8.19.0001, id. 99796809, em tramitação no Juízo de Direito da 4ª. Vara Empresarial do TJRJ, requeri[8] a declaração de:

             (a) nulidade das condições resolutivas estabelecidas nas cláusulas 9.2. e 9.4.XVII. do “Acordo de Apoio à Reestruturação, Plano de Recuperação Judicial, Investimento e Outras Avenças”, celebrado entre a Companhia e os “credores apoiadores” (Bradesco S.A., Itaú-Unibanco S.A., Itaú-Unibanco Nassau Branch, Santander S.A., BTG Pactual S.A. e BTG Pactual Seguros S.A.) às vésperas da assembleia geral de credores de 19/12/2023;    

             (b) nulidade de parte da decisão do Conselho de Administração da Companhia, tomada na reunião de 18/12/2023, e

             (c) nulidade da cláusula 5.1.4. do Plano.

            Acolhidos esses pedidos, novo Plano será elaborado e nova assembleia de geral de credores será convocada.

IV – Cláusulas do novo Plano

Há meios e modos de “salvar” a Americanas sem prejudicar os minoritários.

             Para a Americanas “sair do buraco”, há meios mais comedidos e formas mais equânimes do que “moer” os 69,9% de ações ordinárias que os minoritários possuem.

            Decretada a nulidade do Plano:

            (a) os acionistas controladores têm o – dever moral – de deliberar, em assembleia de acionistas, especialmente convocada e instalada, o lançamento de ações preferenciais[9] para serem por eles subscritas;

            (b) os “credores apoiadores” podem – legalmente – ser compelidos a converter o crédito de R$ 12 bilhões em debêntures não conversíveis em ações, conforme detalhado nos itens XVII e XVIII.

V - A experiência do “Mago de Omaha” sobre fraudes contábeis

Não é necessário talento para manipular números. ‘Contabilidade ousada e criativa’ tornou-se uma das vergonhas do capitalismo. [10] (Warren Buffett)

            No livro “As cartas de Warren Buffett e Lawrence A. Cunningham”, o fundador da Berkshire Hathaway Inc., após criticar os “Princípios Contábeis Geralmente Aceitos” (GAAP), dos EUA, por considerá-los inibidores e insuficientes, afirma: “ (…) o executivo-chefe” (não pode omitir) “informações essenciais e necessárias para o chefe dele (o acionista) (…), nem “o próprio CEO  deveria reter informações de utilidade vital para seus chefes, os proprietários-acionistas da empresa (…).”

            E denuncia: “Há ainda gestores que usam o GAAP ativamente para enganar e fraudar. Eles sabem que muitos investidores e credores aceitam os resultados segundo o GAAP como a palavra do Evangelho. Então esses charlatães interpretam as regras com ‘criatividade” e registram transações de negócios de um modo que, na verdade, apresenta uma ilusão econômica para o mundo.” [11]

            Ao referir-se a lucros fictícios, gerados por “contabilidade criativa”, que ditam o comportamento dos investidores em ações, adverte: “Toda vez que investidores – inclusive as instituições supostamente sofisticadas – fizerem avaliações exuberantes sobre ‘lucros’ relatados que estão em alta constante, pode ter certeza de que alguns gestores e vendedores vão explorar o GAAP para gerar esses números, não importa qual seja a verdade. Ao longo dos anos, Charlie e eu observamos muitas fraudes de dimensões baseadas em contabilidade. Poucos fraudadores foram punidos; vários nem sequer foram repreendidos. É bem mais seguro roubar grandes quantias com uma caneta na mão do que pequenas quantias com uma arma.”[12]

VI - Fraude contábil não é uma “jabuticaba” brasileira

A fraude da Americanas é uma fraude de resultado.

            Nos EUA, nos casos ENRON[13], WorldCom, Madoff[14], entre inúmeros outros, como aqui, no da Americanas, administradores sonegaram “informações essenciais e necessárias”; “enganaram e fraudaram”; contabilizaram “operações de risco sacado” com “criatividade”; propagaram que a gestão dos negócios sociais era exitosa, geradora de lucros abundantes; criaram a ilusão, tal qual o “metafísico-teólogo-cosmólogo” Doutor Pangloss, de Voltaire, de que “tudo corria na melhor forma possível no melhor dos mundos possíveis”.

            A escrituração mercantil da Companhia - está provado -, que deveria “exprimir com clareza a situação do seu patrimônio e as mutações ocorridos no exercício social” (Lei das Sociedades por Ações (LSA), art. 176), foi adulterada e os registros contábeis e financeiros falsificados, consoante confessou o seu atual Diretor Presidente, Leonardo Coelho Pereira:

“Inicialmente demos tratamento de inconsistência contábil, mas agora temos elementos para dizer: ela se chama fraude.”

“A fraude da Americanas é uma fraude de resultado.” [15]

VII - O aforismo too big to fail

A Americanas é “grande demais para falir”?

A reorganização da gestão administrativa, econômica, financeira, operacional, de publicidade e marketing e, em especial, da governança corporativa; a repactuação de condições, termos e encargos de contratos em curso e de obrigações líquidas, certas e exigíveis; a reestruturação de dívidas pecuniárias e de valor vencidas e vincendas; a revisão das políticas de constituição, fusões e aquisições de sociedades empresárias, enfim, a salvação da Americanas em um ambiente belicoso entre acionistas controladores, minoritários, sindicato dos empregados, bancos comerciais e de investimentos, fundos de gestão de ações, fundos multimercados, agentes fiduciários de debenturistas, titulares de dívida externa (bondholders) e de certificados de recebíveis do agronegócio, seguradoras de crédito, fornecedores de bens e serviços, proprietários de imóveis locados etc., punham, em janeiro de 2023, a prova o aforismo too big to fail.

VIII – A opinião dos especialistas sobre a recuperação da Americanas

 “A Americanas vai falir”!

Analistas do mercado de valores mobiliários e experientes profissionais em turnaround apregoavam que a Americanas iria quebrar,  fundamentando seus prognósticos em fatos públicos e notórios: (a) o ramo de varejo não tem vantagens competitivas, pois os concorrentes vendem idênticos produtos dos mesmos fornecedores com reduzidas margens de lucro; (b) o regular funcionamento das operações da companhia demanda elevado capital de giro, que a obriga a contrair, contínua e ininterruptamente, empréstimos e financiamentos, que foram - e continuariam - paralisados enquanto permanecessem “congeladas” as tratativas e composições amigáveis com a maioria dos credores; (c) em decorrência direta e imediata do processo de recuperação judicial, a sua marca perdeu valor; no curto prazo, (i) a sua clientela tenderia a migrar para as congêneres, (ii) ela deveria “comprar menos”, “vender menos”, gerar “menos caixa”, portanto teria “menor lucro bruto”, “menor lucro líquido”, “menor criação de valor”, (iii) seria compelida a pagar “menores salários”, conceder “menos benefícios” aos administradores e trabalhadores e a “não distribuir dividendos” etc.; (d) as relações com fornecedores, que iam de mal a pior, chegariam a um ponto de ruptura, por força da decisão judicial que suspendeu o pagamento de toda e qualquer dívida e proibiu a propositura de cautelares de sequestro, arresto, bloqueio de bens móveis e imóveis e suspensão de ações de execução durante 180 dias etc.

