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Manifestação do juiz sobre pedido de liberdade provisória somente após interrogatório do acusado:

legalidade ou abuso de poder?

Leia nesta página:

"

Eu propugno na liberdade dos ofendidos a minha própria liberdade."
(Ruy Barbosa)

Vem-se sedimentando nos tribunais a danosa e nebulosa prática de apreciação do pedido de liberdade provisória somente após o interrogatório do acusado, sob o nefasto argumento de garantia do juízo ou conveniência da instrução criminal.

Esse procedimento, além de não dispor de previsão legal que o admita é, por demais, atentatório contra o estado de direito e às garantias fundamentais do cidadão, posto que constitui afronta direta à credibilidade das leis e à segurança das normas jurídicas, suplantando-se o sagrado princípio da presunção de inocência.

A nossa Carta-Magna estabelece em seu Artigo 5.º, LXVI, que ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança, tendo este sagrado preceito sido consubstanciado no Parágrafo Único do Artigo 310, do Código de Processo Penal.

Inobstante a despicienda falácia de alguns magistrados em sustentar a tese de que o benefício da liberdade provisória é mera faculdade do juiz - cabendo a este conceder ou não, ao seu alvedrio - é indubitável que trata-se de norma cogente devendo ser, sem maiores delongas, presentes os pressupostos objetivos e subjetivos autorizadores, imediatamente concedido o benefício, cientificando o acusado das conseqüências do não-cumprimento do estabelecido no Artigo 310 do Código de Processo Penal, nas hipóteses de liberdade provisória com vínculo, devendo o acusado assinar o termo de comparecimento aos atos do processo, sob pena de revogação. Destarte, é assente na mais abalizada hermenêutica jurídica que a terminologia "pode" não deve ser interpretada como faculdade ou mero beneplácito do juiz mas, sim, deriva de um imperativo cogente, de um dever do magistrado.

Hodiernamente, prolifera-se a criminalidade desenfreada atingindo índices alarmantes, provocando consternação no meio social avultando-se daí, o fenômeno da vitimologia que exige, tomada pela síndrome do pânico, maior rigor do Estado na repressão criminal. Esse clamor público ganha eco através dos meios de comunicação que, em busca de índices de audiência, banalizam o crime e promovem no Judiciário uma certa coação nos procedimentos judiciais, persuadindo juizes a tomar decisões contrárias ao direito e , aparentemente, simpáticas à opinião pública.

Pedimos venia aos doutos, dotados de melhor juízo, mas entendemos que o juiz que viola preceitos constitucionais ou normas processuais de garantia do devido processo legal, assemelha-se, em termos de afronta à lei, ao acusado de prática criminosa. O que difere ambos é que um, o magistrado, viola normas adjetivas o outro, o acusado, viola normas substantivas. Do axioma, infere-se que o magistrado arca com a agravante da reprimenda em razão de conhecer as leis, sabedor das regras norteadoras do processo e, não obstante, sob o manto do poder no qual foi investido, não respeita as normas jurídicas por mera paixão ou capricho. Por sua vez, o acusado pode ser contemplado com a atenuante do beneplácito moral ou social de ter agido em estado de necessidade, legítima defesa, exercício regular de direito, estado famélico e, por não restar provada sua culpa, goza do sagrado princípio da presunção de inocência.

É sobejamente cristalizado na jurisprudência remansosa e nas mais abalizadas doutrinas que a liberdade provisória não se trata de mera faculdade do juiz e constitui-se, mesmo, presentes os requisitos autorizadores, direito subjetivo do acusado, caracterizando coação ilegal o negar o benefício. O juiz que, ao seu alvedrio, priva o acusado de sua liberdade, negando a liberdade provisória nos casos em que a lei admite é, sim, passível das penalidades previstas na Lei n.º 4.898, de 9 de dezembro de 1965, que prevê os crimes de abuso de autoridade, in verbis:

Artigo 3.º Constitui abuso de autoridade qualquer atentado:

          a) à liberdade de locomoção;

Artigo 4.º Constitui também abuso de autoridade:

a) ordenar ou executar medida privativa de liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder;

.........................

e) levar à prisão e nela deter quem quer se proponha a prestar fiança, permitida em lei; (grifo nosso)

Subsume-se do enunciado legal que o magistrado recalcitrante, ao seu alvedrio, que tangencia-se das normas do devido processo legal, é passível das sanções previstas na lei em epígrafe, com o fito de coibir, quiçá, expungir, da atividade jurídica essa ameaça ao estado de direito.