IX – Litígios judiciais e extrajudiciais após o ajuizamento da Recuperação

A reação imediata dos “credores apoiadores”   

As medidas judiciais e extrajudiciais adotadas pelas partes envolvidas no imbróglio produziram: (a) uma “guerra de liminares”, impugnações, contestações e recursos judiciais e extrajudiciais; (b) julgados conflitantes de juízes supostamente incompetentes; (c) o ajuizamento de (i) ação civil pública contra os controladores e administradores por danos morais e materiais individuais de consumidores, investidores e acionistas, (ii) ações de responsabilidade civil de perdas e danos contra os acionistas controladores com respaldo nos artigos 116 e 117 da Lei de Sociedades Anônimas, e (iii) responsabilidade civil e penal contra os administradores por “gestão ruinosa e fraudulenta”, contra os bancos por não atenderem às “solicitações da varejista e da PwC – PricewaterhouseCoopers sobre a exposição da Americanas em cada instituição de crédito”, e contra a PwC por expedir “cartas de circularização” com informações incorretas; (d) a distribuição de ação civil pública contra a PwC e a CVM por “omissão e negligência”; (e) o deferimento de tutela de urgência, em ação de produção antecipada de provas, para realização de busca e apreensão de documentos e e-mails; (f) requerimento de extensão da recuperação judicial para Corte de Falências de Nova York com supedâneo no U. S. Code, Chapter 15; (g) ações de despejo por falta de pagamento de alugueres e encargos de imóveis locados em todas as regiões do país; (h) a união de debenturistas e, possivelmente, de bondholders, para articular a defesa de seus direitos e interesses; (i) a instauração de processos administrativos no âmbito da CVM, para apurar a conduta dos controladores e administradores e analisar se houve irregularidades no trabalho da KPMG e PwC entre 2017 e 2022  etc.

X – Efeitos diretos e indiretos da Recuperação Judicial

O “efeito cascata” da Recuperação

            Apesar do abalo na reputação dos acionistas controladores e da perda de credibilidade da Companhia, que levaram à retração de vitais linhas de crédito e credores a exercerem o direito potestativo de declarar, unilateral e antecipadamente, vencidas dívidas bilionárias, e não obstante o acirramento dos ânimos, que fomentou uma discordância aparentemente insuperável, emperrou, durante meses, as negociações entre os controladores e instituições financeiras e inviabilizou uma solução consensual, era – e é - desejável salvá-la da “catástrofe da falência”.

            É desejável a continuidade de suas atividades empresariais em virtude dos impactos diretos e indiretos, presentes e futuros, que a sua derrocada irá provocar, v.g., elevados custos econômicos e sociais decorrentes da extinção de uma fonte provedora de bens de primeiríssima necessidade para mais de 50 milhões de consumidores em mais de 3.600 lojas, abastecidas por milhares de fornecedores, e geradora de cerca de 100.000 empregos diretos e indiretos.

XI – Viabilidade da Americanas

Empresa com caixa é viável[16]

            Além de desejável, é possível porque, de acordo com o professor Bill Lazier, da Stanford Graduate School of Business, “as organizações não morrem devido à falta de lucros. Elas morrem de falta de caixa”, [17] o que sempre me levou a acreditar que a Americanas não iria perecer - afinal ela é geradora de caixa, por conseguinte viável - se todos os interessados “sentassem à mesa” e negociassem, um a um, caso a caso, separadamente, como veio a acontecer.

XII – Os acionistas minoritários após a Recuperação Judicial

A atomização da participação acionária dos minoritários

            Não previ, todavia, que a reorganização administrativa e a reestruturação econômico-financeira da Empresa fossem sacrificar os direitos e interesses dos minoritários e acarretar-lhes prejuízos de monta, os quais, repito, os acionistas controladores têm o dever moral de reparar e os “credores apoiadores” podem ser legalmente compelidos a cooperar no esforço de recuperar a Companhia - sem diluir os 69,9% de ações dos acionistas minoritários.

XIII – O que é certo, o que é injustificável e o que é injusto.

Diluição injustificada e injusta dos acionistas minoritários

            É certo que o conselho de administração e a assembleia geral extraordinária de acionistas das companhias abertas podem escolher um, ou dois, ou até mesmo os três parâmetros discriminados no § 1º, do art. 170, da LSA, alternativa ou conjuntamente, quando for imperativo aumentar o capital social mediante subscrição pública ou particular de ações.

            É certo que, na “Reunião do Conselho de Administração”, realizada em 18.12.2.023, para (i) ratificar a contratação de empresa de assessoria financeira e (ii) aprovar o Plano, o conselheiro independente Pierre Moreau, eleito, na forma do art. 141 da LSA, apontou diversas irregularidades/ilegalidades no processo de exame, discussão e decisão sobre o Plano e sustentou - com irrespondíveis argumentos baseados em fatos provados - que o preço de emissão de novas ações da Companhia foi imposto arbitrariamente  pelos “credores apoiadores”, conforme resta claro de sua “declaração de voto” vencido.

            Seria injustificável que fornecedores e instituições financeiras não abrissem mão de parte substancial de seus créditos: aqueles, porque, cientes de que não seriam pagos no prazo avençado, “salgavam” os preços; estes, porque sempre auferiram generosos ganhos, donde se conclui que ambos devem restituir parte do que cobraram e receberam anos a fio.

            É injustificável que o critério especificado no inc. III, do § 1º, do art. 170, da LSA haja sido preferido ao invés do método de avaliação previsto no inc. I, do § 1º, do art. 170, da LSA, isto é, com supedâneo nas “perspectivas de rentabilidade” da Companhia - segundo o “Fato Relevante” de 16/11/2023 -  extremamente promissoras:

            É injustificável que o Banco Central do Brasil (BACEN), responsável pela fiscalização do mercado financeiro e de capitais (Lei nº 4.728/1965, art. 1º), não tenha exercido, com competência, a atribuição prevista no “Art. 2º, III: evitar modalidades de fraude e manipulação destinadas a criar condições artificiais de demanda, oferta ou preço de títulos ou valores mobiliários distribuídos no mercado”; “Art. 3º, VII: “fiscalizar a observância (pela Americanas) das disposições legais e regulamentares relativas à (b) proteção dos interesses dos portadores de títulos e valores mobiliários distribuídos nos mercados financeiros e de capitais”, entre outras, v.g., art. 4º, caput.      

            É injustificável que a B3 não haja fiscalizado – tempestivamente - e punido – com rigor - os autores da fraude contábil da Americanas, como é seu dever/competência/atribuição de acordo com o regulamento do Novo Mercado.

            Aos bônus de integrar o Novo Mercado – atrair mais investidores; dar liquidez às suas ações; aumentar seu valor de mercado; reduzir o custo de capital e seus riscos etc. – correspondem os ônus - manter em pleno funcionamento a auditoria interna e o comitê de auditoria; contratar profissionais de compliance qualificados e independentes;  realizar, pelo menos uma vez por ano, reunião com investidores e analistas de mercado, para debater a sua situação econômico-financeira, seus projetos e perspectivas do negócio etc., segundo divulgado pelo “folheto” “Novo Mercado – Governança Corporativa[18], de 16 páginas, belamente ilustrado, em que se lê: “(… ) Tais compromissos referem-se à prestação de informações que facilitam o acompanhamento e a fiscalização dos atos da administração e dos controladores da companhia e à adoção de regras societárias que melhor equilibram os direitos de todos os acionistas, independentemente da sua condição de controlador ou investidor. A melhoria da qualidade das informações prestadas pela companhia e a ampliação dos direitos societários reduzem as incertezas no processo de avaliação e de investimento e, consequentemente, o risco. Assim, em virtude do aumento da confiança, eleva-se a disposição dos investidores de adquirir ações da companhia, tornando-se sócios desta.”

            No parágrafo Fiscalização e obrigatoriedade de cumprir o regulamento, está dito: “O contrato é imprescindível, pois, enquanto estiver em vigor, torna obrigatório o cumprimento dos requisitos do Novo Mercado, tendo a BM&FBOVESPA o dever de fiscalizar e, se for o caso, punir os infratores.”[19]

            Os deveres de fiscalizar e punir, que ela própria se impôs, foi o que B3, em relação à Companhia, jamais cumpriu, pois, se seguisse as regras por ela elaboradas, provavelmente a mencionada fraude contábil não teria ocorrido e se repetido vezes sem conta.

            É injustificável que a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), “xerife” (?) do mercado de valores mobiliários, criada pela Lei nº 6.385/1976, não tenha tido competência para “proteger”, conforme determina o art. 4º, caput, “os titulares de valores mobiliários (leia-se, titulares de ações ordinárias da Americanas) e os investidores de mercado” (…);  “(b) de “atos ilegais” dos seus administradores, nem agido para “ evitar ou coibir” lançamentos fraudulentos em sua contabilidade, no balanço patrimonial e nas demonstrações de resultados.   

            É injusto “triturar” os 69,9% de ações dos minoritários, porque eles foram induzidos a erro, durante anos a fio, pelos administradores da Companhia, que forjaram ótimos resultados operacionais, exercício após exercício, e exibiam lucros expressivos.

            É injusto “pulverizar” os 69,9%, porque, ao decidirem comprar AMER3, os minoritários não agiram por palpite, impulso ou sob “comportamento de manada”, mas estimulados por informações falsas, incompletas, distorcidas, propagadas, contínua e ininterruptamente, nos sites da Companhia e da CVM e nas mídias impressa e digital.

            Se o BACEN, a CVM, a B3, as auditorias interna e externa e os operadores e agentes do mercado de capitais não detectaram a fraude, como exigir que os minoritários dela tomassem conhecimento e exercessem, em toda sua plenitude, o direito de obter informações fidedignas da Companhia?

XIV – Direito do acionista a informações fidedignas

                        O direito à informação é um direito fundamental do acionista                      O direito à informação é um direito instrumental, inerente e decorrente do status socii do acionista; para que ele possa exercer esse direito essencial, intangível, irrenunciável e irrevogável, é dever da companhia prestar informações verdadeiras, completas, consistentes, tempestivas e atualizadas e divulgá-las da maneira mais ampla possível em linguagem clara, objetiva e concisa (ICVM nº 481/2009, art. 2º), única forma de os acionistas e eventuais interessados em participar da companhia ficarem aptos a decidir se adquirem novas ações ou se alienam, no todo ou parte, as que detêm.

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            José Luis Osório, presidente da CVM de janeiro de 2000 a julho de 2002, diz: “(…) o sangue do mercado é a informação. Ela tem de chegar a todos no tempo mais rápido possível e em igual quantidade. O mercado é tanto mais eficiente quanto mais rápido se dissemina informação e com maior transparência”.[20].

            É notório que as informações sobre a “saúde” financeira da Companhia chegavam “a todos no tempo mais rápido possível (…) e em (…) quantidade”, contudo eram fictícias, ilusórias, forjadas, para enganar acionistas, investidores e o mercado.

XV – Princípio da transparência

O princípio da transparência rege todas as decisões dos investidores das empresas listadas na B3

            No livro Direito dos Acionistas, escrevi: “O princípio da transparência atende aos interesses de acionistas e de potenciais investidores, sobretudo quanto à avaliação do preço das ações, às perspectivas de rentabilidade do negócio, aos mecanismos utilizados na tomada das principais decisões (…), o que levou a SEC a editar normas regulamentares para garantir a “lealdade do mercado” (market fairness) e a atuar na identificação, investigação e punição de fraudes contábeis, financeiras e corporativas.

            E destaquei: “(…) a transparência não se restringe ao fornecimento, oportuno e expedito, de informações contábeis, financeiras, fiscais, societárias etc., mas, outrossim, na descrição pormenorizada e completa de todos os atos administrativos nos relatórios periódicos, particularmente nos relatórios anuais, que deverão passar pelo crivo da auditoria interna e da auditoria externa, respondendo a companhia por dados e informações que não correspondam à verdade.”[21]

            Essas assertivas estão calcadas em mais de duas dezenas de especialistas na matéria,[22] o que me autoriza a dizer alto e bom som que administradores da Companhia transgrediram o princípio da transparência, um dos pilares da Governança Corporativa.[23]

XVI – O bom funcionamento da B3 depende de informações verdadeiras

Informações manipuladas induzem o investidor a erro

            A bolsa de valores é um “cassino”; um “jogo de cartas marcadas”; um “mercado de aventureiros, golpistas, trapaceiros, sociopatas”; um “campo fértil” onde vicejam “escândalos corporativos”, “bolhas” e “pirâmides”?

            Não. Estudos e artigos, publicados no país e no exterior, garantem que não, embora apresentem características comuns, entre as quais se destacam o “apetite ao risco”, a euforia nos ganhos, a frustração nas perdas, ou a uma sensação parecida à “experiência” (com morfina e heroína) que é “descrita pelos médicos como algo semelhante a “picos e vales”, uma sensação de felicidade plena e sem comparações no instante em que a droga entra no sistema, seguida por uma depressão e uma necessidade opressora assim que ela se dissipa na corrente sanguínea.”[24]  

            Apostadores, jogadores e investidores/administradores de companhias abertas precisam estar cientes das regras de cada uma dessas atividades: transgredidas as regras: nos cassinos, os que se atrevem a ludibriá-las saem no porta-malas de carros de luxo, de ambulância ou … de rabecão; nos jogos, os faltosos são expulsos; nas bolsas de valores, investidores/administradores, após longuíssimo processo administrativo no âmbito da CVM, vez por outra são penalizados com sanções pecuniárias (ínfimas diante dos ganhos e do patrimônio dos acusados), que vão parar nos cofres do Tesouro Nacional (incrível, os minoritários perdem, porém é a União Federal que é ressarcida!), e pessoais (advertência, multa, suspensão do exercício do cargo de administração ou de conselheiro fiscal, proibição temporária de atuação em uma ou mais modalidades de operação etc. (LCVM, art. 11, I a VII)).

            Com a finalidade de tornar as operações na B3 seguras e confiáveis, em que impere a lisura e o respeito às “regras do jogo”, existem normas legais e regulamentares com o escopo de garantir o bom funcionamento do mercado financeiro e de capitais.

            É evidente que a LSA, as resoluções do BACEN/CMN e da CVM, as diretrizes da B3 e as recomendações do IBGC foram vil e descaradamente desrespeitadas, o que impõe adequadas punições no âmbitos administrativo e judicial.

XVII – Subscrição de ações preferenciais pelos acionistas controladores da Companhia

Os acionistas controladores têm o dever moral de minimizar os prejuízos dos acionistas que neles confiaram

            Louve-se, de pronto e a bem da verdade, o comportamento digno dos acionistas controladores, eufemisticamente chamados “acionistas de referência”[25], os quais, como todos os “capitães de empresas” vitoriosos, não são imediatistas, não miram ganhos de capital a curto prazo, o que explica a aquisição e manutenção do poder de comando da Companhia desde 1982.

            Por que os acionistas controladores resolveram capitalizá-la? Por quê?