Não presentes os fundamentos que possibilitem a prisão preventiva, deve ser solto aquele que foi preso em flagrante. Ademais, com a inserção do Parágrafo Único ao Artigo 310, pela Lei n.º 6.416, de 24.5.77, a regra passou a ser a defesa do acusado em liberdade, só se admitindo a mantença da prisão em flagrante se preenchidas as exigências da prisão preventiva. Ora, deveras que é cediço a problemática da escalada da criminalidade, especialmente nos grandes centros, recrudescendo com a síndrome do pânico generalizado. Inobstante, é intolerável que o magistrado, contrariando as virtudes que devem nortear o exercício da judicatura - v.g., a imparcialidade, a prudência, a isenção de paixão - converta-se em fantoche dos caprichos e da bílis que veda os olhos e envenena o coração da grande massa, insuflada pelo sensacionalismo da mídia que perverte lares, desintegra família, banaliza o crime e a violência e confunde a mentalidade do povo, promovendo uma quase total inversão de valores.

Nesse diapasão, sob interferência e influência dos meios idiossincráticos, avulta-se uma terrível ameaça aos princípios basilares do direito, fragilizando o imperativo das normas jurídicas processuais, tendo como apanágio, a suplantação, pelo poder público, da dignidade da pessoa humana em seu jus libertatis. Isso decorre do argumento falacioso de alguns magistrados que interpretam, data venia , com estultice, o Artigo 323, V, do Código de Processo Penal, alegando que o avanço da criminalidade vem provocando clamor público e que assaz medidas repressoras de modo a coibir a ação deliltuosa.

Oxalá se a prisão, indiscriminadamente, fosse a panacéia para todos os males, defluir-se-á daí, que a sociedade em geral teria, enfim, alcançado aqui mesmo na terra, o nirvana. Pois, dentre os países ditos democráticos, o Brasil é o que mais aplica a pena de segregação celular. O que muitos membros do Poder Judiciário precisam, na sagrada missão de judicar, é de voltar os olhos para a realidade social. Não é com prisão, apego ao texto gélido da lei, que se resolverá a escalada da criminalidade. Os operadores do direito, lúcidos do seu profecio, devem ter sempre em mente que acima do direito positivo tem o direito natural ou, como prefere o eminente Tobias Barreto, "uma lei natural do direito."

O sagrado princípio da presunção de inocência jamais deverá ser olvidado, impingindo ao mero acusado de prática delituosa o esteriótipo de criminoso, a execração pública, alijando-o no promíscuo sistema carcerário - que não ressocializa, mas perverte - culminando com a fragmentação da prole, induzimento de crianças inocentes e desamparadas à perniciosa vida de prostituição, semeando, em terreno fértil, os germes do crime, transformando noviços de hoje em recrudescidos criminosos de amanhã. Dentre todas essas conseqüências, a mais ultrajante é quando, em sentença transitada em julgado, constatado o engodo ou a incompetência da ação policial, verifica-se que, após árduo período de encarceramento e pungente morte moral e social, o acusado é declarado inocente. E isso não-raramente acontece.

A opinião pública, geralmente manipulada, não deve sobrepor-se ao estado de direito, à credibilidade das leis e à prudência e parcimônia do juiz, suplantando normas jurídicas e direitos subjetivos. Antes, deve intervir no afã de zelar pela boa aplicação das leis e pelo estado democrático de direito. O juiz não deve agir de modo a estimular a vaidade e o capricho coletivos, desvirtuando-se da ordem jurídica e traindo, inexoravelmente, os ideais da humanidade fruto de tantos embates travados, na história das civilizações, por aqueles que sonharam com um mundo mais justo e humano, arcando com a própria vida em defesa de suas idéias.