            Porque sabem que a LSA deu início a uma nova ética empresarial[26], porquanto:

            (a) os “donos” da empresa não podem pilhá-la; a empresa não está a seu serviço, mas a serviço da comunidade; a doutrina do “controlecentrismo” (permito-me o neologismo), tal qual a do antropocentrismo,  está superada, pois, como o homem não é mais o centro de todas as coisas, o acionista controlador (o antigo acionista majoritário) não é o centro absoluto do poder, eis que nem tudo lhe é permitido;

            (b) os deveres dos acionistas de comando – “para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e para a comunidade em que atua” (LSA, art.116, par. único) - se sobrepõem aos poderes – “de eleger a maioria dos administradores da companhia, dirigir as atividades sociais e orientar o funcionamento” dos seus “órgãos” (LSA, art. 116, caput, (a) e (b)) - e aos direitos – de votar nas assembleias gerais de acionistas entre muitos outros direitos -;

            (c) é intolerável que se considere o acionista um “tolo” e um “arrogante”, consoante frase atribuída ao banqueiro Furstenberg: “O acionista é um tolo e um arrogante; tolo, porque nos dá o seu dinheiro; arrogante, porque deseja receber dividendos.”[27] 

            Porque o “trio”, como o mercado os chama, acredita na viabilidade da Americanas, na sua capacidade de “dar a volta por cima”, eis que ela é uma “máquina de vendas” de bens de primeiríssima necessidade para a população das inúmeras localidades em que atua; geradora de empregos, diretos e indiretos, para dezenas de milhares de pessoas de todas as idades, raças e credos, além de contribuinte importante da União, estados e municípios.

            Porque os controladores visam não perder os muitos milhões de reais injetados nos seus cofres, em diferentes oportunidades, com a finalidade de fazê-la prosperar; preservar a reputação de líderes carismáticos e bem sucedidos e o legado que iniciaram há mais de meio século e o construíram passo a passo; seguir com a missão de inspirar promissores jovens empreendedores; continuar a ombrear com “chefes de empresas”, aqui e alhures, quer rivais, quer sócios e parceiros.

            Porque as suas múltiplas atividades e relevantes participações acionárias em corporações de grande porte, aqui e alhures, impediu-os de atentarem/vigiarem a atuação dos “administradores profissionais”, supostamente honestos, por eles escolhidos, que deveriam agir em prol do melhor equilíbrio entre os interesses de acionistas, empregados, fornecedores, financiadores e comunidade.

            Porque, cientes de que são culpados por nomearem gestores não confiáveis (culpa in elegendo) e culpados por não fiscalizarem o desempenho de suas funções, atribuições e poderes (culpa in vigilando), prometeram vender bens pessoais e ativos de outras controladas, para reerguerem a Companhia.

            Porque, conscientes de que têm o dever moral de não deixar a Americanas “ir à garra”, resolveram subscrever ações ordinárias, a serem lançadas em breve, até o limite de R$ 12 bilhões.

            Se pretendem reparar a culpa pelos reiterados erros de julgamento e de fiscalização, que levaram ao desprezível esquema ilícito, utilizado, por pessoas de sua estrita confiança, anos a fio, para enganar, ludibriar e lesar acionistas, investidores e o mercado, eles têm o dever de decidir, em assembleia geral de acionistas, especialmente convocada e instalada, que o futuro aumento do capital social da Companhia será através da emissão particular de ações preferenciais, que eles subscreverão até o limite de R$ 12 bilhões, caso os atuais acionistas não exerçam o direito de preferência, o que redundará na capitalização da Empresa; na valorização das ações ordinárias na B3; na manutenção dos 69,9% de ações ordinárias de propriedade dos minoritários; na eliminação da possibilidade de controladores e “credores apoiadores” “inundarem” a B3 com a venda das novas ações ordinárias etc.    

            A subscrição das novas ações poderá realizar-se da forma seguinte: lançamento particular de ações preferenciais não conversíveis em ordinárias (LSA, art. 19) com prioridade no recebimento de dividendo, fixo ou mínimo, não cumulativo (LSA, art. 17, I); prioridade no reembolso do capital sem prêmio (LSA, art. 17, II); garantia de as ações preferenciais serem incluídas em oferta pública de alienação de controle, direta ou indiretamente, por meio de uma única operação ou de operações sucessivas, de modo a lhes assegurar preço igual a 80% do valor pago por ação com direito de voto (LSA, art. 17, § 1º, III); a aquisição do direito de voto por falta de pagamento (LSA, art. 111, § 1º) passará a vigorar somente após 5 (cinco) anos do término da recuperação judicial (LSA, art. 111, § 3º, aplicável por extensão analógica) etc.

XVIII – A conversão do crédito de R$ 12 bilhões em debêntures

Os “credores apoiadores” violaram várias resoluções do BACEN/CMN

            Os “credores apoiadores” concordaram converter parte do crédito, de que são titulares, em ações ordinárias até o limite de R$ 12 bilhões (faculdade também reservada aos demais credores) e conceder deságios inferiores[28] aos praticados em recuperações judiciais e extrajudiciais em situações similares, e, com certeza, inferiores aos ganhos expressivos amealhados durante décadas por força de elevados spreads, eis que todos os empréstimos – todos, sem exceção, – foram contratados sem garantias (?!).

            Isso, contudo, não basta; não basta porque eles são corresponsáveis pela ruína da Americanas.

            O Conselho Monetário Nacional (CMN), em consonância com os princípios da transparência e da segurança jurídica, obriga as instituições financeiras a encaminharem, periodicamente, ao Banco Central do Brasil (BACEN), informações sobre as operações de crédito realizadas com seus clientes, para que o BACEN  possa fiscalizar, com eficiência e a tempo e a hora, o mercado de crédito, a capacidade de os devedores honrarem as dívidas pecuniárias contraídas, a solidez do sistema financeiro, “as garantias, particularmente quanto à suficiência e liquidez” (Resolução BACEN/CMN nº 2.682/1999, art. 2º, II, (b)); as “garantias financeiras” (Resolução BACEN/CMN nº 4.512/2016, art. 2º), “a prestação de avais e garantias” (Resolução BACEN/CMN nº 4.557/2017) etc.

            É o que sobressai da Resolução BACEN/CMN nº 5.037, de 29/09/2022, que, ao dispor “sobre o Sistema de Informações e Creditos (SCR)”, estabelece:

            “Art. 2º: O SCR é administrado pelo Banco Central do Brasil e tem por finalidades:

             I - prover informações ao Banco Central do Brasil, para fins de monitoramento do crédito no sistema financeiro e para o exercício de suas atividades de fiscalização; e

             II - propiciar o intercâmbio de informações entre instituições financeiras e entre demais entidades, conforme definido no art. 1º da Lei Complementar nº 105, de 10 de janeiro de 2001, sobre o montante de responsabilidades de clientes em operações de crédito.”

             A redação do art. 2º, I e II, é categórica: as instituições financeiras têm o dever de permutar dados e informações sobre as obrigações/dívidas de seus clientes “para fins de monitoramento do crédito no sistema financeiro e para o exercício de suas atividades de fiscalização” (art. 2º, I) e “sobre o montante de responsabilidades de clientes em operações de crédito” (art. 2º, II), “ independentemente do adimplemento de tais operações” (art. 3º, par. único), sob pena de, em “caso de atraso na remessa de informações relativas às suas respectivas operações de crédito, terem restringido ou suspenso o seu acesso para consulta aos dados do SCR” (art. 9º, § 1º).

            Os “credores apoiadores”, inteirados dos deveres e responsabilidades elencados na Resolução BACEN/CMN nº 5.037, de 2022, e para se precaverem de perdas decorrentes de operações mal sucedidas, certamente intercambiavam, com regularidade, dados e informações sobre as obrigações/dívidas da Americanas e, em consequência, sabiam que ela estava superendividada.

            Todavia, embora superendividada, a Companhia continuou, mês a após mês, ano após ano, a “merecer” a concessão de créditos bilionários sem garantia (?!): sem garantia real (?!), sem garantia fidejussória (?!)…

            Se não havia garantia de nenhuma espécie, os riscos eram maiores; quanto maiores os riscos, maiores os spreads, sobrelevando notar que o CMN e o BACEN, ao disciplinarem a contratação de empréstimos e financiamentos de curto, médio e longo prazos, enfatizam a necessidade de os devedores prestarem garantias suficientes para liquidação das dívidas e consequentes acréscimos legais e contratuais, conforme, reitere-se, as Resoluções BACEN/CMN nºs. 2.682/1999, 4.512/21016 e 4.557/2017.

            Mas quem resiste a um “ganho extra”? um aumento exponencial dos lucros? um aumento da remuneração anual, bônus, opções e outras muitas vantagens  vinculados aos resultados operacionais? etc.

              Os trabalhos, ainda não concluídos, sobre os procedimentos contábeis da Companhia deixam claro que, se as instituições financeiras houvessem agido  com comedimento e prudência, o “rombo” nas contas da Americanas não chegaria  à casa dos R$ 42 bilhões.

            O “trio” é culpado pela insolvência, não há dúvida; dúvida não há quanto à culpabilidade dos credores financeiros - “credores apoiadores” e “credores não apoiadores” -, culpados por cumplicidade, cumplicidade não nas fraudes contábeis, mas nos prejuízos causados a um sem número de pessoas físicas e jurídicas e, inclusive, à imagem do Brasil no cenário internacional, pois o escândalo foi manchete no Financial Times[29], no The Economist[30] e em diversos órgãos da imprensa mundial.

            A reparação, entretanto, não será demasiadamente onerosa, porque os “credores apoiadores” permutarão um crédito bilionário sem nenhuma garantia (?!) - sem garantia de nenhuma espécie (?!), frise-se, de novo e sempre, – de uma empresa que eles sabiam superendividada, por debêntures com garantias real e pessoal de uma companhia reestruturada com um passivo pagável de R$ 1.8 bilhões ao invés de um passivo impagável de R$ 42 bilhões.

            A troca poderá ser realizada através do lançamento particular de debêntures inconversíveis em ações ordinárias ou preferenciais, sujeitas a condições compatíveis com a situação econômico-financeira da Americanas e carência de 5 (cinco) anos, a contar do término do processo judicial; idênticas garantias às elencadas na cláusula 6.2.6.3 do Plano etc.

XIX – Voto dos credores apoiadores na nova assembleia geral

Os “credores apoiadores” não votarão contra   a aprovação do Plano 

            Decretada a nulidade do Plano, nova assembleia geral de credores será convocada pelos Administradores Judiciais e, em tese, há a possibilidade de os “credores apoiadores” votarem contra a sua aprovação.

            Em tese, sim; na prática, não.

            No momento em que foi deferido o processamento da recuperação, os “credores apoiadores”, atentos às regras do rating bancário, em virtude de seus créditos representarem um “ativo financeiro com problema de risco de crédito (ativo problemático)”, um ativo com “provável risco de perda”, imediatamente “constituíram provisões para perdas esperadas associadas ao risco de crédito”, equivalentes a 100 % (cem por cento) do valor das obrigações e dívidas da Americanas, pois, na dicção do art. 1º, IX, c/c. art. 6º, VIII, da Resolução BACEN/CMN nº 2.682/1999, ela passou a ser classificada como risco H, o pior em uma escala de 9 (nove).

            Ora, se o voto dos “credores apoiadores” for majoritário contra a aprovação do Plano, será decretada a falência da Empresa e, em consequência, os credores financeiros perderão R$ 36.77 bilhões (e os fornecedores, R$ 5,504 bilhões),[31] porquanto são credores “quirografários” (!?); se o aprovarem, terão a disponibilidade do montante das provisões; lançarão em seus ativos os R$ 12 bilhões, então convertidos em debêntures (aumentando sua capacidade de conceder créditos, tão afetada no início de 2023, razão pela qual os lucros foram significativamente reduzidos); abaterão do lucro, a título de créditos não recuperáveis, de perdas efetivas, o que exceder do crédito convertido em debêntures etc.

            Anote-se que uma exegese reducionista da Resolução BACEN/CMN nº 2.682/1999 gerou dúvidas sobre se o devedor em recuperação judicial, mesmo após a aprovação do plano e de sua homologação pelo juiz, permanece classificado como risco nível H, eis que alguns especialistas desprezam qualquer juízo de valor sobre a capacidade de a recuperanda honrar os compromissos pecuniários assumidos antes, durante e após a concessão do benefício legal.

            Em uma interpretação que poderíamos denominar “autêntica”, a Resolução BACEN/CMN nº 4.966/2021, que, ao entrar em vigor, revogará a Resolução BACEN/CMN nº 2.682/1999, as eliminou, porque, correta e realisticamente, deixou claro que há dois critérios para aferição de risco das operações de crédito: o objetivo, com base na mora do devedor, no decurso do tempo sem pagamento da dívida (art. 3º, I), e o valorativo, representado por qualquer fato que indique ser impagável/adimplida a dívida/obrigação nas condições pactuadas (art. 3º, II), servindo como referência os fatos elencados no art. 38, §§ 2º, 3º e 6º, o que, por certo, não se dá no caso da Americanas e, por conseguinte, os “credores apoiadores” - sem garantia (?!) – vão se tornar credores debenturistas - com garantias (‼)- e terão à sua disposição os valores contabilizados como “provisões para devedores duvidosos”, como “ativo problemático”.

            Se, por absurdo, rejeitarem o Plano, o Juízo poderá enfiá-lo “goela abaixo” dos que votaram contra a sua aprovação, conforme demonstrado no item XXI; antes, todavia, impende uma incursão nas legislações estrangeiras.

XX – Poderes do juiz do processo de insolvência no Direito Comparado

 “Jugements sur le sorte de l’entreprise. Le sorte de l’entreprise est ‘arrêté’ par le tribunal (…). Le tribunal dispose ici d’un pouvoir extrêmement étendu, lui permettant de modeler, à sa guise, le plan de redressement.” [32] 

A - Código de Comércio da França

Fernand Derrida, Jean-Pierre Sortais e Pierre Godé ensinam que, na França, “a sorte da empresa é decidida (arrêté) pelo tribunal”,[33] que dispõe de um poder extremamente extenso (pouvoir extrêmement étendu), lastreado no princípio da autoridade absoluta (príncipe de l’autorité absolue), que o legitima a modificar, como quiser (à sa guise), o projeto de plano[34].

Por não estarem vinculados às cláusulas e condições do projeto (de plano), o tribunal pode, por sentença devidamente fundamentada, corrigi-las e modificá-las, porque o projeto constitui, para ele, “nada mais do que um esboço” (les juges corrigent e modiffient ce projet, lequel ne constitue pour eux rien de plus que’une eventuelle esquisse),[35] cumprindo-lhe certificar-se se foram cumpridas as condições do “novo” art. L. 626-31 do Código de  Comércio, entre as quais se destaca a regra segundo a qual os credores da mesma classe devem receber “igual tratamento”, expressão que substitui “tratamento diferenciado” da antiga redação (bénéficient d’une égalité de traitement, et sont traitées de manière proportionnelle à leur créance, ou à leur droit). [36]   

            A jurisprudência da Corte de Cassação tem julgado que o tribunal pode considerar que o plano é utópico (le plan est utopique – Cass com 25.03.1997 nº 94-13003), irrealista (irréalisteCass com 21.02.2006 nº 04-18785), tecnicamente impossível de implementar (techniquement impossible à mettre en oevureCass com 19.01.1999 - nº 96-17763), não é sério e (portanto) inútil a consulta aos credores (pás sérieux et rendait inutile la consultation des créanciers - Cass com 18.01.2000 nº 97-12865), não apresenta suficientes garantias (que vá ser cumprido) (ne présentant pás des garanties suffisantesCass com 22.01.2002  nº 99-10310).[37]                      

B - Código de Falências dos Estados Unidos 

            O Código dos Estados Unidos (United States Code  - U.S. Code  -, ou USC), no Título 11, Capítulo 11, regula a falência de reorganização (reorganization bankruptcy), identificada pelas siglas 11 USC ou USBC.