A história do direito é a história da humanidade e o Poder-Estado deve fomentar o respeito ao direito como apanágio do respeito à própria humanidade. Aqui convém citar o profecio do eminente humanista gaulês, Victor Hugo:

"A sociedade não deve punir. A sociedade não deve se vingar.

A vingança cabe ao indivíduo, a punição a Deus.

A sociedade está entre os dois. O castigo está acima dela, a vingança abaixo.

Nada tão grande nem tão pequeno lhe convém. Não deve punir para vingar-se;

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Deve corrigir para melhorar."

Doravante, isento de paixões ou caprichos, o magistrado deve ser o elo de ligação, o equilíbrio, entre a devida aplicação da norma jurídica e aos verdadeiros anseios - sem vícios que os maculem - da sociedade.

Para a concessão da liberdade provisória, não se distingue ser o réu primário ou reincidente, de bons ou maus antecedentes, sendo aplicável tanto às infrações afiançáveis quanto às inafiançáveis ainda que graves, exceto, inobstante inconstitucionalidade latente, aos crimes elencados como hediondos na Lei n.º 8.072, de 25.7.90 e a famigerada Lei n.º 9.034, de 3.5.95, feita de afogadilho, corolário de lamentosa afoiteza do legislador, que alude aos crimes praticados por organização criminosa (Lei do Crime Organizado), em seu Artigo 7.º, que veda tal benefício.

No cotejo entre princípios de direito, paixão e razão, é oportuno o prelecionamento do insigne mestre Vicente Ráo ao profetizar que "o direito natural, assim concebido, procura aproximar o direito próprio, positivo, de cada povo, em torno dos postulados básicos, intransponíveis, do respeito aos direitos fundamentais do homem, àqueles direitos, isto é, cujo desconhecimento afetaria a própria natureza humana; e procura, ademais, inspirar e conduzir todos os sistemas positivos de direito em direção a um ideal supremo de justiça."

Por derradeiro, à guisa de conclusão, conclamamos a todos os operadores do direito: mantenham viva a chama da lídima justiça. Juizes, promotores de justiça, advogados e sociedade: esta causa é de todos. A conduta do juiz que arrosta norma jurídica do devido processo legal, é uma nefasta ameaça ao estado democrático por ferir, inexoravelmente, princípios basilares de direito natural e , além do jus libertatis e dignitatis, o sagrado princípio da presunção de inocência.

Perfilhemos a luta pelo direito e pelos ideais humanitários principiada por tantos notáveis que nos legaram um mundo mais justo, consubstanciado no ordenamento jurídico. Expungemos quaisquer afrontas que ameacem à ruína as garantias fundamentais resguardadas em nossa Constituição e nas de todas as nações civilizadas. No dizer de Goethe, na peça Fausto, citado por Ihering em sua obra A Luta pelo Direito: "só deve merecer a liberdade e a vida quem para as conservar luta constantemente."


BIBLIOGRAFIA

1 - Mirabete, Júlio Fabbrini,"Processo Penal"- rev. e atual. - São Paulo : Atlas, 1997.

2 - Jesus, Damásio E. de - "Código de Processo Penal Anotado"- 13.º ed. atual. e aum. - São Paulo : Saraiva, 1996.

3 - Von, Ihering, Rudolf - "A Luta Pelo Direito" - 16.ª ed. - Rio de Janeiro : Ed. Forense, 1998.

4 - Hugo, Victor - "O Último Dia de um Condenado à Morte" - Tradução de Annie Paulette Maria Cambé - Ed. Newton Campton Brasil Ltda. - Rio de Janeiro - 1995.

5 - Engels, Friedrich et al - "Crítica do Direito" - Livraria Editora Ciências Humanas - São Paulo : 1980.

6 - Ráo, Vicente - "O Direito e a Vida dos Direitos" - 4.ª ed. anot. e atual. por Ovídio Rocha Barros Sandoval - São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 1997.

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Sobre o autor
Manoel Leonilson Bezerra Rocha

advogado criminalista em Goiânia (GO)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROCHA, Manoel Leonilson Bezerra. Manifestação do juiz sobre pedido de liberdade provisória somente após interrogatório do acusado:: legalidade ou abuso de poder?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. 34, 1 ago. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1089. Acesso em: 25 abr. 2024.

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