            Os poderes do juiz, elencados no 11 USC, são extensos, quer quanto aos pressupostos subjetivo e objetivo, aos requisitos formais da petição inicial e do plano de reorganização,  à regularidade e aos atos ordinários de  impulso do processo, particularmente para levá-lo a bom termo, às decisões interlocutórias por provocação do devedor, credores ou interessados (lógico, inclusive os acionistas),  quer – digo-o com ênfase - quanto ao julgamento sobre o conteúdo, a substância, a essência do plano, vale dizer, quer quanto aos direitos, interesses, reivindicações, deveres e obrigações do devedor, acionistas, credores e terceiros.    

            Ao receber a petição inicial (voluntary petition) do devedor (debtor in possession), o juiz  deve certificar-se se ela preenche os requisitos prescritos por normas legais cogentes e se estão presentes os pressupostos subjetivo e objetivo; examinar os documentos que a instruem e determinar, se necessário, a juntada de mais documentos e novas informações.

            A qualquer tempo, pode exigir a apresentação de relatórios comerciais e fiscais; tomar medidas para acelerar o fim da reorganização; autorizar pagamentos durante a tramitação do processo, para, v.g., agentes fiduciários, advogados do devedor e quaisquer interessados por ela designados para atuar no processo; deferir, de ofício ou a pedido dos interessados, a designação de um administrador (US trustee) e de um examinador (examiner); autorizar o devedor, caso faça parte do seu objeto social, a usar, fruir, vender e locar bens durante o andamento do processo; permitir a utilização de crédito colateral (cash collateral) e a contratação de empréstimo de dinheiro (borrow new money); revogar a suspensão automática das demandas (automatic stay) em relação a determinado credor garantido dependendo das circunstâncias do caso (11 USC, § 362 (d)); nomear, a pedido dos interessados, comitê adicional de credores e de acionistas; tomar, de ofício ou a requerimento dos interessados, decisões a respeito dos comitês de credores quirografários, credores com garantias e acionistas; autorizar o devedor a contratar advogados, contadores, auditores, avaliadores, leiloeiros e profissionais aptos a colaborar com o sucesso da reorganização, entre diversas outras hipóteses que demandam ordem da autoridade judiciária.

            Cabe-lhe zelar para que não ocorram “transferências evitáveis” (avoidable transfers); garantir a fiel e estrita observância da suspensão automática das demandas, coibindo que credores iniciem ou prossigam com medidas ou ações judiciais, penhorem bens e direitos do devedor, adotem qualquer meio coercitivo de cobrança, inclusive, de acordo com jurisprudência dominante, façam ligações telefônicas para constranger ou exigir a quitação de dívidas; determinar a retenção de recursos financeiros ou materiais que não foram reivindicados pelos interessados, nos casos, p.ex., de endereço incorreto ou falecimento do credor, cheque ou título conversível em dinheiro não descontado; 

            As decisões judiciais das cortes norte americanas, referentes ao plano de reorganização não aprovado pela unanimidade dos credores (nonconsensual plan), são tomadas, a meu ver, com supedâneo no que denomino “realismo[38] pragmático” ou “pragmatismo realista”, que pugna por uma intransigente defesa do empirismo jurídico, da observação e da verificação dos fatos e fenômenos sociais, do dever de o juiz privilegiar o “mundo da aplicação do direito” e de considerar prioritariamente os efeitos gerados por seus julgamentos a respeito de fatos e atos de natureza política, jurídica, econômica, financeira e social.

            Quanto ao conteúdo, à essência, à substância do plano de reorganização, lastreiam-se, outrossim, nos princípios da AED, “o mais importante campo interdisciplinar dos estudos jurídicos”, autêntica “força rejuvenescedora do pensamento jurídico norte-americano’” (Posner).

            A complexidade do Subcapítulo II, do 11USC, C, §§ 1121 a 1140, que versa sobre “o plano” (The plan) (§1121), rectius, sobre pagamentos justos e equitativos das dívidas vencidas e vincendas, reestruturação dos órgãos diretivos e gerenciais – a famosa “dança das cadeiras” –, atividades e negócios sociais e reerguimento e salvação da sociedade empresária em estado de crise econômico-    financeira reversível, exige do magistrado tirocínio, exata compreensão dos incontáveis e importantíssimos efeitos diretos e indiretos, presentes e futuros, que a decisão judicial vai gerar e profundo conhecimento, perfeito domínio e larga experiência na exegese das incontáveis e elásticas palavras e expressões,  empregadas pela lei, redigidas sob a forma de “textura aberta” (Hart).

            Eis alguns exemplos de palavras e expressões de cunho indeterminado, situadas numa “zona de penumbra de incerteza” (Hart), que autorizam o juiz a agir com “discricionariedade forte” (Posner) e ensejam o que classifico de “ativismo esclarecido, consciente e responsável”: “regra da prioridade absoluta” (absolute priority rule - APR), “justo e equitativo” (fair and equitable), “substancialmente semelhante” (substantially similar), “discriminar injustamente” (discriminate unfairly), “equivalente indubitável” (indubitable equivalent)[39]; “exceção de novo valor” (new value exception)[40],  “subordinação equitativa” (subordination equitable), “acordo de subordinação” (subordination agreement),  “melhor interesse dos credores” (the best interets of creditors)[41], “recaracterização” (recharacterization), “teste de mercado” (market test),  crame down, ou cramdown, ou cram-down, ou cramdown power[42], cram up, hold up, free-riders[43], e os vocábulos imprecisos, flexíveis, que permitem julgamentos de cunho subjetivo, por conseguinte,  julgamentos discricionários: “boa-fé” (good faith)[44], “equidade” (equity), “razoável” (reasonable), “razoabilidade” (reasonableness) etc.

            Esses conceitos vagos permitem que o juiz norte-americano, no exercício do poder (quase) discricionário que o 11 USC lhe confere, “salvar” ou “matar” a empresa.

C - Lei de Insolvência e de Governança Corporativa – 2020- (CIGA), [45] do Reino Unido

            Jennifer Payne, no artigo “O papel do tribunal na reestruturação da dívida”[46], chama a atenção, de início, que o seu estudo tem por objetivo descrever a atuação do tribunal quando constatada  a existência de potenciais abusos ou atos ilegais,v.g.,  transferência de riqueza para os credores majoritários em detrimento dos interesses de credores minoritário; uso indevido do DIP, na Inglaterra  denominado “financiamento de resgate” (rescue finance), criado exclusivamente para garantir benefícios aos credores com supergarantias em prejuízo dos direitos  dos antigos credores; trespasse de um ou mais negócios ou filiais para outra empresa com perdas para os dissidentes.

            A professora de finanças corporativas na Universidade de Oxford ensina que o tribunal do Reino Unido não se limita ao exame dos requisitos formais e substanciais do processo, incumbindo-lhe impedir opressões dos credores majoritários sobre os acionistas minoritários, os demais credores e a própria devedora, assim como, nos EUA, o Capítulo 11 depende fortemente da participação do tribunal (in the US, Chapter 11 of Bankruptcy Code relies heavily on the role of the court).

             Em dois momentos, acentua, exige-se a intervenção do tribunal: primeiro, na fase de convocação dos credores (at the convening stage), quando lhe cabe fiscalizar a formação das classes de credores para proteger a minoria; verificar se a “exposição de motivos” (que pode ser sucinta) discrimina os fatos essenciais e relevantes da situação da devedora e do plano, para ciência dos credores e do mercado e deliberação da assembleia geral de credores etc.; segundo, na audiência de sanção (the role of the court at the sanctioning hearing), ressaltando que o tribunal não é um mero carimbador das deliberações dos credores (the court’s sanctioning role is not a rubber-stamping exercise)[47]; que o tribunal deve examinar o resultado da votação com o escopo de certificar-se se não houve abuso do direito de voto na assembleia para beneficiar credores majoritários e acionistas e se os credores dissidentes não ficaram em situação pior do que se plano não tivesse sido aprovado (no worse off under the plan), o que se apura através do chamado “teste do não pior” (no worse off test), previsto na Seção 901, G, (3), Parte 26 – A, da CIGA; deve verificar se há concessão de vantagens indevidas aos titulares de DIPs em prejuízo dos antigos credores, ou se a conversão de créditos em ações causa danos aos acionistas, ou se há substituição de garantias para pagamentos antecipados; deve determinar, quando provocado, a elaboração de laudo de avaliação do preço de mercado do negócio para saber se, para a minoria discordante, é melhor a continuidade das atividades ou a liquidação da devedora, entre outras matérias de igual interesse e importância.

               Uma pesquisa resumida com o título New business support measures: Corporate Insolvency and Governance Act 2020 (CIGA)[48], realizada e publicada pela Biblioteca da Casa dos Comuns, destaca que a CIGA - a maior mudança já implementada na Lei de Insolvência do Reino Unido – foi inspirada na cultura de reestruturação empresarial na linha do Código de Falências dos Estados Unidos, Capítulo 11.

Entre as principais regras estão as que têm por finalidade estabelecer as formalidades legais do plano de reestruturação (restructuring plan) sob a égide da Parte 26 - A da Lei das Companhias (Companies Act 2006); a imposição de moratória conforme a Parte A1 da Lei de Insolvência de 1986 (UK Insovlvency Act 1986); restrições às cláusulas de vencimento antecipado ou extraordinário dos contratos da empresas em dificuldades; conferir ao tribunal o poder de sancionar plano de reestruturação se ele for “justo e equitativo”, quando se tratar de companhias viáveis “estranguladas” por dívidas vencidas.

Mark Lawford, Andrew J Wilkinson e Matt Benson, no artigo The new restructuring plan – in depth[49], citam como medidas permanentes vincular todos os credores, inclusive os dissidentes, através do chamado “cross-class cram down”; permitir que a companhia requeira a exclusão dos votos de classes de crédito ou de acionistas que não têm genuíno interesse econômico; autorizar o tribunal a agir discricionariamente para fazer justiça aos interessados.

D - Código da Crise Empresarial e Insolvência da Itália

            A lei falimentar italiana (Codice della Crisi d’Impresa e dell’Insolvenza (CCII)), modificada pelo Decreto Lei nº 35/2005, convertido na Lei nº 80/2005, de 14.05, atualizada pelo Decreto Legislativo nº 83/2022, alterou radicalmente a concordata preventiva, que beneficiava o devedor, para privilegiar os direitos e interesses dos credores e a “conservação dos complexos produtivos” (quello della conservazione dei complessi produtive).

            Segundo o CCII, o juiz, em princípio, limita-se ao controle da regularidade do procedimento, do resultado da votação e da admissibilidade legal da proposta de concordata e da viabilidade econômica do plano; todavia, se houver oposição, que deve ser apresentada cinco dias antes da audiência na Câmara do Conselho para verificação da licitude da deliberação dos credores, o juiz não pode homologar o acordo dos credores sem examiná-la “(…) abbiamo visto che essendo state proposte opposizioni, el tribunal non può omologare il concordato, senza averle prima esaminate e decise)”[50], consoante julgou o Tribunal de Perugia, ao sentenciar: “Sempre que um dos credores se oponha formalmente à aprovação de uma proposta de acordo, o Tribunal, independentemente do conteúdo do litígio, deve pronunciar-se sobre o mesmo, verificando primeiro a admissibilidade da oposição e depois a sua validade.”[51]   

            Em consonância com a Diretiva (EU) 2019/1023, que dispõe sobre “os regimes de reestruturação preventiva, o perdão de dívidas e inibições, e sobre as medidas destinadas a aumentar a eficiência dos processos relativos à reestruturação, à insolvência e ao perdão de dívidas”, o CCII prevê que os juízes, que atuam em processos de reestruturação, insolvência e alívio das dívidas, devem receber treinamento adequado e possuir as habilidades necessárias para cumprir suas responsabilidades com celeridade e competência

E - Lei de Insolvência da Alemanha[52]

            De acordo com a Lei de Insolvência de 01.01.1999 (InsO), § 231, o juiz  indeferirá, de ofício, o plano quando (1) 1. não forem observadas as disposições referentes à elaboração e conteúdo do plano ou o requerente não puder sanar as irregularidades ou não o fizer no prazo assinado pelo juízo; (1) 2. não tiver nenhuma possibilidade de ser aprovado e (1) 3. os direitos dos credores não puderem ser satisfeitos.

            O § 245 da InsO regula o cram down e deixa evidente, entre outros requisitos e condições, que o plano de insolvência deve dar tratamento aos credores dissidentes igual ou melhor do que teriam sem o plano,[53] e o § 250 da InsO cuida do indeferimento do plano caso não sejam cumpridas as disposições legais sobre o seu conteúdo e a tramitação do processo (§ 250 1.) e o plano tenha sido aprovado de má-fé, especialmente se para favorecer a um (ou mais) credor.

F - Lei Concursal da Espanha

A Lei Concursal (Lei nº 22/2003, de 9 de julho), no art. 127, determina que o juiz, antes de proferir sentença sobre o plano (convenio), aprovado pela assembleia geral, mande ouvir os credores para que informem se desejam formular oposição.

 José Luis González Armengol, magistrado espanhol, ao comentar o art. 127, sublinha: é facultado, ao juiz, rejeitar, de ofício, o plano; a deliberação da assembleia de credores não vincula o juiz; a oposição não é formulada contra o plano, porém, contra a futura decisão judicial.[54]

XXI – Aplicação do cram down pelo STJ

Com base no princípio da preservação da empresa e no conceito de abuso de direito, o STJ flexibiliza a norma do art.58, § 1º, I a III, da LFRE    

            Ao elencar os requisitos formais que devem ser preenchidos, cumulativamente, para ensejar o cram down, a LFRE, no art. 58, § 1º, I a III,  pecou pelo excessivo formalismo, herança do jus-positivismo em nosso país, sobretudo devido ao fenômeno do absenteísmo dos credores na assembleia geral, não restando, ao juiz do processo, - especialmente no caso da Americanas em que há uma única classe de credores -  mitigar os requisitos legais, instituídos em 2005 e mantidos na Reforma de 2020, quer por entender que deve prevalecer o princípio da preservação da empresa e da continuidade das suas atividades e negócios sociais em prol da comunidade e dos que nela trabalham, ainda que em prejuízo dos credores, quer por julgar que os “credores apoiadores” agiram de má-fé e praticaram ato ilícito por abuso de direito.

            A propósito, Giuseppe Baveta, professor associado na Universidade de Palermo, no ensaio Il Diritto dell’Impresa in Crisi[55], pontifica: o “Direito da Empresa em Crise” – substituto do obsoleto “Direito Falimentar” - foi concebido para proteger os direitos da empresa em situação de iminente insolvência, ou insolvência reversível, resguardar os superiores interesses da comunidade, que o Poder Público (leia-se o Poder Judiciário) tem o dever de respeitar, assegurar e atender, e assegurar os direitos e interesses de  seus empregados e credores.

            Com efeito, acima e além do interesse privado de composição dos conflitos entre devedor e seus credores, há o interesse coletivo, público e social de saneamento, reorganização e desenvolvimento da empresa, em especial quando se cuida de macroempresa.

No caso da Americanas, dadas as suas peculiaridades (história; tradição; número de acionistas, empregados e credores; notável capacidade de gerar caixa; faturamento; montante do passivo; importância social etc.), na absurda hipótese de rejeição do Plano pelos “credores apoiadores”, o Poder Judiciário, para mantê-la em funcionamento, deve decidir em conformidade com os princípios,  os valores e os fins do moderno Direito da Crise Econômica da Empresa.[56]

            O Superior Tribunal de Justiça julgou, em vários momentos, cabível, portanto legítimo, o recurso ao instituto do cram down apesar de não terem sido preenchidos os requisitos da LFRE, art. 58, § 1º, I a III, como se constata do  acórdão da Terceira Turma, no REsp. nº 1.598.130/RJ, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 07.03.2017, DJe 14.03.2017: “A Segunda Seção já realizou a interpretação sistemático-teleológica da Lei nº 11.101/2005, admitindo a prevalência do princípio da preservação da empresa em detrimento de interesses exclusivos de determinadas classes de credores.”

            A Quarta Turma, no AgInt. no AREsp. nº 1.551.410/SP, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, j. 29.03.2021, DJe. 24/05/2022, decidiu: “A jurisprudência do STJ entende pela possibilidade de se mitigar os requisitos do art. 58, § 1º, da LRFE, para a aplicação do chamado ‘cram down’ em circunstâncias que podem evidenciar o abuso de direito por parte do recalcitrante.”[57]

            A mesma Quarta Turma, no REsp. nº 1337989/SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 08/05/2018, DJe 04/06/2018), decidiu: “(…) eventual abuso do direito de voto, justamente no momento de superação de crise, é que deve agir o magistrado com sensibilidade na verificação dos requisitos do cram down, preferindo um exame pautado pelo princípio da preservação da empresa, optando, muitas vezes, pela sua flexibilização, especialmente quando somente um credor domina a deliberação de forma absoluta, sobrepondo-se àquilo que parece ser o interesse da comunhão de credores”[58].

XXII – O juiz brasileiro no processo de recuperação judicial

            O juiz da recuperação judicial da sociedade empresária não é mero “carimbador” das deliberações da assembleia de credores, mas guardião do interesse público e social inerente à atividade econômica organizada; não se lhe pode tolher, muito menos vedar, o exercício pleno de suas funções, atribuições e poderes constitucionais e infraconstitucionais, nem, tampouco, impedi-lo de cumprir os deveres que lhe são impostos pelos arts. 5º, XXXV, e 93, IX, da CF; 3º, 6º, 7º, 8º, 11, 139 a 142 e 371, do CPC e 35, I, da LOMAN, [59] eis que “o “Estado Democrático de Direito não se contenta mais com uma nação passiva. O Judiciário não mais é visto como mero Poder equidistante, mas como efetivo participante dos destinos da Nação e responsável pelo bem comum.”[60]

            Compete-lhe examinar as objeção dos credores (LFRE, art. 55, caput) e as alegações dos interessados no processo (devedor, sócios/acionistas e terceiros) (CF, art. 5º, XXXIV e XXXV), por conseguinte, cotejar e refletir sobre as provas documentais, em especial, se houver, o parecer de profissional ou de empresa de consultoria e auditoria contábil e econômica de indiscutível capacidade técnica e reputação ilibada, juntadas as autos; esquadrinhar, se necessário com o auxílio de peritos, o plano de reestruturação das obrigações e dívidas vencidas e vincendas e de reorganização dos negócios e atividades sociais e sopesar os fundamentos legais e jurídicos, que embasam a objeção dos credores e a petição do devedor, dos sócios/acionistas e de terceiros.

XXIII – Causas da insolvência e consequências da Recuperação Judicial

            A insolvência da Americanas foi causada por reiteradas ações delituosas, ações fraudulentas de seus administradores, pela desídia dos acionistas controladores, do BACEN, da CVM, da B3, das auditorias interna e externa e pela ganância dos credores financeiros, “apoiadores” e “não apoiadores”.

            A insolvência não teria ocorrido se os controladores houvessem se esmerado na escolha dos administradores e na vigilância de seus atos, nem, tampouco, se os credores financeiros, todos, sem exceção, não perpetuassem a prática de emprestar/financiar/prestigiar uma empresa “com um pé na cova”.

            A péssima gestão, que acarretou a insolvência, foi estimulada, anos a fio, pela cupidez dos credores financeiros, que concederam créditos de bilhões de reais sem garantias (?!) – créditos sem garantias reais (?!), créditos sem garantias pessoais (?!) -.

            As consequências da Recuperação, quanto aos direitos e interesses dos acionistas minoritários, investidores e o mercado, poderão ser boas ou más:

            (a) boa se o Poder Judiciário decretar a nulidade do Plano e determinar que os Administradores Judiciais convoquem nova assembleia geral de credores;

            (b) boa se forem corrigidos o injusto e injustificado tratamento conferido aos minoritários pela maioria do Conselho de Administração da Companhia, na contramão, frise-se, da citada Exposição de Motivos nº 197/1976, que afirma: “O Projeto visa à mobilização da poupança popular” mediante “o estabelecimento de um sistema que assegure ao acionista minoritário o respeito a regras fluídas e equitativas (…) e atrativos suficientes de segurança e rentabilidade.”

            (c) boa se a Americanas conseguir reerguer-se; se o percentual de ações ordinárias dos acionistas minoritários não for “implodido; se os trabalhadores mantiverem seus empregos; se os credores receberem o estabelecido no Plano; se os consumidores voltarem a ser atendidos como merecem; se municípios, estados e a União Federal voltarem a contar com um contribuinte de “peso”;

            (d) boa se o “caso” da Americanas servir para compelir o Poder Legislativo a aperfeiçoar -  com urgência - a LFRE  e não somente revisá-la;

            (e) se a participação dos minoritários for “aguada”;

            (f) se a quase quebra da Companhia não for revertida.  

XXIV – Síntese

            A Recuperação Judicial da Americanas evidencia:

            (a) fraudes não combatidas tempestivamente e não punidas, quando descobertas, severamente, estimulam a prática de ações criminosas, de crimes continuados;

            (b) a LSA e as resoluções do BACEN/CMN não valem nada para administradores desonestos;

            (c) a CVM não fiscaliza o mercado de ações;

            (d) a B3 não cumpre suas próprias normas;

            (e) os auditores foram omissos;

            (f) os credores financeiros foram pródigos ao “abrirem os cofres” para uma empresa que sabiam superendividada; negligentes por não exigirem garantias; transgressores das resoluções do BACEN/CMN, que visam à solidez do sistema financeiro e de capitais;

            (g) até companhias afamadas, comandadas por “cobrar criadas”, podem iludir incautos - 143.366 pessoas físicas e 2.089 pessoas jurídicas - e enganar os mais avisados - 563 fundos de pensão.

XXV – Conclusões

            Os acionistas passivos-rendeiros-poupadores não podem ser penalizados:

            (a) por haverem confiado em uma companhia centenária, integrante do Novo Mercado, pessimamente administrada por profissionais pessimamente selecionados e eleitos por culpa dos acionistas controladores;

            (b) por terem os credores financeiros fomentado a fraude contábil, ao liberarem créditos de bilhões de reais sem garantias.

            Os acionistas controladores e os credores financeiros, coresponsáveis pela débâcle, devem “sacrificar-se” para “salvar” a Companhia: aqueles, capitalizando-a através da subscrição de ações preferenciais não conversíveis; estes, concedendo deságios e convertendo parte de seus créditos em debêntures não conversíveis.


Sobre o autor
Jorge Lobo

Mestre em Direito da Empresa da UFRJ e Doutor e Livre-Docente em Direito Comercial da UERJ. Curador de Massas Falidas do MPRJ e é advogado.

Informações sobre o texto

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